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Antipolítica cresce na Argentina e supera polarização kirchnerismo vs. macrismo, diz estudo

População culpa os políticos pela precarização do trabalho e piora da qualidade de vida, aponta levantamento

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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Protesto anti-vacina em Buenos Aires em 2021 - Ronaldo Schemidt/AFP

“A política atrapalha”, “são todos iguais” e “eles governam para eles mesmos” são alguns dos posicionamentos que aparecem na pesquisa “Encruzilhadas da política na pós-pandemia”, que revelou o aumento da antipolítica na Argentina. Em tempos de ascensão de figuras como Javier Milei (La Libertad Avanza) com seu discurso “anticasta" política e do uso compulsivo das redes sociais como dispositivos de disseminação de discursos de ódio, a desconfiança das instituições democráticas foi conferida em eleitores de diferentes espectros políticos das últimas eleições presidenciais (2019) e legislativas (2021) – e, claro, em eleitores que optaram por anular os seus votos.

O estudo, realizado em dois grupos focais, partiu do objetivo de analisar a representatividade política na população em diferentes províncias do país. Realizada pelo Laboratório de Estudos sobre Democracia e Autoritarismos (Leda), da Universidade de San Martín (Unsam) em colaboração com outras instituições públicas, a pesquisa destaca o que chamou de “A nova polarização”.

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Assim sintetizaram a superação da tradicional polarização política na sociedade argentina (conhecida como grieta) entre kirchnerismo e macrismo, em referência às duas figuras políticas mais importantes do país: Cristina Kirchner (FdT), do peronismo progressista, e Mauricio Macri (PRO), do empresariado neoliberal. Agora o cenário seria mais propício à perspectiva do “políticos vs. nós, a população”. Esse sintoma foi classificado pelos pesquisadores como “uma nova distribuição da sensibilidade”.

“Há 10 anos atrás, a polarização significava alguma coisa”, afirmou um dos entrevistados da pesquisa quando questionados sobre a causa da crise econômica e social na Argentina. “Hoje em dia, as pessoas aprenderam a identificar o inimigo: são os políticos, os sindicalistas, a Afip [Administração Federal de Ingressos Brutos].”

“A crise é responsabilidade da classe política em geral.”

– Eleitor do partido La Libertad Avanza

Lucía Wegelin, coordenadora do Leda e responsável pela análise e redação da pesquisa, diz ter chamado sua atenção a carga afetiva em relação ao desânimo com as figuras políticas. “Havia um vazio quando perguntamos se os participantes votariam com entusiasmo em alguém, ou o que um candidato deveria ter para que os entusiasmasse”, conta, contextualizando que as dinâmicas aconteceram em época eleitoral, quando o debate político flui socialmente com maior intensidade.

“Era um silêncio difícil de preencher. Foi interessante perceber que esse silêncio era padecido. Não era expressado como ‘não sei em quem vou votar e não me importa’, mas era carregado afetivamente. Há uma expectativa com o voto, e isso pode inclusive ser visto como um sinal de vitalidade democrática sendo otimista”, diz.

Wegelin observa que a “crise” surge como uma caracterização constante do presente. “Há uma temporalidade cíclica sobre a crise, como algo que sempre volta, não importando se em algum momento houve uma melhora. A perspectiva é de que a crise foi sempre algo constante na história do país e que, hoje, gera desesperança.”

"Cada vez estamos vivendo pior. Vemos nas notícias, todos os dias, pessoas morrendo em roubos, todos os dias protestos cortam as ruas... É um caos."

– Eleitor que votou em branco

Sob este prisma, os relatos sobre a crise por parte dos políticos são vistos como uma espécie de ficção, distante do cotidiano e da realidade da população, algo bastante captado pela nova força política de ultradireita autointitulada de “libertária”. Nesse caso em particular, seus representantes devem lidar com um paradoxo quando eleitos, uma vez que passam a fazer parte da "casta política" que repudiam. O economista Javier Milei, quando eleito deputado federal no ano passado, sorteou seu salário em um gesto midiático para tentar ilustrar sua “distância” da “casta política”.

O próprio texto de introdução da plataforma eleitoral do bloco La Libertad Avanza (encabeçado por José Luis Espert) descreve: “A Argentina leva quase um século de decadência, repetindo etapas de auges transitórios que sempre terminam em frustrantes crises econômicas, sociais e políticas”. Entre as propostas, que surgem várias páginas depois, estão as reformas trabalhistas para uma “economia moderna”, eliminar a arrecadação estatal sobre as importações e “limitar o direito à greve”.


Protesto anti-quarentena em Buenos Aires, na Argentina, pelo "direito à liberdade individual". / Ronaldo Schemidt/AFP

São propostas mascaradas de novidade com ênfase na desconformidade e alentando discursos de ódio, uma forma de distância sobre os próprios processos democráticos. Sintomas que, não por acaso, também são objeto de estudo do Laboratório de Estudos sobre Democracia e Autoritarismos, como o antissemitismo, a xenofobia e os discurso de ódio na esfera digital. “São elementos que marcam o momento ideológico favorável para o surgimento de figuras autoritárias”, destaca Wegelin.

Discurso neoliberal

Desemprego, inflação, precarização do trabalho, insegurança e dificuldade para alugar ou comprar imóveis são os principais elementos que impulsionam a inclinação antipolítica. Para os entrevistados da pesquisa, “os políticos” em geral são os culpados por este cenário. A política foi taxada como “inútil”, como algo que não serve ou não funciona para melhorar a vida da população.

A culpabilização sem distinção aparece como algo preocupante no resultado da pesquisa, como aponta a doutora em sociologia e coordenadora do Leda, Micaela Cuesta. “Observamos nesta pesquisa que a polarização se desconfigura e dá lugar a outra mais perigosa em termos sociológicos, porque separa os políticos já sem distinção político-partidária”, diz. “Não se dirige a uma politização possível, democrática, habilitada pelo dissenso e respaldado pelas instituições. O que em 2015 [eleição de Macri] poderia assumir como uma forma política de confronto e dissenso agora dá forma ao desencanto, à desilusão e à frustração.”

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O fenômeno passou a ser observado com maior atenção pelos pesquisadores a partir de 2011, quando a ascensão de discursos neoliberais na política argentina ligaram os alarmes. “Não tínhamos Macri como presidente nesse período, mas como chefe de governo portenho. Já havia uma linguagem de apelo ao empreendedorismo, ligada à precarização do trabalho, de desmantelamento do Estado”, afirma Cuesta.

“Esse discurso coloca o Estado como um obstáculo para o crescimento e o avanço das potencialidades individuais, e dialoga muito bem com a doutrina neoliberal”, diz, ressaltando que essa fórmula foi se tornando mais eficaz com o tempo.

Questionados pela pesquisa sobre a causa da crise na Argentina, votantes da coalizão macrista (Juntos por el Cambio) responderam que os culpados são os “planos sociais” e a “corrupção”.

Idas e vindas

Os processos históricos dão conta do cenário percebido como “crise constante”. As ditaduras militares e os períodos de privatização generalizadas na América Latina representam rupturas profundas nos processos democráticos desses países. Mais recentemente, a crise econômica mundial de 2008 e os processos de perseguição judicial (lawfare) contra figuras progressistas alimentaram o sentimento antipolítica.

No livro “Sair do neoliberalismo”, os autores Emilio Taddei e Mabel Thwaites Rey relacionam os processos neoliberais com a aversão à política detectada na população.

“Essas ações se desenrolam sobre uma base de um convencimento generalizado de que a política é, basicamente, um território de corrupção, que a ocupação do Estado é para fins de enriquecimento pessoal, que os impostos que o cidadão paga vão parar no bolso de inescrupulosos, que se prejudica a quem trabalha e se premia os desocupados e delinquentes”, afirmam os autores. “Isso, somado à difusão de casos de corrupção, consolida percepções antipolíticas, com um claro sentido regressivo que são caldo de cultivo para as reformas neoliberais.”

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Assim, em tempos de crise e desesperança, o questionamento tende a cair sobre as estruturas democráticas e sustentar-se em discursos simplificados e imediatistas. “Os tipos de autoritarismos que em Trump e Bolsonaro e estamos vendo, com diferenças, também na Argentina , é que essa construção ideológica denominada como neoliberal produz um tipo de subjetividade política que, diante da impossibilidade de interrogar as causas estruturais que geram seu mal-estar, redirige e responsabiliza por esse mal-estar, por exemplo, as instituições da democracia”, diz Micaela Cuesta. “A novidade que trazem os autoritarismos contemporâneos é que não surge como uma crítica ao sistema econômico estrutural, mas dá lugar a uma radicalização da própria lógica neoliberal.”

Outro ponto chamativo da pesquisa é que o único espectro político que manifestou expectativa de mudança para o futuro é o dos eleitores da coalizão governista Frente de Todos. “Há uma subjetividade política mais enraizada, com tradição militante, memória, que têm um olhar mais global”, afirma Cuesta. “São setores que acreditam que a política é a única ferramenta que ainda nos resta, se é que nos resta, para enfrentar a situação desfavorável na qual nos encontramos.”

Edição: Thales Schmidt