A socióloga Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), vem estudando nos últimos anos o "bolsonarismo moderado". É aquela parcela do eleitorado que votou em Jair Bolsonaro nas últimas eleições, mas que não demonstra adesão radical a todas as suas pautas. Mais recentemente, ela concentrou estudos numa parcela desse grupo, que chamou de "pentecostalismo oscilante". São eleitores do campo evangélico popular que ora tendem a votar no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ora se reaproximam do ex-capitão.
Solano detalhou os resultados mais recentes da sua pesquisa durante a mesa de abertura do 3º Simpósio Direitas Brasileiras, evento que ocorreu na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nesta semana. Para tanto, ela realizou três rodadas de entrevistas com evangélicos de várias denominações pentecostais e neopentecostais. "São pessoas que tinham votado em Bolsonaro, mas que hoje em dia frustradas, que pensavam talvez votar no Lula ou ficar em casa", explicou a pesquisadora. "É o perfil do bolsonarista moderado arrependido evangélico popular", definiu Esther.
Ela conta que, assim como apontam as pesquisas de intenções de voto, na primeira rodada de entrevistas, em maio deste ano, os entrevistados se dividiam quase pela metade entre Lula e Bolsonaro. De lá para cá, boa parte voltou a sugerir que voltaria a votar em Bolsonaro. Mas, primeiramente, explicou os motivos da frustração desse eleitorado com o atual presidente.
Desespero econômico e Bolsonaro "desumano"
São duas questões fundamentais que afastaram esse grupo de Bolsonaro, segundo ela. A primeira, o "desespero econômico", por conta da deterioração das condições de vida, com o aumento da inflação e o avanço do desemprego. A segunda, de "ordem existencial", pela maneira como Bolsonaro não cuidou da população durante a pandemia e, mais ainda, debochou das vítimas da doença.
"Esse grupo falava que Bolsonaro foi um sujeito de fato desumano, numa rápida vinculação com o discurso cristão. O cristão tem que cuidar, abrir os braços e acolher." De acordo com a pesquisadora, os entrevistados não julgavam se Bolsonaro era um verdadeiro cristão ou não, mas a sua conduta diante da crise sanitária.
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Aliado a isso, esse grupo também identificava que Bolsonaro não sabia respeitar o seu lugar como presidente. "O cristão tem que respeitar o seu lugar, tem que estar comprometido com as leis, não só de Deus, mas também dos homens", disse a pesquisadora a partir dos relatos colhidos. "O fato de ele não respeitar a democracia e o ritual da presidência significa que não está cumprindo com a normativa que um cristão deveria cumprir."
Já a deterioração das condições econômicas ativou nessa parcela do eleitorado uma reconexão pragmática e afetiva com Lula. "Apareceu uma dicotomia muito clara. Face a Bolsonaro, que é um desumano, que debocha dos mortos, o Lula se preocupava com a gente", diziam os entrevistados. "Aparecia uma reelaboração do período histórico recente. Eles começavam a repensar, por exemplo, a Lava Jato. Será que fomos enganados?"
Manipulação do púlpito
A pesquisadora também identificou certo "cansaço" entre os evangélicos da politização nas suas igrejas. Nesse sentido, Esther destacou que, ante a uma coesão muito grande pró-Bolsonaro nas últimas eleições, começou a haver "brechas" no interior desses grupos. "A gente começa a ver irmãos e irmãos que estão falando que vão com Lula", diziam os evangélicos, durante as entrevistas.
"Estamos cansados. A política está entrando demais dentro da igreja. A gente não está gostando. Estamos sendo utilizados como massa de manobra pelas lideranças, para projetos de poder que nada têm a ver com a igreja", diziam."O evangelho fica deturpado", era impressão que levavam à pesquisadora.
Representação e família
A situação, no entanto, foi "degringolando", segundo Esther Solano, quando o grupo de evangélicos começou a cobrar maior representatividade na candidatura Lula. "Um público que saiu do armário e não quer voltar mais. Querem ser escutados, enxergados politicamente, e querem ser entendidos enquanto identidade religiosa", explicou.
A principal preocupação dos evangélicos, de acordo com a pesquisadora, era com a forma com que a candidatura petista trataria valores ligados à família. "Coincidiu com a fala de Lula sobre o aborto, que arrepia boa parte do público evangélico", anotou.
"E a família? A resposta não foi respondida", disse Esther. "E esse público evangélico oscilante está voltando para Bolsonaro." Boa parte desse público está voltando para Bolsonaro pelo "pânico moral" e pelo medo do PT. "Lula não é uma ameaça. É todo o campo que orbita ao redor do Lula, o movimento feminista, o movimento LGBT. Se fosse pelo Lula, estavam relativamente tranquilos."
Além disso, os evangélicos também passaram a cobrar uma maior presença de pastores conhecidos, o que ela chamou de "pastores-influenciadores", ao lado do petista. Por outro lado, ela citou que figuras como a ex-ministra Damares Alves e pastores como Silas Malafaia e André Valadão, entre outros apoiadores de Bolsonaro, congregam cerca de 50 milhões de seguidores. "Uma militância orgânica que é brutal", destacou.
Michele x Janja
Mais do que o próprio Bolsonaro, é a primeira-dama, Michelle, que exerce maior atração sobre o público pesquisado. Em suas manifestações recentes, Michelle propaga o discurso de que o Brasil estaria "doente espiritualmente", e que Bolsonaro seria a cura. Junta-se a isso a mitologia em torno da facada, e de que Bolsonaro teria sido salvo por intervenção divina. Esse tipo de retórica ainda cala fundo entre o público evangélico, segundo a pesquisadora.
Por outro lado, Michelle e os influenciadores evangélicos passaram a associar a socióloga Rosângela da Silva, a Janja a religiões de matriz africana. Isso porque ela reagiu a um ataque de Michelle a Lula, a partir de um vídeo em que o ex-presidente se encontra com mães de santo num evento na Bahia no ano passado. "Começamos a ver que uma boa parte do ecossistema comunicacional pentecostal está começando a lançar críticas contra Janja, porque ela seria representante desse mundo considerado 'diabólico' por eles."
"A pergunta que fica é como o campo progressista consegue ser uma âncora material, de dignidade material, mas não consegue ser uma âncora existencial. O que fazemos?", questiona Esther Solano. "Resolve-se com Lula fazendo acenos falando sobre Deus, colocando enormes bandeiras do Brasil? Colocando um pastor para falar? Ou passando essas eleições, a gente vai ter que repensar nosso papel como campo progressista e o debate com esse público pentecostal popular?"