Em crise orçamentária desde antes do governo Bolsonaro, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) está sendo submetida a uma série de mudanças e reestruturações profundas. Tudo isso em nome da saúde financeira e de uma suposta modernização. Porém, parlamentares da oposição e o sindicato de trabalhadores do setor denunciam desvio de finalidade para favorecer interesses privados do agronegócio.
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Fundada em 1973, há quase 50 anos, a Embrapa tem como principais objetivos desenvolver e disseminar tecnologias e modelos de agricultura e pecuária em todo território nacional. Porém, sucessivos cortes de orçamento e de funcionários nas suas 43 unidades favoreceram a preparação do terreno para o surgimento do projeto Transforma Embrapa, em vigor desde o início deste ano.
A iniciativa encampada pelo presidente da Embrapa, o agrônomo Celso Moretti, teve a assessoria de Evaristo de Miranda, também agrônomo que se tornou alvo de críticas da comunidade científica por ser autor de falsas controvérsias sobre a realidade do meio ambiente em favor do agronegócio. Ambos respondiam, até abril deste ano, à agora candidata Tereza Cristina (PP-MS), enquanto ainda comandava o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
A então ministra discursava a favor das transformações que seriam colocadas em prática pela estatal, priorizando convênios e parcerias com a iniciativa privada. “Nós vamos arrumar maneiras para que ela (Embrapa) tenha recursos sem depender do orçamento do Tesouro todos os anos. Primeiro, porque a pesquisa precisa ter continuidade, não pode ter interrupção por falta de recursos”, afirmou em sessão da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, em 25 de fevereiro de 2021.
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Após a primeira onda em 2019, uma série de mudanças começaram a ser feitas no organograma da empresa a partir de fevereiro deste ano. Equipes na sede em Brasília foram totalmente reformuladas, uma diretoria de negócios foi criada e a avaliação de desempenho passou a ser medida, em cada unidade, a partir da capacidade de fechar acordos ou parcerias com empresas e associações.
“A ideia geral do Transforma Embrapa é buscar formas de trabalho que favoreçam a operação mais efetiva e ágil dos processos viabilizadores da Empresa, com equipes mais produtivas e eficazes”, afirma a empresa.
Historicamente, havia uma preocupação em conservar a homogeneidade entre os diferentes núcleos, mantendo a convivência equilibrada entre as diferentes demandas, dos grandes produtores, aos pequenos e médios. Uma guinada nos rumos da empresa que gera preocupação para os trabalhadores, segundo Dione Melo, secretária-geral do Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (SINPAF).
“Há anos atrás, você tinha no conselho administrativo da empresa determinadas representações que faziam a interlocução entre empresa e a sociedade. Hoje, você tem exclusivamente o Ministério da Agricultura e o Ministério da Economia. Então, a empresa acaba se voltando, principalmente, para produtos da balança comercial, as commodities agrícolas”, avalia Dione.
Do ponto de vista estratégico, ela também aponta a tendência de haver disparidades dentro da própria instituição. “Temos um centro de pesquisa no Maranhão, mais regional e voltado para questões locais. Como você compete com um pesquisador que seja da Embrapa Soja, que é um produto básico do agronegócio brasileiro?”, indaga a sindicalista, fazendo referência ao principal item de exportação nacional, a soja, que apenas entre janeiro e maio deste ano já rendeu R$ 124 bilhões, segundo o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.
Trabalhadores reclamam de falta de diálogo no processo
Do ponto de vista trabalhistas, há ruídos de comunicação ou até a ausência dela, embora a Embrapa alegue o contrário: “Foram ouvidos tanto na Sede quanto nas unidades, gestores e pessoal técnico especializado em processos de gestão, reuniões com equipes técnicas responsáveis pelos processos, além de videoconferências”. Outros mecanismos de comunicação interna também teriam sido disponibilizados “em cada nova etapa, para que todos tomassem conhecimento dos avanços do Projeto”, argumentam.
Porém, não é o que aponta um levantamento feito pelo SINPAF em abril deste ano. A pesquisa ouviu 238 dos pouco mais de 8 mil funcionários da estatal, com resultados que expressam um alto grau de insatisfação com a condução do processo. Dentre os respondentes, 82% alegam não terem sido consultados sobre suas funções e 91% dizem não terem sido convocados para apresentar sugestões pela consultoria contratada para dirigir o processo.
Um dado que chamou a atenção da advogada Larissa Rodrigues de Oliveira, que presta assessoria jurídica para os trabalhadores da Embrapa Sede. “Até agora as pessoas não entenderam, de fato, o que é esse projeto Transforma Embrapa. Muitos trabalhadores estão sendo simplesmente comunicados de que, a partir de amanhã, começarão a trabalhar em uma nova equipe. E são trabalhadores que integravam determinada equipe há 5, 10, 15 anos e agora estão sendo lotados em outro lugar sem nenhuma justificativa”, protesta.
Dione também se queixa do impacto das seguidas mudanças de rumo pelas quais a empresa tem passados nos últimos anos. “Os trabalhadores não conseguem se ver nesse quadro. Estamos falando de uma instabilidade institucional que, inclusive, cresce à medida que a gente se aproxima de uma eleição. Você força uma situação para que se estabeleça uma nova gerência, novas estruturas organizacionais e não sabe o que vai acontecer daqui uns poucos meses”, expõe.
De acordo com o Balanço Social da Embrapa, publicado anualmente para radiografar os resultados alcançados, em 2019, o quadro de funcionários era composto por 8.465 pessoas. Dois anos depois, esse número já caiu para 8.020, sendo que nenhuma admissão foi feita no período. Por outro lado, apesar de registrar prejuízos operacionais contábeis, os benefícios à sociedade foram crescentes no período e saltaram de R$ 46 bilhões para R$ 81 bilhões, segundo os cálculos da empresa.
Para Larissa, a direção da Embrapa aplica o projeto de forma arbitrária, “de cima para baixo”, sem ouvir a comunidade de trabalhadores que será diretamente afetada pelas políticas públicas. “Não há uma oposição e um desejo de que a coisa permaneça estática, mas é preciso que um processo de mudança, de modernização, passe por um diálogo e participação dos trabalhadores”, ressalta.
Críticos ao projeto apontam “vícios de origem”
Parlamentares da oposição, como o senador Jean Paul Prates (PT-RJ) e a deputada federal Erika Kokay (PT-DF), também já se manifestaram contra a reestruturação. Eles reclamam da apropriação das tecnologias e conhecimentos gerados pela estatal pública por entidades privadas, além de temer que a interlocução entre a Embrapa e os pequenos e médios produtores seja cada vez mais difícil.
Outro ponto destacado, inclusive em audiência pública realizada em 7 de julho deste ano, diz respeito a um possível conflito de interesses da empresa de consultoria contratada para fazer o diagnóstico interno e propor mudanças. Isso porque o serviço realizado pela consultoria Falconi ocorreu, através de edital público capitaneado pela Fundação Arthur Bernardes (Fuarbe), mas com recursos doados por grandes associações ligadas ao agronegócio.
“O mais desafiador e estranho é que a própria consultoria foi paga com recursos da CNA (Confederação Nacional de Agricultura), pela OCB (Organização de Cooperativas do Brasil) e pelo Sebrae. Sem nenhum interesse, entre aspas, eles doaram R$ 1,9 milhão de reais para o processo”, evidencia Dione.
Larissa também desconfia das intenções das entidades, que possuem relações estreitas com o agronegócio. “Afinal de contas qual é o interesse de uma Confederação Nacional de Agricultura, por exemplo, em doar um recurso de R$ 950 mil para contratar uma consultoria para fazer um diagnóstico da Embrapa?”, indaga, antes de apresentar sua conclusão: “Está entrando um recurso privado para financiar um projeto que, lá na ponta, vai beneficiar essas entidades”.
Já a agricultura familiar, responsável por 70% da comida que chega à mesa dos brasileiros diariamente, seria escanteada em um momento social crítico. “Vemos um país marcado por um número gigantesco de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, e temos uma empresa de pesquisa que tem condições e quadros técnicos para ajudar a equacionar o problema. Porém, internamente, essas áreas de pesquisa e essa temática estão sendo colocadas de lado”, afirma Dione Melo.
Questionada, a Embrapa responde que a otimização dos processos administrativos e esforços para as atividades fim poderão “fortalecer ainda mais” as entregas à sociedade brasileiras. “Especialmente aos que atuam na produção agropecuária em suas diversas possibilidades e realidades, seja na agricultura familiar, junto a povos e comunidades tradicionais ou na produção de média e larga escala, por exemplo”.
Diante da proximidade das eleições majoritárias, Larissa tem esperanças que trocas de gestão no governo federal, no ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e, por extensão, na própria gestão da Embrapa, possam sustar o Transforma Embrapa no primeiro momento. “Depois, mesmo que o projeto seja implementado, esperamos que o seja de outra maneira, com a participação efetiva dos trabalhadores”, conclui.
Edição: Rodrigo Durão Coelho