entrevista

“O Congresso precisa corrigir sua negligência com direitos LGBTQIA+”, afirma Fabiano Contarato

Senador defende criação de leis para criminalizar a LGBTfobia e regulamentar casamento entre pessoas do mesmo gênero

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Contarato: “Como LBGT, espero contribuir para que nosso mandato abra portas para outras pessoas se elegerem" - Marcos Oliveira/Agência Senado

O Congresso Nacional tem sido um obstáculo ao avanço dos direitos LGBTQIA+. Projetos como o 122/2006, que criminaliza a LGBTfobia, tramitam há anos sem aprovação. Nessa ausência de legislação específica, o Judiciário tem sido a única via de reivindicação. É por um entendimento do STF (Supremo Tribunal Federal), por exemplo, que a LGBTfobia foi equiparada ao racismo no Brasil. Também é pela via judicial que casais LGBTQIA+ conseguem casar e ter direito a adotar filhos. 

“O Congresso precisa corrigir sua negligência”, diz o senador Fabiano Contarato (PT), defensor da agendas LGBTQIA+ no Senado Federal. É dele, por exemplo, uma proposta que proíbe a discriminação com base na orientação sexual a doadores de sangue. A medida foi aprovada no Senado, mas ainda está em tramitação na Câmara dos Deputados. Também tramitam outras propostas de Contarato, como um projeto de lei para incluir perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero nos questionários do censo demográfico e outro para garantir direito à retificação gratuita do prenome e do gênero para pessoas trans. 

Contarato, que foi alvo de homofobia durante seu trabalho na CPI da Covid, também precisou recorrer ao Judiciário para conseguir adotar seus filhos Gabriel e Mariana junto com o esposo Rosrig, com quem é casado há mais de dez anos. À Agência Pública, ele disse que, mesmo diante dessas dificuldades, se considera privilegiado como sendo um senador branco e cisgênero. “Minha realidade é distante das pessoas que não conhecem seus direitos ou não têm recursos para contestar essas decisões absurdas, que acabam prevalecendo país afora”. 

Leia os principais trechos da conversa com o senador sobre os obstáculos para o avanço de direitos LGBTQIA+ no Congresso Nacional.  

Em junho, você fez um pronunciamento no Plenário do Senado afirmando que a “Casa sistematicamente fecha a porta não só à população LGBTQIA+, mas também aos pretos, aos pobres, aos índios e aos quilombolas”. Quão distante o Senado está hoje, em termos de representatividade, da população brasileira? 

Precisamos ter como referência nossa história política recente: o Brasil viveu 21 anos de ditadura civil-militar, que fechou o Congresso Nacional, cassou parlamentares, extinguiu partidos políticos, acabou com direitos políticos e civis, perseguiu, torturou, matou pessoas, amordaçou a imprensa e enterrou todas as liberdades. Entramos numa democracia em 1985, e até hoje ainda removemos o entulho autoritário que persiste na violência estrutural do Estado, nos preconceitos enraizados na sociedade e no domínio que as elites exercem sobre as principais decisões do país. 

Infelizmente, setores da sociedade altamente organizados e financeiramente capilarizados, com poder econômico, força de lobby corporativo-institucional, comandam grande parte da agenda governamental e legislativa do país. É por isso que as conquistas progressistas em favor dos direitos humanos e das maiorias minorizadas precisam ser comemoradas, mas também constantemente ampliadas. É essencial que o Legislativo derrube muros e se abra para a pluralidade e para a diversidade de toda a população brasileira. E o voto consciente é caminho essencial para isso. A Constituição Cidadã de 1988, pilar do Estado Democrático de Direito que vige neste país, garante que todos somos iguais perante a lei. População LGBTQIA+, negros, pobres, mulheres, índios, quilombolas: todos precisam e devem estar representados no Parlamento. Como LBGT, espero contribuir para que nosso mandato abra portas para outras pessoas se elegerem e tomarem para si espaços historicamente negados a todas as maiorias minorizadas deste país. 

Podemos dizer que temos um Senado é antiLGBTQIA+?

O Senado Federal é um espelho da sociedade, assim como a Câmara dos deputados e de vereadores, as Assembleias Legislativas e todos os representantes eleitos que governam a União, os Estados e os municípios. Infelizmente, o governo Jair Bolsonaro (PL) impôs ao país retrocessos brutais nos avanços das políticas LGBTQIA+, e a corrente política que ele representa se associa a grupos de militares, entidades religiosas e setores econômicos completamente inimigos dos nossos direitos. 

É nosso papel lutar para que o Senado diminua resistências e envolva seus 81 membros nas pautas que precisamos aprovar e fazer virarem leis. Sempre haverá oposição, mas o Parlamento é espaço propício ao diálogo, ao convívio civilizado entre diferentes pontos de vista, à busca de consensos, à redução de radicalismos mediante o convencimento. Por mais difícil que pareça a luta contra o obscurantismo, seguiremos firmes com nossas bandeiras progressistas e humanas. 

O exercício da política é um avanço civilizatório inegociável. Sempre digo que a democracia é o melhor terreno para se plantar direitos, e o Congresso tem esse campo fértil.  Todos os avanços em termos de conquistas de direitos para a comunidade LGBTQIA+ foram resultado de decisões judiciais. Nesse sentido, a aprovação de normas protetivas aos nossos direitos pelo Congresso Nacional constituiria marcos históricos. 

Entre as conquistas pela via judicial, além do casamento, o direito de adoção é outro grande marco. Assegura um direito básico às famílias homoafetivas, em pé de igualdade com as demais. Precisamos inscrever este direito na legislação brasileira, porque a mudança dos membros o Supremo Tribunal Federal (STF) de tempos em tempos aumenta as chances de que indivíduos e instituições se recusem a reconhecer nosso direito.

Você falou das conquistas dos direitos em decisões judiciais. E o Judiciário reconhece, desde 2011, a união estável homoafetiva como entidade familiar. Qual o empecilho para que o Legislativo reconheça o casamento entre pessoas do mesmo gênero?

É a resistência política enraizada em 500 anos de exclusão e preconceito, somada ao fato de que bancadas que representam determinadas denominações religiosas se organizam no Congresso contrariamente a avanços na pauta LGBT. Sou católico, e defensor ardoroso do Estado laico, princípio constitucional tão agredido por correntes políticas de extrema direita que manipulam mentes e corações e envenenam o cenário político nacional. 

O debate qualificado e profundo precisa ser restaurado. Confio nos princípios iluministas que fundaram nossa democracia, e não permitiremos que levem o Brasil de volta para o buraco da Idade Média. Eu já fui à tribuna do Plenário do Senado defender que esta Casa aprove uma Proposta de Emenda Constitucional reconhecendo o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, um direito que o Supremo Tribunal Federal consagrou de forma histórica em 2011 e que empurrou a história para o lado certo. 

O PL 122/2006, criado especificamente para criminalizar a homofobia, está arquivado. Que tipo de prejuízos essa lacuna de legislação específica para coibir práticas LGBTfóbicas traz para a população brasileira?

Ainda há um caminho longo a ser percorrido. Enquanto não tivermos uma legislação específica que combata a homofobia e a transfobia, estaremos sujeitos a violências e agressões que partem tanto da sociedade quanto de agentes do Estado despreparados para defender a integridade de todo e qualquer ser humano, independentemente de cor, classe social, origem e orientação sexual. Ressalto, no entanto, que foi um avanço revolucionário o STF equiparar a LGBTFobia ao racismo. 

O próximo passo é o Congresso aprovar legislação específica, e creio que isso ocorrerá. É importante ressaltar, também, que no Congresso precisamos identificar e dialogar com parlamentares de “centro” e de “direita” que têm visão liberal ou conservadora sintonizadas a parâmetros europeus desses espectros políticos, ou seja, parlamentares que defendem um Estado mínimo e uma economia pouco regulada, por exemplo, mas que não fazem cruzadas moralistas, populistas e nem de cunho religioso contra as pautas de costumes e contra os movimentos sociais que reivindicam direitos civis básicos, como a população LGBTQIA+.

Por essas questões que citamos até aqui, e outras, parece existir uma negligência do Legislativo em combater a LGBTfobia no Brasil. Concorda? 

Avançamos a passos lentos, mas tenho absoluta convicção de que nenhum movimento reacionário e intolerante conseguirá frear o curso da história e a evolução da humanidade. Precisamos melhorar como sociedade no Brasil. Esse processo de conscientização e de empatia social é relativamente recente, mas altamente potente como agente social transformador e disruptivo. 

Respeito e dignidade são direitos constitucionais e inegociáveis, e tenho militado por isso na agenda legislativa do Senado. O Senado aprovou meu projeto de lei (PL 2.353/2021) que proíbe e pune a discriminação com base na orientação sexual de doadores de sangue, o que significa reverter a profunda estigmatização social contra homens que se relacionam sexualmente com outros homens. Apresentei uma proposta (PL 420/2021) determinando a inclusão de perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero nos questionários aplicados à população por ocasião do censo demográfico. A medida permitirá ao poder público ter dados estatísticos qualificados para reverter a escassez de políticas públicas destinadas à população LGBTQIA+.

Com o PL 2352/2021, sugiro alterar o Código Penal Militar para remover termos e expressões discriminatórios, como “pederastia”, bem como incluir como agravante de pena a motivação de discriminação ou preconceito por orientação sexual ou identidade de gênero no âmbito das próprias Forças Armadas. Já o PL 2354/2021, também de minha autoria, muda o Estatuto de Defesa do Torcedor para vedar e punir condutas homofóbicas e transfóbicas em eventos esportivos, como mensagens ofensivas e cânticos discriminatórios. Por medo do preconceito, torcedores e torcedoras gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis deixam de frequentar estádios e escondem suas orientação sexual e identidade de gênero. 

Outra proposta minha (PL 3394/2021) garante, de forma gratuita, a pessoas transgêneros o direito à retificação de seu prenome e gênero nos assentos de nascimento e casamento, a ser realizada no Registro Civil, a partir unicamente da declaração de vontade da parte requerente. O STF já afirmou que “a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constitui-la”.  Também sugeri (PL 3395/2021) mudar a Lei de Execução Penal para garantir direitos a pessoas transexuais e travestis no cumprimento de pena em estabelecimentos prisionais.   

Existem proposições sim, mas sabemos que muitas enfrentam resistência para avançar e se tornarem lei. Por causa dessas forças contrárias no Legislativo, o Judiciário termina sendo, muitas vezes, o único caminho para conquistas da população LGBTQIA+. Isso é frustrante para você como parlamentar e pessoa LGBTQIA+? 

O Judiciário tem atuado como garantidor de direitos diante da omissão do Congresso Nacional. Até mesmo dentro das instituições que defendem a sociedade temos desafios a vencer. 

Quando adotei meu filho, buscamos reconhecer a dupla paternidade, com a inclusão do nome do meu marido na certidão de nascimento do Gabriel. Um promotor do Espírito Santo recorreu contra a decisão que reconhecia a dupla paternidade, usando argumentos homofóbicos e em desacordo com a jurisprudência da Suprema Corte. O recurso foi, felizmente, rejeitado pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo, e entrei com uma representação contra esse promotor no Conselho Nacional do Ministério Público. Tempos depois, ao aditarmos nossa filha Mariana, o processo caiu para este mesmo promotor, que agora mudou de opinião e foi favorável à adoção por mim e meu esposo Rosrig. 

Só que estou numa posição de privilégio como senador e homem branco e cisgênero. Minha realidade é distante das pessoas que não conhecem seus direitos ou não têm recursos para contestar essas decisões absurdas, que acabam prevalecendo país afora, mesmo sendo contrárias ao entendimento do STF. Também por isso, o Congresso precisa corrigir sua negligência com direitos LGBTQIA+ no ordenamento jurídico brasileiro. 

Já ouvi entrevistas onde você revelou que muitas vezes pediu a Deus para mudar sua orientação sexual. Que você se anulou com relação à sua sexualidade até mais velho e os estudos foram uma forma de “compensar” sua orientação sexual, que você via como falha. Mesmo assim, já disse que ainda professa a fé católica, embora muitas instituições cristãs sejam espaços que reproduzem LGBTfobia. Como é ser um parlamentar assumidamente homossexual e católico em um momento onde a política brasileira é dominada por grupos conservadores cristãos?

Sou católico, pratico minha fé e tenho em Deus minha fortaleza e meu refúgio. Deus se reflete no outro, no próximo, habita no meio de nós e prega o amor. É triste ver como há quem promova tanto ódio e tanta segregação usando o nome de Deus em vão. Acredito que o espaço da religião tenha que ser inclusivo e aberto, acolhendo a população LGBTQIA+ e fazendo-nos sentirmos representados nessas instituições. No Senado, nunca sofri nenhum tipo de homofobia, ao menos explicitamente, mas, como eu disse anteriormente, atribuo isso ao fato de eu ser um homem branco, cis, com privilégios. 

Você foi anunciado como pré-candidato ao governo do Espírito Santo. Algumas reportagens informam que o PT estaria desistindo da pré-candidatura. É verdade?

Minha pré-candidatura está mantida. 

Já temos também anunciadas algumas pré-candidaturas ao Senado. A vereadora Duda Salabert, de Minas, é, por exemplo, uma pré-candidata trans que está na disputa por assento na Casa. Acredita que depois destas eleições poderemos ter um Senado com maior representatividade? O que falta para que mais pessoas LGBTQIA+ possam acessar os espaços de poder político no país?

Eu sempre digo para as pessoas: não criminalizem a política! Se você abre mão do seu direito a votar, a participar, a ser votado, outras pessoas tomarão esse espaço e podem te tornar vítima de grandes retrocessos e arbitrariedades. A militância política dos movimentos LGBTQIA+ é aguerrida, forte, com grande capacidade de mobilização no país todo, e vejo isso como uma conquista irreversível. Não vão nos calar! Precisamos ocupar espaços que nos pertencem e que precisam se abrir. Acredito que a eleição de pessoas LGBTQIA+ como representantes políticos nos municípios, nos Estados e em nível federal é uma vitória histórica e crescente. Cada um de nós que aqui chega rompe barreiras e levanta a bandeira da igualdade.