Os sinais estavam todos lá, bastante claros, mas como o pior cego é aquele que não quer ver, continuamos de olhos bem fechados para o extremismo e a violência online, sobretudo aquela que afeta – e mata – crianças e adolescentes.
Muito antes de invadir uma escola no Texas e abrir fogo contra seus ocupantes, matando duas professoras e 19 alunos, um jovem de 18 anos deixou rastros digitais. No Instagram, por exemplo, pode-se ver no perfil do atirador a foto de uma mão segurando uma revista sobre armas. No TikTok, uma mensagem alertando crianças para "terem cuidado", e a imagem de dois rifles semi-automáticos.
A tragédia de Uvalde não começou na manhã do dia 24 de maio; começou quando passamos a negligenciar o impacto das redes e da mídia na saúde mental dos usuários, especialmente os menores de idade.
"Crianças e jovens são naturalmente fascinados por tudo que é estranho, único e extremo, e as mídias sociais podem ser um perigo, porque os algoritmos potencializam certos comportamentos, explica ao Brasil de Fato a pesquisadora Linda Charmaraman, diretora do Laboratório de Mídia, Juventude e Bem-Estar do Wellesley Centers for Women. "Essas redes começam a sugerir influencers e conteúdos com interesses similares, de forma que o sistema seja estruturado para lhe dar o que quer – mesmo que não seja bom", completa.
O problema fica mais grave quando passamos a analisar as redes sociais como um espelho; um reflexo perfeito da sociedade, o que não é o caso. "As redes sociais são um prisma, não um espelho: no Twitter, por exemplo, 6% dos usuários são responsáveis por 73% dos posts políticos nos Estados Unidos, mas esses 6% mais 'barulhento' é também bastante extremista", pontua Chris Bail, professor de sociologia da Duke University
Essa superexposição a argumentos extremos tende a normalizar as coisas, ou pelo menos flexibilizar uma régua moral, tornando-se um coquetel explosivo para quem procura validação externa. "Estamos constantemente examinando nosso ambiente social em busca de pistas sobre como pertencer, como nos encaixamos, quem é amigo e quem é inimigo e, infelizmente, quando a mídia social distorce com quem interagimos, quando interagimos com esses extremistas, passamos a entendê-los como moderados", explica.
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O professor continua: "Muita gente que se sente isolada no mundo offline recorre à internet para obter o tão sonhado senso de comunidade, e os likes, a interação, os compartilhamentos e o reconhecimento de outros usuários, que são mais frequentes em posts e atividades extremistas, reforçam esse comportamento". Em contrapartida, pessoas mais moderadas se sentem acanhadas em falar sobre política e assuntos polêmicos online, "porque se tornam alvos de quem pensa de forma diferente e, às vezes, até de quem pensa de forma parecida, mas que acha errado não ser tão extremo".
Ainda segundo o professor, é necessário reestruturar toda a dinâmica social, porque a atual apenas incentiva discursos extremistas. Foi pensando nisso que a Califórnia passou a estudar um projeto de lei que permite a pais processar as redes sociais pelo vício de seus filhos.
Alegando que o uso deliberado traz consequências físicas, emocionais, psicológicas e até financeiras a crianças e adolescentes, a Califórnia entende que é função das grandes empresas de tecnologia desabilitar mecanismos que possam provocar seu uso exacerbado por adolescentes.
Caso seja aprovada, qualquer indivíduo exercendo a parentalidade de um jovem menor de 18 anos, que tenha vontade de diminuir a interação com as telas, mas que seja incapaz de fazê-lo por fatores emocionais ou psicológicos, pode abrir um processo de até US$ 25 mil por caso.
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Essa medida é contestada por alguns pesquisadores, que questionam a fiscalização das propostas, bem como a interpretação de vício e de prejuízo assinalada no projeto. Enquanto os parlamentares estadunidenses discutem a medida, Linda diz que é muito comum a delegação da "culpa" pelo fracasso social. "Pais culpam a tecnologia, a tecnologia culpa o governo, o governo culpa as escolhas e por aí vai. No final, não é uma coisa ou outra. Todos esses atores têm um papel importante no desenvolvimento dos jovens", afirma.
Importante ressaltar que quando falamos em educação e comportamento online, o bom ou mau desempenho de uma pessoa em ambiente digital nada tem a ver com a sua formação ou vida acadêmica. "Um estudo que analisou a atividade online de diferentes pessoas constatou que a habilidade cognitiva de uma pessoa pouco tem a ver com a sua postura nas redes sociais", diz Bail, "o fator número um para que alguém compartilhe uma notícia falsa, por exemplo, é a sua crença. Ou seja, as palavras são usadas como armas para defender sua visão de mundo, mesmo que sejam palavras falsas".
Alheio ao caos online, jovens americanos passam mais tempo do que nunca em frente às telas. Durante a pandemia de covid-19, as atividades digitais de crianças e adolescentes, nos Estados Unidos, passaram de 3,8 horas por dia, para 7,7 horas diárias.
Mais tempo conectado, num país que não aprendeu a lidar com o discurso e o posicionamento extremista, on e offline, tende a ser uma equação perigoso para um país que sequer fez o "logout" da posse de armas.
Edição: Thales Schmidt