Jair Bolsonaro abriu a temporada de sabatinas no Jornal Nacional e a avaliação de muitos foi de que o atual presidente não "passeou" na entrevista, mas tampouco sofreu durante os 40 minutos em que esteve no programa.
Primeiro, um contexto. Se a emissora de TV aberta mais assistida do Brasil já foi determinante em eleições como a de 1989, quando fez uma edição de um debate em que favoreceu aquele que seria o presidente eleito, Fernando Collor, contra Lula, hoje seu poder de influência é bem menor, embora não seja desprezível.
Em um cenário assim, Bolsonaro só sairia derrotado se fosse encurralado em alguma sequência de perguntas ou contestado de forma efetiva, perdendo o controle. Isso não aconteceu. Mesmo com algumas respostas previsíveis, já que o atual presidente havia respondido algumas (ou quase todas) questões anteriormente, não houve qualquer efetividade nas intervenções, principalmente por parte de William Bonner.
Aqui, um parênteses. Bolsonaro tenta o tempo todo passar a imagem de "homem comum", não ri e se porta de forma séria o tempo todo na entrevista. Já Bonner sorri de forma irônica, aparentando, de forma involuntária ou não, certa superioridade. O apresentador não é candidato, mas no embate acaba reforçando a figura do presidente como alguém que é "gente como a gente". Ainda se jactou de um "compromisso" assumido por Bolsonaro - que efetivamente este não assumiu - quando o candidato falou que respeitaria as urnas "desde que as eleições fossem limpas e transparentes". Ou seja, compromisso com o nada.
O presidente também aludiu a temas com os quais a Globo não teria razões para contestar. Por exemplo, citou que sem o agronegócio brasileiro, "o mundo passa fome". A óbvia mentira não mereceu observações, mesmo com o Brasil tendo um cenário em que a fome voltou a ser um problema central. Questão, aliás, ausente na conversa.
O depois da entrevista do Jornal Nacional
Além da entrevista, existe aquilo que sai a partir dali. Campanhas utilizam programas e debates para produzir material que vai circular em grupos de Whatsapp, de Telegram, reproduzindo (que ironia) a edição muito seletiva que a Globo fez em 1989 fazendo parecer que Collor tinha goleado por 7 a 1 Lula. Agora, quem promove o evento perde o controle dele.
E aí pode morar o perigo para o presidente. Se existe todo um esquema consolidado há anos de disseminação de fake news para redes sociais por parte do bolsonarismo, não houve pontos altos para o seu lado. As interrupções e a postura mais agressiva com Renata Vasconcelos, em comparação com Bonner, contrariam seu esforço para angariar votos no eleitorado feminino. A cola na sua mão deve ser parte do material trabalhado por sua base, mas é bem menos do que provavelmente foi pensado.
Por outro lado, há flancos. O analista de dados Pedro Barciela chama a atenção que, no Twitter, houve novos usuários engajados com o grupo antibolsonarista, enquanto a base de apoio do presidente seguiu restrita. Mas ele menciona que a busca "Bolsonaro imita falta de ar" se tornou uma das pesquisas em destaque no Google ainda durante a entrevista.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a doutora em Ciência Política Camila Rocha lembra que a crueldade é uma pecha que o presidente não quer carregar consigo. “É muito consensual a ideia de que o Bolsonaro é desumano, principalmente entre as mulheres, mesmo antes da pandemia. Depois da covid, aumentou muito e se tornou algo que pode mobilizar. Elas dizem que em um evento terrível como a pandemia preferem ter um líder com humanidade do que um que faz piada com quem sofre e até promove a morte”, avaliou, com base em pesquisas qualitativas.
Em uma época na qual muitos eleitores passam a entender a eleição como se fosse um reality show, a perversidade do mandatário, evidenciada em diversas ocasiões, é um ponto que pode se sobrepor em qualquer avaliação de eventuais indecisos que não gostariam de se associar a alguém assim. Contrasta com o "homem comum" que não se vê como cruel embora muitas vezes seja.
A forma como as campanhas vão trabalhar o que foi produzido na entrevista pode e deve valer mais do que o evento em si. Resta também saber como será conduzida a sabatina (nome inquisitório e que coloca os entrevistadores em pé de superioridade, mas isso é outro tema) com o ex-presidente Lula. A depender do tipo de questão levantada, da qualidade das réplicas e da eventual virulência dos entrevistadores, pode ficar perceptível a normalização daquilo que nunca deveria ter sido normalizado, como ataques à democracia, condutas fascistas e naturalização de mortes evitáveis. Evidenciando ainda que nunca houve escolha difícil, mesmo para o jornalismo.
Edição: Thalita Pires