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Dossiê inédito revela como Bolsonaro transformou a Funai em um órgão anti-indígena

Relatório produzido com participação de servidores expõe clima de assédio e perseguição provocado militares e ruralistas

Brasil de Fato | Lábrea (AM) |

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Bolsonaro em encontro com indígenas na praça dos Três Poderes em Brasília em agosto de 2021 - ISAC NOBREGA / BRAZILIAN PRESIDENCY / AFP

A subversão da missão institucional da Fundação Nacional do Índio (Funai) atribuída ao governo Jair Bolsonaro (PL) está detalhada em fatos e números por um dossiê de mais de 200 páginas divulgado nesta segunda-feira (14). 

O estudo é o primeiro do gênero, realizado com base em documentos oficiais e depoimentos de servidores. Ele é resultado de três anos de monitoramento conjunto feito pela associação que congrega servidores da Funai, a Indigenistas Associados (INA), e pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).  

Com o desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, aumentaram as críticas direcionadas à ausência da Funai no Vale do Javari (AM).  “Queremos registrar a magnitude do estrago que vem sendo operado nas entranhas da Funai”, explicou Fernando Vianna, presidente da INA.

“Em vez de proteger e promover os direitos indígenas, a atual gestão da Fundação decidiu priorizar e defender interesses não indígenas, como ficou claro no julgamento do marco temporal, que seria retomado agora em junho”, acrescentou os servidor, em comunicado divulgada à imprensa. 

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Ruralismo, militarismo e assédio 

O dossiê revela que apenas duas das 39 unidades descentralizadas da Funai, chamadas Coordenações Regionais (CRs), são chefiadas por servidores públicos. Outras 19 são coordenadas por membros das Forças Armadas; três por policiais militares e duas por policiais federais. 

No restante, a chefia é exercida por servidores substitutos ou sem vínculo com a administração pública. A diretoria do órgão indigenista é formada por dois policiais e um militar. O presidente, Marcelo Xavier, é policial federal. 

Organizações indígenas denunciam, desde o início do governo, que a militarização da Funai prejudica a interlocução entre as chefias regionais e povos originários. Quase sempre, os militares em cargos de chefia ocuparam o lugar de indigenistas experientes e tornaram a gestão menos democrática e eficiente.

Desde 2019, o dossiê aponta crescimento vertiginoso no número de processos administrativos disciplinares (PADs) contra servidores de carreira, procedimento que pode resultar em demissão. 

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Os números, segundo o estudo, são reflexo de uma rotina de medo e intimidação imposta pela combinação do militarismo com a influência ruralista. Ao se dedicarem à defesa de seu emprego no âmbito do PAD, os servidores perdem tempo que seria melhor gasto no trabalho em prol dos indígenas. Há trabalhadores, segundo a INA, que respondem simultaneamente a dois ou três processos.

Um dos casos envolve um servidor que foi denunciado, por ordem do presidente da Funai, à Corregedoria da Funai e à Polícia Federal. A pedido da procuradoria jurídica da Funai, o servidor analisou uma ação judicial que anulava procedimentos demarcatórios de um território indígena. Na análise, recomendou internamente que a Funai se posicionasse a favor da demarcação, com base em critérios técnicos. Além de prejudicar o servidor, Xavier acatou a sentença que reverteu o processo de demarcação. 


Lideranças queimam foto do presidente da Funai após episódio de repressão à manifestação indígena em Brasília / Divulgação/Apib

Quem manda na Funai 

O dossiê lembra que o presidente da Funai  é um homem de confiança de Nabhan Garcia, atual Secretário Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura. Além de influente latifundiário e um dos pilares do ruralismo no Brasil, Garcia é um inimigo autodeclarado da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas.
 
Feita por Bolsonaro, a promessa de campanha de “não demarcar um centímetro de terra indígena” foi cumprida. A perspectiva desapareceu do planejamento do governo federal. Segundo o estudo, não houve programas orçamentários específicos direcionados aos povos indígenas no Plano Plurianual (2020-2023) ou na Lei Orçamentária de 2020 redigida pelo Executivo.

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A paralisação das demarcações é considerada por juristas uma afronta à Constituição Federal, que reconhece os direitos originários sobre as terras, delegando à União a obrigação de demarcá-las e protegê-las. 
 
O problema é agravado pela escassez de recursos que chegam às ações desenvolvidas por servidores experientes no interior das terras indígenas. O último relatório da Funai mostra que em 2020 o número de cargos vagos (2.300 vagas) era maior do que a quantidade de vagas ocupadas (2.071). Segundo o dossiê, o número demonstra um esvaziamento inversamente proporcional ao crescimento da população indígena do País, que hoje é estimada em cerca de 1 milhão. 

Funai com a “foice no pescoço”

O relatório relembra uma frase emblemática do então candidato a presidente Jair Bolsonaro, antecipando o que viria a seguir. “Se eu for eleito, vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho”, declarou, quando era deputado federal. 

Tanto foi assim que uma das primeiras medidas administrativas de Bolsonaro foi tentar vincular a Funai ao Ministério da Agricultura, dominado por ruralistas. O plano foi frustrado por uma intensa mobilização do movimento indígena, seguida por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou a mudança inconstitucional. 

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“A atual Funai se revela um caso gritante de erosão de direitos, não somente na política indigenista, mas também em ações correlatas, como a ambiental, a cultural, a de relações raciais, que também se deterioram Brasil afora”, afirmou a porta-voz do Inesc Leila Saraiva, em nota divulgada à imprensa. 

Procurada pela reportagem, a Funai não se manifestou até o momento. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho