Em maio de 2022, Genivaldo Santos foi abordado por policiais rodoviários no interior do Sergipe por não usar capacete ao dirigir uma motocicleta. No momento da abordagem, o sobrinho de Genivaldo avisou aos policiais que o tio tinha transtornos mentais e, em reforço a isso, os agentes encontraram uma cartela de medicamentos controlados no seu bolso. Ainda assim, os policiais tentaram imobilizá-lo com as pernas em seu pescoço. No chão, foi algemado e teve os pés amarrados. Em seguida, Genivaldo foi colocado no porta-malas do carro da polícia, que estava com os vidros fechados. Os policiais jogaram gás e fecharam o compartimento. Debateu-se com os pés para fora do porta-malas, enquanto os policiais pressionavam a porta.
Posteriormente, os policiais disseram que o homem teve um "mal súbito" no trajeto para a delegacia e foi levado para o hospital, onde morreu. O corpo foi recolhido pelo Instituto Médico Legal que informou em laudo que Genivaldo morreu por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda. Ainda que ele não tivesse morrido, o caso é de crime contra a humanidade, sim, é tortura.
Práticas assim podem ser consideradas tortura, ainda que perpetradas de modo sistemático em nosso país. O objetivo consiste em infligir dor, intimidar, castigar e coagir, como define a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas. Difícil considerar como meros episódios isolados de violência no tempo e no espaço. Esses são atos frequentemente públicos, cometidos regularmente contra populações historicamente vulneráveis, como as negras e pobres. E tais comportamentos devem ser questionados, em especial, em datas como o dia 26 de junho, consideradas pelas Nações Unidas como o “Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura”.
De fato, em nossas últimas publicações sobre o tema, aprofundamos a ideia, já enunciada por outros pesquisadores e por organizações da sociedade civil, de que a tortura no Brasil vem ganhando cada vez mais contornos intrincados. A prática não deve ser compreendida como mero produto de um comportamento sádico de um indivíduo. É, sobretudo, algo “estrutural” e difuso, perpetrado contra grupos considerados “ameaçadores” e, assim, sujeitos a processos de subalternização. Não à toa, a tortura é narrada como marca cotidiana por muitas pessoas, as quais vivem com receio de a qualquer momento serem abordadas pela polícia, terem a casa invadida por agentes estatais, serem vítimas de “balas perdidas” em operações policiais deflagradas em periferias urbanas, serem humilhadas em razão de sua cor da pele, entre outras situações altamente vexatórias e mesmo letais. São construídas, assim, vidas torturáveis, isto é, trajetórias subsumidas a uma lógica de desprezo e indiferença.
Somado a esse cenário, ao analisarmos o episódio com o qual começamos este texto, percebemos o quanto também vigora em nosso país o que pode ser chamado de “tortura escancarada”. Uma tortura nua e explícita, tortura mais vil, utilizada para castigar, punir e matar pessoas sem qualquer chance de defesa.
De fato, a tortura já foi descrita pela literatura especializada como algo invisível, que ocorreria em locais de pouca visibilidade social; indizível, porque o medo e a revitimização calam vítimas e testemunhas; insindicável, porque, mesmo quando há denúncias, poucos seriam os casos devidamente apurados; e impunível1, porque são poucos os casos que chegam a ser processados no sistema de justiça criminal. Mesmo quando o são, não necessariamente promovem a responsabilização dos acusados.
Com base nessa categorização, não seria exagero reforçar que a tortura segue indizível, insindicável e impunível em nosso país. No entanto, questionamos se ainda se sustenta a noção sobre a sua invisibilidade, sobretudo, em tempos em que altos escalões governamentais apoiam explicitamente a tortura e destroem a frágil política de prevenção ao ato2. Nunca vimos tantas cenas de violências estatais, boa parte filmada, televisionada e “viralizada” em redes sociais. Não são poucos os casos, nem pontuais. Muitos se repetem de tal forma que parecem não causar mais horror, repulsa ou mobilização social.
“Genivaldos” tornam-se, infelizmente, “peças” comuns em uma sociedade cega, surda e muda pelo excesso de violência. Adota-se em pleno Estado de Direito, consagrado ao menos no plano formal, uma espécie de suplício público de grupos, cujas vidas são renegadas pela sociedade e passíveis de serem eliminadas. Em contextos assim, ainda que também se opere dessa forma, não é tão necessário mascarar atos torturantes. Ao contrário. Explicitá-los dá gosto a certos setores públicos que aplaudem enfatizando que “direitos humanos são privilégios dos bandidos”3. Logo, “bandido bom é bandido morto”, sendo considerado “bandido” todos aqueles com os quais as elites econômicas e sociais passam a vida buscando se distinguir, explorar e espoliar.
Há alguns anos, indicamos que datas como o “Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura” deveriam ajudar a evitar que a tortura fosse banalizada e justificada4. Há um tempo apontamos a importância de nos mantermos atentas e fortes para impedir que determinados fatos sejam usados para abrir as porteiras que potencializam a dor dos mais vulneráveis. Temos gritado “Ditadura nunca mais!”, até quase a rouquidão e, apesar do cansaço que nos ronda, seguiremos na luta.
Realmente esperamos que o dia 26 de junho ajude a questionar as dinâmicas torturantes que afligem nossa sociedade, que fustigam “Genivaldos” por meio de atos violentos bruscos e escancarados, mas que também atormentam quase de modo dissimulado pessoas que vivenciam a tortura como uma marca cotidiana.
*Thais Lemos Duarte é pesquisadora do CRISP/UFMG e já foi integrante do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Discriminação (MNPCT); Maria Gorete Marques de Jesus atua como pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
**Este é um artigo de opinião e a visão não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Glauco Faria