Paralisada desde outubro do ano passado, a mesa de diálogo entre governo e oposição da Venezuela, que vinha ocorrendo no México, tinha como objetivo avançar na resolução de temas fundamentais para a vida política e econômica venezuelana, como a devolução de ativos que foram apropriados por forças opositoras e o fim das sanções impostas pelos EUA contra o país.
No início do ano, o governo do presidente Nicolás Maduro manifestou suas intenções de retomar a iniciativa logo após a visita de uma delegação estadunidense a Caracas, mas quatro meses após o anúncio a mesa de diálogo ainda não foi reinstalada e os representantes governistas e opositores, embora tenham se manifestado de maneira positiva, ainda não voltaram às negociações formais.
Nos últimos meses, a retomada dos diálogos ganhou novos contornos de importância por conta da emergência energética que ameaça o Ocidente. Em busca de alternativas ao fornecimento de combustível russo, interrompido por conta da guerra na Ucrânia, os EUA e países europeus passaram a considerar a Venezuela como fonte para suprir a demanda petroleira. É nesse sentido que discussões para suspender ou pelo menos aliviar o bloqueio econômico se tornaram fundamentais não só para Caracas, mas também para a comunidade que impôs tais sanções.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista Ricardo Vaz explica que o diálogo entre governo e oposição da Venezuela é, na verdade, uma negociação entre os governos venezuelano e estadunidense, já que “os opositores da direita são agentes de Washington e, em sua grande maioria, só existem por conta do apoio dos EUA”. Por conta disso, a retomada das conversas está pautada pela situação atual das potências ocidentais.
“Se nós olharmos a conjuntura do ano passado, quando começaram os diálogos no meio do ano, e pensarmos o que mudou de lá pra cá, constatamos que foram as condições externas. O governo venezuelano quer falar com os EUA para encerrar as sanções porque a recuperação econômica não será sustentável se não houver a suspensão dos bloqueios. Mas agora, com essa conjuntura de aumento nos preços dos combustíveis e a guerra na Ucrânia, a posição do governo nas negociações está mais forte e, por isso, ele não vai agir da mesma maneira que agiu anteriormente”, afirmou Vaz.
O cenário de crise energética fez com que o presidente estadunidense Joe Biden enviasse em março uma delegação à Venezuela que se reuniu com Maduro e outros membros do governo venezuelano. O gesto, além de marcar um sinal de reaproximação entre Washington e Caracas e uma derrota diplomática à oposição liderada pelo ex-deputado Juan Guaidó, serviu como passo inicial para que governo e oposição se manifestassem a favor da retomada da mesa de negociação no México, país sede dos diálogos.
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Após o encontro, classificado pelo presidente da Venezuela como “respeitoso, cordial e muito diplomático”, Maduro sinalizou o desejo de “retomar o diálogo com todos os atores políticos e econômicos" do país. A decisão fez com que o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela e atual chefe da delegação governista nas mesas de negociação, Jorge Rodríguez, se reunisse em maio com o representante opositor nos diálogos, Gerardo Blyde. Um mês depois, em junho, os dois também participaram do Foro de Oslo, na Noruega, mas desde então as partes não voltaram a se reunir.
Por parte dos EUA, a suspensão de algumas sanções logo após a primeira reunião em Caracas permitiu que a Chevron voltasse a dialogar com a estatal petroleira PDVSA para retomar suas operações no país. Embora não tenha prometido publicamente a suspensão total do bloqueio contra a Venezuela, Washington voltou a acenar ao país quando enviou pela segunda vez desde o início do ano outra delegação a Caracas, em junho deste ano.
Para Vaz, ainda que o governo Biden não diga publicamente, “existem sinais que indicam que a Casa Branca quer mudar sua política em relação à Venezuela, pois a atual estratégia foi herdada do governo Trump e não serve para os estadunidenses na atual conjuntura”.
“Entretanto, existe uma série de cálculos internos que o presidente norte-americano deve fazer para dar esse passo, como o apoio de eleitores venezuelanos que vivem na Flórida e a oposição dos republicanos. O fato é que a situação atual favorece a posição de Caracas e existe essa percepção dentro do governo, de que a situação vai piorar de forma mais rápida para a oposição e, por consequência, para os Estados Unidos”, disse.
Diálogo é efeito colateral da tensão
Os objetivos da mesa de diálogo e as demandas exigidas pelo governo Maduro têm relação com a escalada de hostilidades que os EUA e a direita venezuelana adotaram nos últimos três anos. Orientados pela chamada “política de pressão máxima” implementada pelo ex-presidente Donald Trump, a Casa Branca e setores da oposição deixaram de reconhecer o segundo mandato de Maduro, reeleito em 2018.
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Os níveis de tensão aumentaram em 2019, quando o então deputado Juan Guaidó se autoproclamou presidente do país e recebeu apoio total dos EUA. Foi durante esse período que Washington ampliou ainda mais o bloqueio econômico contra a Venezuela, atingindo principalmente a indústria petroleira e ocasionando uma das piores crises de produção e ingressos da história do país.
A oposição liderada por Guaidó, por sua vez, seguiu pedindo mais sanções e apoio dos EUA e de países vizinhos para suas tentativas de derrubar o governo venezuelano, estratégia que envolveu desde tentativas de golpes de Estado até a contratação de mercenários para invadirem a Venezuela.
Neste contexto, em 2019, governo e oposição instalaram uma primeira mesa de diálogo com mediação da Noruega, tentativa que acabou fracassada após Washington aprovar um novo pacote de sanções.
Para a socióloga venezuelana Lirio Reyes, foi nesse período que o setor da oposição de direita que apoia a autoproclamação de Guaidó buscou construir algumas narrativas políticas contra a Venezuela, alegando que estariam em uma luta para “restaurar a democracia e um sistema de justiça independente”.
“Essa oposição se constrói sobre princípios como devolver a democracia à Venezuela e resgatar os tribunais independentes, mas essa narrativa não se sustentou. A Venezuela é um dos países mais democráticos da região, com todas as garantias eleitorais, mas isso não importa para esse setor da oposição porque fundamentalmente eles não têm interesse em disputar no campo eleitoral”, disse.
Em 2021, já com Biden na Casa Branca, governo e oposição voltaram às negociações, desta vez com mediação do México e também da Noruega. Um primeiro memorando de entendimento chegou a ser assinado em setembro do ano passado, mas um mês depois os diálogos foram suspensos por conta da extradição de Alex Saab aos EUA. O governo venezuelano, que considera Saab um diplomata preso ilegalmente pela Interpol em Cabo Verde, classificou a ação como um “sequestro” e coloca, desde então, sua libertação como uma das exigências na mesa de diálogo.
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As principais demandas dos chavistas são o fim do bloqueio e a devolução de ativos estatais no exterior que foram apropriados pela oposição. O caso mais emblemático, além do ouro venezuelano no Banco da Inglaterra e a fábrica de fertilizantes Monómeros na Colômbia, é a rede de refinarias Citgo, que fica nos EUA e pertence à estatal petroleira da Venezuela, PDVSA. Desde 2017, a companhia é alvo de sanções, mas foi depois da autoproclamação de Guaidó que ela passou a ser controlada por opositores com anuência da justiça norte-americana. A empresa está avaliada em 8 bilhões de dólares. Durante os anos em que esteve controlada pela oposição, foi ameaçada de ser vendida para sanar dívidas da PDVSA com credores internacionais.
Vaz diz que, por conta da crise energética, é possível que seja permitido “um certo intercâmbio com a Citgo, já que ela tem refinarias preparadas para o petróleo extra-pesado venezuelano”, mas acredita ser improvável a devolução completa da empresa à Venezuela.
“É possível que haja um acordo muito limitado de levantamento de sanções que apenas permita à Citgo comprar ou receber petróleo venezuelano, talvez trocá-lo por gasolina, mas eu acho que isso seria feito de forma muito pontual e isolada. Acho complicado, pelo menos nessa conjuntura, que a Citgo possa voltar às mãos do Estado venezuelano”, afirmou.
Decadência de Guaidó: como fica a oposição?
Há mais de três anos tentando construir uma presidência fictícia, o ex-deputado Juan Guaidó está perdendo cada vez mais apoio internacional e da própria direita venezuelana. Além do fato de Biden ter enviado delegações para dialogar diretamente com Maduro, o direitista deve perder o apoio da Colômbia, que foi um de seus principais aliados regionais durante o governo de Iván Duque. O presidente eleito, Gustavo Petro, tomará posse no dia 7 de agosto e já prometeu restabelecer relações com o governo venezuelano.
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Entre os partidos do campo opositor, ganham destaque as disputas internas e as acusações de corrupção envolvendo o controle dos ativos no exterior, levando alguns setores a questionarem a liderança do ex-deputado.
A trajetória recente de Guaidó, marcada por escândalos e alinhamento incondicional aos EUA, também encontra rejeição entre os eleitores. Segundo pesquisa realizada em julho pela empresa Delphos, mais de 55% dos entrevistados disseram que “não existe” ou que “não sabe” quem é o líder da oposição na Venezuela. Além disso, segundo a mesma pesquisa, mais de 64% dos entrevistados se posicionaram de forma contrária às sanções impostas pelos EUA e encorajadas por Guaidó.
Para Reyes, a atual situação de emergência energética vivida pelos EUA deve retirar ainda mais força desse setor da direita venezuelana e a tendência é de que “a oposição siga aparecendo cada vez menos”.
“O conflito político gerado na Venezuela é do país contra os EUA. Há anos que não estamos brigando mais com a oposição porque o que esse campo político tem sido é uma espécie de fantoche das intenções de Washington que, em última instância, quer se apoderar dos recursos, do ouro, da água e do petróleo”, disse.
Edição: Arturo Hartmann