Controvérsia

Troca de acusações sobre construção de gasoduto termina com demissão de ministro na Argentina

Matías Kulfas é afastado do cargo de Ministro do Desenvolvimento e sai atirando contra a vice Cristina Kirchner

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |
Cristina Kirchner durante evento pelos 100 anos da YPF na última sexta-feira (3) - Presidência Argentina

Uma troca de acusações sobre supostas irregularidades na construção do gasoduto Néstor Kirchner resultou em uma baixa no governo argentino. A troca de farpas entre a vice-presidenta, Cristina Kirchner Fernandéz, e o então Ministro do Desenvolvimento Produtivo, Matías Kulfas, terminou com a demissão do ministro após o presidente Alberto Fernández tomar o lado de Cristina.

A controvérsia começou na sexta-feira (3). Em evento dos 100 anos da empresa estatal de energia YPF, Kirchner questionou a Techint, conglomerado ítalo-argentino de construção e engenharia, por fabricar no Brasil as chapas para os canos da megaobra do gasoduto "Néstor Kirchner" após vencer a licitação do projeto.

"Queridos, não podemos seguir dando US$ 200 milhões para que se paguem a vocês mesmos na empresa subsidiária que possuem no Brasil", ironizou a vice. Parte do discurso era dirigido ao presidente Alberto Fernández, que estava ao seu lado, no primeiro encontro entre ambas as autoridades após 90 dias sem aparições em público. "Já disse em outras ocasiões que você é quem tem 'a caneta'. Peço que você a use, e use contra os que devem coisas a este país."

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A Techint, do empresário Paolo Rocca, foi a única concorrente na licitação para o fornecimento dos canos, lançada em fevereiro e concluída em março deste ano.

No dia seguinte à declaração da vice, uma mensagem vazada a jornalistas sem assinatura ou identificação afirmava que "quem deve usar a caneta são os funcionários da Cristina, que fixaram as condições para dar à construção dos canos do gasoduto de Vaca Muerta a Techint". A mensagem continuava, acusando a empresa de energia estatal: "A Integração Energética Argentina (Ieasa), com funcionários designados por ela, é responsável pelas licitações. Quem não usou 'a caneta' como corresponde foram seus funcionários de Ieasa." Cristina Kirchner logo atribuiu o vazamento a Kulfas, algo que foi sustentado também pelo presidente, Alberto Fernandéz, que pediu pela renúncia de seu ministro. 

A mensagem anônima explicava a acusação: "Eles (funcionários ligados à Cristina) armaram um processo de licitação (adaptado) às medidas da Techint, da chapa que o grupo fabrica no Brasil, de 33mm de espessura. Se em lugar de pôr essa especificação, tivessem posto 31mm, como são os gasodutos na Europa, seriam fornecidos canos de outra firma que produz em Villa Constitución (Laminados Industriales SA)".

Após o vazamento, a vice lamentou o ocorrido em suas redes sociais. "Muito injusto e, principalmente, muito doloroso que esses tipos de ataques sejam executados por funcionários do próprio governo Frente de Todos. O pior de tudo: sem dar as caras, em off, mentindo e utilizando jornalistas", escreveu. "Com erros e acertos, sempre falei e atuei de frente. Penoso."

Logo, a Ieasa, acusada no vazamento, publicou um comunicado sobre o que julgou ser uma "operação política contra a vice-presidenta Cristina Kirchner" e esclareceu que a licitação cumpre as normas vigentes de segurança. "Este tema é estritamente normativo, pois está estabelecido na NAG-100 [Normas Argentinas Mínimas de Segurança]", enfatizou a empresa no comunicado. "A mensagem [vazada] carece de conhecimento técnico e mais precisamente do processo licitatório executado."

Por sua vez, o presidente Alberto Fernández, que trava disputas internas com sua vice, se pôs a seu lado em meio ao conflito. Ao replicar o comunicado da Ieasa, afirmou: "É eticamente reprovável falar em off em detrimento de outro. Sempre defendi isso publicamente. Não avalio esse tipo de proceder e compartilho o mal-estar expressado por Cristina Kirchner. O debate que devemos ter, que o façamos com responsabilidade."

Após conversar com Fernández na Casa Rosada e formalizar sua saída do governo, Kulfas publicou uma carta de 14 páginas com críticas contra Kirchner. Na missiva, o ex-ministro diz que as obras do gasoduto não têm mais insumos argentinos por decisão de funcionários que "respondem politicamente" à Kirchner dentro da administração pública e classificou a acusação que sofreu como "injusta".

A porta-voz da presidência da Argentina, Gabriela Cerruti, afirmou que Fernández trabalha pela "unidade da coalizão de governo" e destacou que o governo federal rejeita as acusações feitas por Kulfas em sua carta.

O embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli, será o novo Ministro do Desenvolvimento Produtivo da Argentina. A nomeação oficial de Scioli acontecerá após o retorno de Fernández, que estará esta semana em Los Angeles, na Cúpula das Américas, convocada pelo presidente dos EUA Joe Biden.

Desdobramentos na oposição

A menção à obra do gasoduto, parte da exploração da formação de petróleo e gás não convencional de Vaca Muerta, na Patagônia argentina, desatou comentários, intrigas, investigações e, definitivamente, impôs uma agenda. Como é comum acontecer após um discurso enfático de Cristina Kirchner, sua acusação contra a Techint não só gerou uma resposta rápida e defensiva por parte do Ministério de Desenvolvimento, então a cargo de Matías Kulfas, como também direcionou a atenção sobre a megaobra no sul do país, maior aposta em produção de energia por parte da Argentina.

Neste sentido, a oposição já emitiu duas denúncias judiciais para investigar supostas irregularidades na licitação para a construção dos canos do gasoduto "Néstor Kirchner". Os deputados da coalizão macrista Juntos por el Cambio (JxC, ou "Juntos pela Mudança", em tradução livre) Graciela Ocaña e Waldo Wolff denunciaram o presidente da Ieasa, Agustín Gerez, e funcionários da estatal que teriam formado parte do processo de licitação, considerado irregular. O titular da Fundação Apolo e advogado Yamil Santoro, deputado do partido Republicanos Unidos, integrante da coalizão JxC, também emitiu uma apresentação judicial por fraude contra a Ieasa.

Próximos passos do governo

Após um fim de semana agitado, o presidente Fernández e o Ministro da Economia, Martín Guzmán, deram andamento a um projeto anunciado em abril: o imposto sobre a renda inesperada. O conceito faz referência ao lucro de empresas que puderam crescer graças ao conflito desatado entre Rússia e Ucrânia, e o consequente aumento mundial do preço dos alimentos.

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Nesta segunda-feira (6), anunciaram o envio do projeto ao Congresso, um passo aguardado desde o seu anúncio pelos setores que apostam na redistribuição dentro do contexto da alta inflação e da restrição de políticas econômicas pela dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), contraída por Mauricio Macri (JxC) em 2018. O projeto foi amplamente rejeitado pelo setor agroindustrial que, em seu momento, promoveu uma manifestação com tratores em frente à Casa Rosada, que ficou conhecida como "tratoraço".

Edição: Thales Schmidt