Menos de 30% das crianças entre 2 e 9 anos fazem três refeições por dia no Brasil. O dado alarmante foi divulgado pelo II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Covid-19, divulgado no início do mês pela Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
A fome e a desnutrição na infância podem trazer consequências para toda a vida. E é sobre isso que conversamos com Maria Edna Bezerra, doutoranda em Saúde Coletiva na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e membra do grupo de trabalho de racismo e saúde da associação brasileira de saúde coletiva – Abrasco.
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Brasil de Fato: A pesquisa da Rede PenSSAN sobre a fome no Brasil ,publicada na semana passada, mostra que menos de 30% das crianças de 2 a 9 anos faz três refeições por dia no Brasil. Qual o impacto desse quadro de fome na saúde das crianças? E qual o impacto disso a longo prazo?
Maria Edna Bezerra: De imediato, o que a gente sinaliza que acontecerá com essas crianças e o que vem acontecendo é um quadro de perda de peso, aumento da irritabilidade, há dificuldade de concentração, há prejuízo no rendimento escolar. A gente vai ter ainda déficit no crescimento, quando essa situação se agrava, quando essa situação de insegurança alimentar se perpetua por mais tempo. A gente também pode ter quadros de anemia e de hipovitaminoses.
A longo prazo, consequentemente vão se somando esses déficits ao longo da vida da criança. Então, ela não vai desenvolver a altura que seria geneticamente determinada para ela, vai ter sempre um déficit no desenvolvimento que potencialmente ela poderia alcançar. Vai ter um prejuízo muito grande com relação ao seu desenvolvimento cognitivo, levando a um menor rendimento escolar. Ela vai ter também outros quadros associados com a falta de alimento, como o quadro geral das hipovitaminoses.
O IBGE atualmente separa a insegurança alimentar em três estágios, leve, moderada e grave. Os movimentos sociais, por outro lado, reivindicam que, na verdade, qualquer desses quadros deve ser definido como fome. Para essas crianças, existe, de fato, diferença nas consequências entre a insegurança alimentar leve ou grave?
Nós defendemos que qualquer desses quadros de insegurança alimentar, seja leve, seja grave ou moderado estão de fato implicando no não asseguramento do direito humano à alimentação. Todo ser humano tem que ter o alimento em quantidade e em qualidade para a garantia da sua vida com dignidade. Isso significa ele comer de manhã, meio dia e de noite, e não apenas uma refeição, que é o que nós estamos vendo agora com a nova pesquisa, né?!
Trabalhadores que ou almoçam, ou só tomam café, ou fazem um jantar, e aqueles que de fato não têm o alimento em nenhum dos horários e passam um quadro de fome mais grave. Qualquer uma dessas situações, no caso das crianças, também vai ser prejudicial, quer seja leve, moderada ou grave. A diferença é o impacto vai sendo refletido de forma gradativa no desenvolvimento dessa criança.
Num contexto como o atual, de inflação muito alta, aumento constante dos preços dos alimentos, e, por outro lado, a relativa acessibilidade dos ultraprocessados, é possível que a chamada "fome oculta" também se apresente entre as crianças?
Uma outra situação que a gente identifica nesse quadro de insegurança alimentar que vive a população brasileira é o aumento, sim, da fome oculta. E o que é essa fome oculta? É quando as famílias de baixa renda que não têm condições de ter acesso a uma alimentação adequada, fonte de nutrientes e minerais, como frutas e verduras, leguminosas, ela acaba acessando alimentos ultraprocessados, que são alimentos que vão enganar a fome, que vão trazer uma falsa sensação de saciedade, mas que não vão contribuir com nutrientes para o quadro de saúde dessa pessoa.
Isso também acontece com as crianças. Hoje as crianças têm consumido menos frutas, menos verduras e consumido mais alimentos ultraprocessados, como bolachas, salsichas, salames. Esses alimentos têm um alto conteúdo de gordura, de sódio, alguns têm um alto conteúdo de açúcar. Esses alimentos saciam a fome, mas não trazem nenhum nutriente que é necessário para que a gente tenha uma boa saúde. Isso acontece, sim, com as crianças.
E com a pandemia, tem se agravado mais ainda, porque as crianças, por conta da suspensão das aulas [presenciais], não indo para a escola, não tinham acesso à alimentação escolar, que era fornecida pelo Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), e em suas casas viveram a situação da escassez de alimento. Isso fez com que refletisse sobre esse quadro de insegurança alimentar agravado e aumentado para essa parcela da população. O não ter a merenda escolar, não estar dentro do ambiente da escola e ainda em suas casas vivendo uma situação de privação do alimento.
Outro dado importante que o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da Covid-19 aponta é que a fome tem cor e tem gênero no país, né? Você poderia comentar sobre essa relação entre o racismo estrutural e a fome no país?
Os grupos mais afetados, de fato, têm cor e têm gênero. E é um reflexo do racismo estrutural da nossa sociedade, que coloca à margem a população negra e parda ao longo de toda uma história de construção de país.
Esse racismo estrutural leva a situações de desigualdades muito grandes, desde a questão de acesso à escola, trabalhos com menores remunerações, o que vai se refletir agora nesse quadro de de insegurança alimentar. Então, quem mais tem apresentado um quadro de insegurança alimentar é a população negra quando comparada com a população branca.
A pesquisa traz, então, que enquanto a população negra teve um aumento 60% convivendo hoje com a fome, seja ela em grau leve, moderado ou grave, a população branca teve um aumento apenas 34,6%. Quando a gente vai para a questão de gênero, observa-se que, se as famílias são chefiadas por mulheres, e aí também por mulheres pardas ou negras, 19,3% dessas famílias chefiadas por mulheres apresentam um quadro de insegurança alimentar grave, média ou leve. Em comparação, famílias que sejam chefiadas por homens, em que você vai ter um percentual de apenas 11,2%.
E ele é um fruto, um produto de todo um desmonte que estamos vivendo nos últimos anos de políticas públicas que asseguravam o direito humano à alimentação.
Então, mais uma vez a gente se depara com esse fenômeno da nossa sociedade, que essa disparidade de gênero. As mulheres acabam tendo menos anos de escolaridade, acabam tendo empregos com menores remunerações, acabam também chefiando suas famílias de forma solo, criam seus filhos sozinhas, e esse quadro se reflete também na hora de a gente avaliar como se dá essa dimensão de insegurança alimentar, que incide mais sobre essas famílias em que as mulheres são as chefes. E mais grave quando essas mulheres são pardas ou negras, em comparação com famílias chefiadas por homens brancos.
Então, esse quadro de insegurança alimentar tem raça, tem cor, tem gênero e tem classe. E ele é um fruto, um produto de todo um desmonte que estamos vivendo nos últimos anos de políticas públicas que asseguravam o direito humano à alimentação. Então desde o golpe, com a retirada da presidenta Dilma, que se iniciou ali um processo já de desmonte. A gente havia saído do Mapa da Fome em 2014, e em 2017 a gente retorna a esse mapa.
Uma das primeiras ações do governo Temer, que vai ter um impacto nesse cenário, que vai influenciar também, é o desmonte do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que fazia um papel de incentivar a Agricultura Familiar, a Reforma Agrária – ainda que incipiente que a gente tinha, mas havia ações nesse sentido. E aí a gente vem com o governo do genocida, que desmonta uma série de outras políticas: política de aquisição de alimentação escolar, por exemplo.
E um dos argumentos que o governo vai usar para desmontar o programa é o fechamento das escolas por conta da pandemia. A gente tem também um enfraquecimento do Programa Nacional de Alimentação Escolar, a gente tem o fim do programa Bolsa Família... Então todos esse desmonte desse conjunto de políticas vai refletir nesse quadro de insegurança alimentar. E aí a gente tem como grupo mais vulnerabilizado as crianças, as mulheres e a população negra e parda. Então é esse cenário que a gente vive de desumanidade.
E a gente não pode ficar indiferente a essa situação. A gente tem que, de fato, se indignar, porque não podemos fechar os olhos frente a essa desumanização com as pessoas indo para a fila do osso para se alimentar. Essas são situações que nos chocam, e a população brasileira precisa se colocar com força na lutar contra todas essas iniquidades.
Fonte: BdF Bahia
Edição: Elen Carvalho