A covid-19 infectou mais de meio bilhão de pessoas em todo o planeta, provocando mais de 6 milhões de mortes, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). A descoberta de um vírus altamente contagioso, que obrigou os governos a adotarem medidas como isolamento social, também revelou uma série de fragilidades nos sistemas de saúde, que atravessaram uma onda de privatização a partir dos anos 1980 com a ascensão do neoliberalismo.
Após dois anos de pandemia, o que é possível concluir sobre os sistemas de saúde no planeta? Para debater o tema, o Caminhos para o Mundo convida Yogesh Jain, médico que esteve na linha de frente do combate à pandemia, atendendo pacientes na Índia, um dos países mais afetados pela emergência sanitária.
Jain é indiano, médico pediatra, e fundador do Jan Swasthya Sahyog (JSS), ou Grupo de Apoio à Saúde do Povo (em tradução livre), um programa que há 20 anos oferece atendimento médico a 2.500 comunidades em zonas rurais da Índia. Com a recente pandemia, ele se afastou das atividades formais da JSS para se dedicar a outra organização sem fins lucrativos que ajudou a estabelecer: a Sangwari, que entre outras atividades presta consultoria ao governo estadual sobre medidas de combate à COVID-19.
É um dos editores do livro “Covid-19: A View From the Margins”, publicado em janeiro de 2022 e que traz 37 artigos de jornalistas, médicos, acadêmicos, ativistas e servidores públicos sobre as respostas da Índia à epidemia da covid-19 e o impacto social da pandemia no país, incluindo direitos dos migrantes, acesso à alimentação, alfabetização digital e o papel dos tribunais.
No Caminhos para o Mundo, Jain fala sobre o que aprendeu a partir da experiência no atendimento de populações vulneráveis, e defende que somente sistemas públicos de saúde são capazes de combater crises como a que ocorreu na pandemia. Confira na íntegra:
Brasil de Fato: A partir da sua experiência de mais de vinte anos com o Grupo de Apoio à Saúde do Povo, o que você pode dizer sobre a saúde das populações rurais na Índia? Quais foram os maiores desafios e conquistas desse programa, tendo em vista o sistema de saúde do país?
Yogesh Jain: Devo dizer que a Índia é um dos países mais desiguais que existe no planeta. É um país grande, um dos países que têm poucos bilionários, mas também uma enorme proporção de pessoas que são muito pobres. E também outras pessoas que são marginalizadas de outras maneiras. Elas estão longe das grandes cidades, em áreas florestais, onde o acesso é um problema.
Eu acho que a disponibilidade de alimentos para uma grande parte da população é também muito escassa. Portanto, isso se manifesta através de um alto número de doenças das quais as pessoas sofrem. Elas variam desde as doenças normalmente associadas à pobreza, como tuberculose, malária ou hanseníase, mas também doenças não transmissíveis, como diabetes, hipertensão, doenças cardíacas, asma. Bem como os problemas de saúde comuns às mulheres, quando elas têm problema durante o parto ou quando a criança é ainda pequena, com menos de cinco anos de idade. As pessoas apresentam um grande número de traumas também.
Portanto, penso que as doenças são muitas e o sistema de saúde que temos no país está mais no papel. Nós temos um sistema público de saúde muito pobre que atende a somente 25% dos problemas das pessoas e temos um sistema não controlado de prioridade que cuida de 75% dos problemas de saúde. E tudo isso faz com que as pessoas tenham uma saúde muito precária e consequentemente adquiram doenças no país.
Nós ainda possuímos uma taxa muito alta de mortalidade infantil, muitas crianças ainda morrem no parto. A Índia é o país com o maior número de pessoas tuberculosas, e que também morrem. Um quarto de todos os casos de tuberculose no mundo é registrado apenas na Índia. Há mais de 200 mil mortes devido à tuberculose no país todos os anos. Temos uma situação muito ruim. A pobreza médica, que é quando a pessoa se torna pobre por ter procurado atendimento médico no sistema particular de saúde, quando precisam desesperadamente de tratamento médico, é a realidade para muitos indianos.
Eu acrescentaria também que a situação é bem melhor no Brasil, que eu saiba, pois o Brasil tem um sistema de saúde melhor nos últimos anos, desde as primeiras décadas dos anos 2000. A Índia continuou a ser pobre desde a sua independência, setenta anos atrás.
Como a experiência dos povos marginalizados da Índia, no âmbito do acesso à saúde, se relaciona a outros povos vulneráveis pelo mundo?
Seria uma vergonha dizer que a população pobre da Índia tem um dos piores índices de saúde do mundo. Isso não significa dizer que os pobres de todo o mundo ou os marginalizados de todo lugar sofrem em comparação às pessoas não tão marginalizadas do resto do mundo. Então eu não acho que as pessoas pobres da África do Sul, Brasil, Indonésia ou Índia, dos quatro grandes países que conheço, grandes populações, que todos eles vivem situações de pobreza.
Mas é que na Índia, não é incomum que as pessoas tuberculosas morram devido à doença, que uma mulher morra no parto. Com a covid, foram tantos problemas que as pessoas morreram por não conseguirem tratamento. Bem como de outras doenças comuns. As chances de adoecer são maiores e as chances de se recuperar de uma enfermidade que está se tratando são bem piores na Índia, acho, do que em qualquer outro país do mundo. Eu acho que em algum nível, nossas taxas de adoecimento, e a taxa de recuperação, são piores até mesmo do que as dos países da África Subsaariana onde, nós sabemos, ainda é a região tradicionalmente mais pobre do mundo.
Porém, na Índia, e vou usar o exemplo da tuberculose, a média de peso das pessoas tuberculosas na Índia Central é por volta de dez quilos menor do que as pessoas sofrendo desta mesma doença na África Subsaariana, e que também sejam soropositivas. A Índia não possui muitos casos de HIV até o momento, mas o peso das pessoas com tuberculose são muito menores na Índia, cerca de dez quilos menor. Então, se as pessoas pesam 45kg [na África Subsaariana], na Índia será 35kg. Ou, se uma pessoa na África Subsaariana pesa 50kg, na Índia ela pesa 40kg não sendo soropositiva. Este é o nível de privação que as pessoas sofrem, e eu diria que as doenças são basicamente a personificação biológica da privação. E uma grande parte dos indianos sofre dessa injustiça, se posso colocar assim, que se trata não somente de desigualdade, mas também pouca disponibilidade de recursos que atinge boa parte dos indianos.
Você é um defensor do direito à saúde e da construção de um sistema de atendimento popular dedicado à comunidade. Quais os principais obstáculos para construção de sistemas mais igualitários no capitalismo?
Eu diria que os maiores desafios ainda são o acesso a recursos como, conseguir médicos e enfermeiros, bem como paramédicos, para administrar programas nas áreas conhecidas como de difícil acesso, o que sempre foi um desafio. E as habilidades dessas pessoas que trabalham nas áreas empobrecidas são, normalmente, poucas. Elas precisam de mais treinamento, inclusive psicológico, que não está acessível facilmente. Temos que trabalhar muito mais duro para desenvolver estes sistemas.
O segundo ponto é a mentalidade de que em lugares pequenos, lugares pobres, onde residem pessoas muito pobres, não precisam de muitos cuidados médicos, de que elas podem lidar com uma precária assistência de saúde. Então, haverá nestas localidades menos medicamentos disponíveis, menos equipamentos médicos e serviços em hospitais voltados para comunidades empobrecidas. Portanto, para acabar com esse tipo de mentalidade para estabelecer que a assistência médica e instalações médicas precisam estar disponíveis em áreas pobres deveria ser, na verdade, superiores ao sistema de saúde das grandes cidades.
Eu nunca pude entender de onde vem essa lógica de que os maiores hospitais devem estar nas maiores cidades. E as vilas e cidades pobres devem receber centros de atendimento médico menores. Seria isso por que os moradores das cidades maiores ficam mais doentes? Acho que não. Penso existir mais doenças onde há mais pobreza. E diria que as melhores instalações médicas deveriam estar lá em localidades pobres, ou ao menos instalações tão boas quanto deveriam estar nas partes mais pobres do país ou das províncias. E é nessa direção que caminhamos. E acho que um dos outros problemas que enfrentamos é a tecnologia disponibilizada aos hospitais das vilas e cidades pequenas. Nestes locais, ela deveria ser...
Na verdade, ela não é disponibilizada. Se eu quero manter um medicamento como a insulina, que requer refrigeração para que a droga não estrague, a insulina, não há refrigeradores nessas vilas. Então você precisa pensar em outras maneiras de manter os medicamentos refrigerados. Algo similar ao antiofídico, o medicamento necessário para tratar picadas de cobras, ele também precisa ser refrigerado. Precisamos de tecnologia deste nível. Isso também tem sido um desafio, bem como desenvolver tecnologias que ajudem as pessoas a conseguirem o tipo certo de assistência médica, o melhor tratamento, nas áreas empobrecidas.
Mas diria que o maior problema é a questão da alimentação adequada para que as pessoas não adoeçam com frequência. E, caso elas adoeçam, elas deveriam poder se recuperar por meio de uma alimentação balanceada e nutritiva. É claro que existem problemas como estradas ruins tanto em vilas menores como nas maiores da Índia, o que muitas vezes as isola de localidades maiores durante períodos de chuva. Se uma mulher grávida precisa dar à luz em um hospital e não há estradas, então há o risco dessa mulher morrer ainda na vila. E estes são desafios para os quais também olhamos, para que sejam construídas estradas, então as pessoas poderão chegar ás instalações médicas quando precisarem.
Sobre a covid-19, o que você considera que a pandemia expôs sobre o atendimento à saúde no mundo? E quais as alternativas os governos e movimentos populares podem construir para melhorar a situação?
Eu diria que certamente aprendemos muito sempre que apontamos para três das maiores lições que vi. A primeira é que a pandemia de covid-19 mostrou que o mundo é muito desigual. Tudo que acontece, sejam os medicamentos que deveriam estar disponíveis, os protocolos de tratamento, vacinas, programas comunitários ou disponibilidade de alimentos, tudo isso foi exposto. Os problemas nestas áreas foram expostos segundo o nível de empobrecimento num país ou no mundo. Na África, há um grande problema de segurança alimentar que ocorre devido ao fato de o continente sempre ter estado numa realidade desigual.
O mesmo acontece com as questões de quem é que consegue a vacina, quem consegue os medicamentos próprios para o tratamento da covid, quais países conseguem realizar pesquisas. Isso tem sido um problema. Eu acho que mesmo nas pequenas localidades como uma província indiana, pudemos ver que os mais pobres sofreram mais comparados com as pessoas que não são pobres. Ainda que a doença, a princípio, atingisse aqueles que estavam viajando de avião. Mas, definitivamente foram os mais pobres que mais sofreram na Índia bem como em qualquer outro lugar do mundo.
Sobre a segunda lição, eu diria que as pessoas se deram conta, e se algumas ainda não se deram conta, devem fazê-lo logo, que para oferecer assistência médica durante pandemias ou grandes crises sanitárias num mundo desigual é preciso ter bons sistemas públicos de saúde e que os sistemas privados de saúde não são uma solução. Nenhum lugar do mundo, que eu saiba, foi capaz de oferecer tratamento à sua população por meio do sistema privado de saúde. A covid-19 nos mostrou muito bem que todas aquelas áreas, ou pelo menos na Índia, o setor privado parou de fornecer tratamento, pois estavam tão assustados que, ainda que o governo estivesse repassando dinheiro a eles, o setor privado não quis abrir seus hospitais. Os hospitais e centros médicos públicos eram os únicos aos quais as pessoas podiam recorrer. Conheço países africanos, latino-americanos, bem como asiáticos, nos quais eles deram licença ao setor privado. Eles deram muitas concessões ao setor privado para que este possa oferecer serviços. Na verdade, dão a eles estímulo para administrar o sistema de saúde privado. Mas o sistema privado de saúde fracassou completamente na pandemia de covid-19, eu diria.
E diria que a terceira grande lição que eu lembro imediatamente é que todos os países que foram considerados preparados para lidar com uma pandemia, incluindo o número um e dois, Estados Unidos e Reino Unido, bem como outras economias capitalistas ocidentais na Europa. Muitos países lidaram mal com a pandemia, mas os países que conseguiram administrar bem a situação, ou as províncias que lidaram bem, foram as que são economias socialistas. Seja a China, Cuba ou o meu estado natal, Kerela, na Índia, ou o Vietnã, ou algum outro país. A Venezuela se saiu muito melhor do que vários outros países da América Latina. Acho que países que possuem sistemas de saúde descentralizados, assim como um sistema de saúde que atende a todos e não aos ricos primeiro, são os que se saíram melhor. Os que tiveram um tipo de sistema de saúde pública em vigor. Do contrário, veja, os países que pior administraram a pandemia incluem o Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, Itália, França. Estes foram os países que se saíram tão, tão mal, inclusive o Brasil, é preciso dizer e a Índia. A Índia provavelmente presenciou a pior pandemia de Covid-19 no mundo.
Com o fim da pandemia, quais seriam as medidas imediatas mais importantes a serem tomadas pelos governos para melhorar as condições de saúde, especialmente das pessoas mais pobres?
Eu diria uma única mensagem que todo país encara: nós deveríamos ter um sistema de saúde forte em vigor, pois esta pandemia pode voltar com novas variantes, mas também outras pandemias podem surgir devido a outras pandemias que não podemos prever no momento, mas é certo de que elas surgirão. Assim como outros problemas de saúde que já temos, que afetam as pessoas e que precisam ser tratados por um sistema de saúde pública que seja forte. E eu penso que não está tarde para começar agora a construir um sistema público de saúde e parar de investir em sistemas de saúde privados.
Isso significa mudar muitas coisas, inclusive vigilância e assegurar que os medicamentos sejam acessíveis a todos e que todos possam acessar todas as investigações necessárias. Também, os investimentos para qualquer sistema de saúde de qualidade deveriam vir, agora, do governo. Diria que isso é algo que deveria ser direto. Mas se você me perguntar sobre essa pandemia em especial eu diria que nós deveríamos utilizar esse tempo, essa margem de tempo que temos no momento, pois a pandemia está em declínio agora, para vacinar a todos.
Quem ainda não foi vacinado, deveria esquecer esse apartheid no qual nós “entramos” pelas vacinas e disponibilizá-las a todos que não foram vacinados. Ao invés de você não vacinar, matando crianças, para as quais a vacina não é obrigatória, o que muitos países estão fazendo no momento. Eu diria que outra lição para os países aprenderem é não destruírem seus meio ambientes como temos feito. Deveríamos aprender com ele. A pandemia de covid-19 aconteceu também pelo fato de estarmos no caminho da destruição do meio ambiente asiático. O que provavelmente foi a causa para o surgimento dessa pandemia. E outras pandemias podem surgir se continuarmos a destruir ainda mais o meio ambiente.
Você é editor de um livro que tem o objetivo principal de registrar a memória da pandemia pelo viés “das margens”. Por que o registro por essa perspectiva é tão importante?
Eu diria que quando a História é escrita, seja lá do que for, ela normalmente é escrita por meio da voz dos reis e rainhas ou pelas pessoas no poder. São aqueles que escrevem a História. Porém, o que nós de fato precisamos para a posteridade é ter uma História popular desse fenômeno particular que foi a pandemia. E eu espero que este livro registre a história das pessoas, registre o que elas enfrentaram durante a pandemia. Como as comunidades indígenas lidaram com a situação, como as pessoas pobres em situação de rua lidaram com ela, como foram as pesquisas sobre a pandemia, como foi a recusa de medicamentos a essas pessoas. Como os mais pobres e o próprio sistema de saúde sofreram por causa da pandemia.
Então, acho que nós precisamos que isso seja útil como repositório de conhecimento e informações para o futuro. Para quando quisermos saber como nós lidamos com a pandemia com recursos tão escassos, para que nós saibamos sobre no futuro. Bem como sirva como registro da experiência de toda uma classe de pessoas carentes. De maneira que seja um contraponto à visão expressa em jornais médicos, assim como nos registros de estaduais e governamentais que são frequentemente autoelogiosos.
Onde assistir ao programa
O Caminhos para o Mundo tem duração de 30 minutos e vai ao ar quinzenalmente, às terças-feiras, sempre às 20h, nos canais do Brasil de Fato e da TVT no YouTube.
Na TV aberta, o programa é exibido na TVT, canal 44.1 - sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.
Edição: Thales Schmidt