Enquanto a investigação policial tenta desvendar a motivação e mais detalhes sobre as mortes do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, na terra indígena Vale do Javari, no extremo oeste da Amazônia, a opinião pública se deparou com o cenário de abandono da política ambiental e indigenista sob o governo de Jair Bolsonaro (PT). Um dossiê de 172 páginas divulgado nesta semana reuniu três anos de monitoramento que comprovariam uma guinada da Funai (Fundação Nacional do Índio) para uma "política anti-indigenista".
A autoria do documento é do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e da Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Fundação, muitos deles ex-colegas ou entusiastas do reconhecido trabalho de Bruno Pereira. Na avaliação de organizações de indigenistas e de parlamentares da oposição, a "nova Funai" criou uma atmosfera favorável à prevalência de interesses alheios aos povos originários.
Um dos destaques do dossiê é a radiografia feita sobre a gestão do delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier desde que foi alçado à presidência da Funai, em agosto de 2019. O descontentamento desde então se pauta, segundo o documento, no esvaziamento de quadros da entidade, cortes de orçamento e equipe, episódios de assédio institucional e nomeação de militares para cargos-chave.
De acordo com Leila Saraiva, assessora política do Inesc e uma das autoras do dossiê, a perseguição a funcionários e lideranças indígenas que adotem posturas consideradas "inconvenientes" também faz parte do arsenal de Xavier e sua equipe. Embora ressalte que a política indigenista nunca foi prioridade, ela acredita que a inversão de finalidade da Funai é sem precedentes.
"Nunca antes a estrutura do principal órgão indigenista do país se transformou tanto em advogada de interesses alheios, inclusive opostos ao dos povos indígenas. Hoje em dia, a estrutura da Funai foi capturada por uma política anti-indígena, que é muito diferente dos problemas em governos anteriores, incluindo os militares", afirma.
Saraiva acredita que os problemas atuais, em escala e volume, têm a ver com o projeto de país que está em disputa, e qual tipo de desenvolvimento que se retroalimenta com o discurso bolsonarista. "Os povos indígenas parecem representar uma barreira para um projeto que é assumidamente predatório, invasor de terras, anti-ambiental etc".
A deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR) relembra as invasões em território Yanomami por garimpeiros, segundo consta em relatório publicado em abril deste ano pela Hutukara Associação Yanomami. E também menciona a morte do jovem indígena Isac Tembé pela Polícia Militar de Capitão Poço, no Pará, em 12 de fevereiro de 2021.
Segundo ela, os casos são exemplos da insegurança vivida nos estados que compõem a Amazônia Legal – os sete estados do Norte mais Mato Grosso e Maranhão. Uma violência que também afeta os servidores públicos "que estão por aí dando suas vidas, e isso é o que mais nos preocupa", disse a deputada em entrevista ao Brasil de Fato.
Redução do alcance da rede de proteção local
O problema também passa pela redução da equipe técnica da Funai. O dossiê aponta que, em 2020, havia somente 2.071 profissionais em atuação, sendo 1.717 efetivos, enquanto 2.300 cargos permaneciam vagos.
"A maior terra indígena do país, que pertence aos Yanomami, tem 14 servidores especialistas, enquanto o Vale do Javari, que também é grande, conta com somente 8. Números insuficientes para os direitos humanos", avalia Joênia.
Saraiva também relata a penúria por que passam as equipes que atuam localmente. "Das 39 coordenações regionais, apenas duas são chefiadas por servidores de carreira; outras 6 são por pessoas que nunca tiveram experiência com administração pública; 5 por policiais militares ou federais; e o restante é todo militar", enumera.
O alegado aparelhamento da Funai, segundo ela, é fruto de promessas feitas pela própria presidência. "A Funai chegou a se reunir com ruralistas para dizer ‘nós vamos colocar gente ali que vai atender ao interesse dos senhores’", afirma a indigenista.
Durante a campanha presidencial de 2018, Bolsonaro declarou que daria uma "foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço". Em diversas ocasiões ele também afirmou que não haveria demarcações de terras indígenas em seu mandato, o que de fato não ocorreu graças ao desinteresse da Funai, órgão responsável por esse tipo de medida.
Desvios na rota do órgão indigenista oficial do país
Criada em 1967, a Funai atualmente é abrigada no Ministério da Justiça. Está no papel legal e institucional da fundação fazer valer os direitos dos povos indígenas, sem deixar de observar e respeitar seus costumes, línguas, crenças e tradições.
Para isso, a fundação sempre tentou equilibrar uma articulação complexa entre as comunidades tradicionais, muitas delas isoladas, o poder público, as universidades e algumas entidades não governamentais. Uma prática constantemente condenada por Bolsonaro, que teoriza sobre uma espécie de aliciamento dos indígenas para ceder suas terras "inocentemente" em nome de supostos interesses estrangeiros.
O indigenista Guenter Francisco Loebens, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), se queixa da ruptura das pontes entre as entidades. "Hoje não existe um diálogo. A Funai fechou as portas não só para o Cimi como para outras organizações e o próprio movimento indígena", expõe.
Segundo o missionário, o único caminho possível no momento para que o governo exerça alguma proteção aos territórios indígenas é pela judicialização via ministérios públicos. "O governo federal pretende fazer valer sua proposta integracionista. Ou seja, avançar com a exploração ilegal dentro desses territórios até destruí-los para criar uma situação de não-retorno para as populações indígenas", constata.
Vigilância e combate realizados por conta própria
A falta de amparo e a ausência de recursos do estado também estariam facilitando a presença de garimpeiros, madeireiros, caçadores e narcotraficantes em terras indígenas. Para cobrir lacunas, ganharam importância organizações independentes, como a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que exerceu papel importante nas buscas por Dom e Bruno.
"A presença dos invasores significa não só aumenta a possibilidade de novos massacres, mas também de transmissão de doenças contagiosas. Até em função disso, a Univaja criou essa equipe de vigilância que o Bruno estava apoiando, uma vez que o Estado não cumpre o seu papel", menciona Loebens.
Os ativistas do Inesc e da INA acreditam que a repercussão internacional é um fator decisivo para alterar o curso dos acontecimentos, e por isso planejam traduzir trechos do dossiê para outras línguas. "A gente sabe que só pode pressionar para desmontar essa bomba-relógio que virou a Funai com pressão externa, e mudanças são urgentes", afirma Saraiva.
Para Joênia, é necessário expor as verdadeiras finalidades da "Nova Funai" (título criado pelo poder Executivo). "Ela serve para justificar uma política anti-indígena ou para cumprir um dever constitucional? Isso deve ser investigado, inclusive por nós parlamentares", conclui.
A reportagem entrou em contato com a Funai, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.
Edição: Felipe Mendes