A Justiça de Atalaia do Norte (AM), onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados, decidiu remeter o caso à Justiça Federal. O motivo foi o reconhecimento de que as mortes têm relação com os direitos indígenas, tema de competência federal. A decisão foi tomada na última quinta-feira (7).
Com a mudança, cresceu a expectativa pela responsabilização do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do titular da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier. A função de apresentar a ação penal à Justiça deixa de ser do Ministério Público do Amazonas e passa a ser do Ministério Público Federal (MPF).
O MPF já manifestou o entendimento de que o desmonte da Funai promovido pelo governo Bolsonaro teve papel decisivo nas mortes do indigenista e do jornalista. O entendimento está em uma petição judicial assinada na última semana pelo procurador da República no Amazonas, Fernando Merloto Soave, em conjunto com a Defensoria Pública da União.
"Os graves e tristes acontecimentos dos últimos dias, em que ocorreu o assassinato de dois grandes defensores de direitos humanos, são reflexo direto do aprofundamento da omissão estrutural do Estado em relação aos povos indígenas isolados", escreveram MPF e DPU.
"Bases precárias, desestruturadas, sem recursos humanos, materiais, técnicos e orçamentários, estavam esquecidas no meio da floresta no ano de 2018. A União, por sua vez, falhou ao não conferir recursos orçamentários que permitiriam o cumprimento da função constitucional conferida ao órgão indigenista", continuam.
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Responsabilização de Bolsonaro é improvável, diz advogado
A transferência do caso à Justiça Federal pode resultar em uma condenação penal de Bolsonaro e os responsáveis pela atual política indigenista? É improvável, na avaliação do advogado, especialista em Direito Penal, mestre em Antropologia e doutorando pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Felipe Jucá.
Ele explica que a competência federal não significa que Funai e governo federal serão, automaticamente, objetos da investigação do duplo homicídio. “Os dirigentes do alto escalão podem ser responsabilizados, mas não diretamente pelo homicídio. Acho muito difícil, juridicamente falando, que eles sejam incluídos na denúncia desse crime”, diz.
Para isso acontecer, segundo Jucá, teria que ficar provado o mínimo de nexo causal, que é o vínculo de causa e efeito entre uma ação e outra. “Não acredito que chegue a tanto, porque, no Direito Penal, a responsabilidade é subjetiva, ou seja, pertence ao autor do crime", explicou.
Ainda assim, Bolsonaro, Xavier e outros membros do governo poderiam ser investigados, porém, não pelo homicídio. “Mas sim havendo indícios de outras condutas criminosas. Inclusive por improbidade ou por omissão na demarcação e proteção das terras indígenas”, diz Jucá.
Transferência aumenta rigor da fiscalização
Segundo o pesquisador, na Justiça Federal mandantes e executores podem responder por crimes ligados à violação de direitos humanos e pegar penas maiores.
“Pode haver a imputação de outros tipos penais, para além do homicídio. A Justiça Federal também é competente para processar e julgar casos que tenham como objeto disputas de direitos indígenas”, explicou.
Crescem também o rigor e a isenção das investigações, de acordo com Jucá. O MPF, a Polícia Federal (PF) e a Justiça Federal atuam mais longe da interferência do poder local, que pode ter vínculos com os responsáveis pelas mortes.
“Também há uma questão de manter a boa imagem do Brasil no exterior, que já está tão desgastada atualmente, pois o caso repercutiu internacionalmente. Então há que se considerar como uma medida política, inclusive com o Senado articulando a provocação dessa federalização”, apontou.
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Foco do MPF deve ser mandante, diz especialista
Com a mudança, o advogado afirma que a identificação do mandante deve ser o ponto de partida para as investigações. A possibilidade de os assassinatos terem sido encomendados havia sido descartada pela PF no início das diligências. Após pressão contrária, principalmente da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), o órgão de investigação voltou atrás e reconheceu a possibilidade de haver mandante.
“Há questões que não são levadas em conta na investigação pelas polícias, como os interesses econômicos por trás desses homicídios. A polícia parecia focalizar a elucidação dos crimes tão somente em questões de materialidade e autoria. Mas os conflitos territoriais geralmente envolvem interesses econômicos, e talvez a investigação pudesse se aprofundar naquilo que está por trás do fato”, afirmou Jucá.
Os conflitos territoriais geralmente envolvem interesses econômicos.
Não houve federalização
Na última quarta-feira (9), a comissão do Senado que investiga os assassinatos aprovou um pedido de federalização das investigações que seria levado à Justiça Federal e ao Ministério Público. O procedimento, no entanto, não é o mesmo do que a transferência do caso à Justiça Federal.
Segundo Jucá, a federalização é um meio de proteger direitos humanos e se dá por meio de uma apreciação do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Neste caso, tecnicamente não houve decisão sobre a federalização, mas a justiça local declinou a competência para a Justiça Federal”, esclarece o advogado.
Edição: Rodrigo Chagas