No Rio Grande do Sul, de janeiro deste ano até o momento, foram registrados 36 feminicídios - o equivalente a uma mulher assassinada a cada três ou quatro dias. Nos últimos dez anos (até abril de 2022) o estado contabilizou 961 mortes, uma média anual de 93,4 assassinatos.
A grande causa é o desmantelamento das políticas públicas e o enfraquecimento cada vez maior das redes de proteção. Essa foi a análise apresentada nesta segunda-feira (9), na Assembleia Legislativa gaúcha, durante a divulgação de um dossiê sobre feminicídio no estado, elaborado pelo Levante Feministas do RS.
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Para simbolizar as 36 mulheres que foram vítimas de feminicídio no RS este ano, o Levante Feminista colocou 36 cruzes e 36 girassóis no centro da mesa de debates. A audiência, proposta pela deputada Sofia Cavedon (PT) e solicitada pela deputada federal, Maria do Rosário (PT), ocorreu em formato híbrido.
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A apresentação do dossiê contou com a presença e participação das deputadas estaduais Luciana Genro (PSOL) e Stela Farias (PT), da deputada federal Maria do Rosário, do deputado federal e presidente da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados (CLP), Pedro Uczai (PT), e de mulheres representantes de diversos movimentos e segmentos da sociedade civil.
O início do dossiê sintetiza a situação: “A violência contra as mulheres, em especial o feminicídio, é um problema multidimensional, afeta a todas as mulheres direta e indiretamente no campo simbólico, exigindo medidas de enfrentamento, combate, atendimento, defesa de direitos e mudanças de padrões culturais através da prevenção. Somente com uma rede forte e articulada em todas áreas, em articulação com a sociedade e o movimento de mulheres é possível realizar o enfrentamento e prevenir feminicídios.”
Desmantelamento das políticas públicas e da rede de proteção
Em sua fala de abertura, a deputada Sofia destacou a situação de desmantelamento da rede de proteção e apoio às mulheres vítimas de violência no estado, dando como exemplo a situação do Centro de Referência de Atendimento à Mulher estadual. “Ele continua em um espaço inadequado e desarticulado de toda rede. Tem apenas três pessoas técnicas, de forma aguerrida, para atender”, expôs, citando outros exemplos como a Casa Mirabal em Porto Alegre e a Casa Viva Maria, com pouquíssimas vagas. “O dossiê será importante para caminharmos e para atuarmos juntos às parcerias”, destacou.
A deputada federal Maria do Rosário enfatizou o trabalho desenvolvido pela Força Tarefa e o Levante Feminista no RS. “Essa força tarefa tem uma grande importância no RS porque ela registra os feminicídios. Mas ela quer chegar antes dos feminicídios, ela quer que políticas públicas estejam instituídas para assegurar o direito fundamental que é direito a vida das mulheres”, apontou.
De acordo com a parlamentar, através do levantamento feito pela Lupa Feminista, é possível perceber que há uma perversa conexão entre os assassinatos e dois outros indicadores: as armas de foto e o orçamento no plano federal no combate à violência contra a mulher.
Conforme expôs a deputada, no governo Bolsonaro foram assinados mais de 30 decretos para favorecer a liberação de armas de fogo. “No ambiente da casa, nesse ambiente onde em geral as mulheres são mortas pelo feminicídio, as armas utilizadas são as armas de fogo. Essas armas estão apontadas para o corpo das mulheres, é triste dizer isso e é urgente impedir que essa política continue em curso.”
A parlamentar destacou ainda a redução do orçamento do plano federal para o combate à violência contra as mulheres, o que tem impacto nos estados. "Em 2020, dos R$ 132 milhões , menos de 38 milhões foram executados. Em 2020 cumpriu cerca de 30% em prioridades avessas aos planos nacionais de enfrentamento ao feminicídio e às políticas para os direitos das mulheres. Em 2021 cerca de 51% do que foi definido no orçamento foi colocado em execução”, apresentou.
Além dos feminicídios, Maria do Rosário chamou a atenção para o aumento dos casos de estupro (incluindo vulneráveis) e de violência, do desemprego altíssimo, salário mínimo sem reajuste, abandono. “Vivemos uma destruição de políticas públicas pelo governo Bolsonaro, e uma destruição especialmente de políticas públicas que são fundamentais para a vida das mulheres. A mulher sem salário, no trabalho precário, sem renda, perde também a autonomia necessária para conseguir enfrentar os algozes que muitas vezes estão ao seu lado”, afirmou.
Nos encaminhamentos, a principal ação definida é retomar o funcionamento do Centro Estadual de Referência da Mulher, assim como a orientação para que o Ministério Público encaminhe aos municípios a recomendação de instalação dos Centros de Referência da Mulher e também as Procuradorias da Mulher nas câmaras municipais. A Procuradoria da Mulher da ALRS também vai liderar diversas ações voltadas para as urgências decorrentes do desmonte das políticas públicas para as mulheres, como a reativação do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher.
Dossiê revela "tragédia"
A jornalista, mestre em Ciência Política e integrante do Levante Feminista, Télia Negrão destacou em sua fala a situação atual do feminicídio no Brasil e no estado no RS. “Gostaríamos de estar aqui no dia de hoje para falar de vida, igualdade, de esperança, de construção. Infelizmente nós estamos aqui hoje para falar de tragédia, abandono, morte, invisibilidade. Uma tragédia que atinge cerca de 1.350 mulheres ao ano no Brasil, deixa 2,3 mil órfãs e órfãos, comunidades enlutadas e uma profunda sensação de injustiça nas famílias”, afirmou.
Entre 2012 e 2021 foram registrados no RS cerca de 639.914 boletins de ocorrência nas Delegacias da Mulher do RS. "Levamos essa denúncia há um ano atrás ao ex-presidente desta Casa e não teve nenhuma repercussão. Sabemos que o feminicídios não é algo novo, mas seu nome foi reconhecido somente em 2015, pela Lei 13.104. Matar mulheres por serem mulheres faz parte das práticas sociais, aceitas e naturalizadas e que há menos de 50 se enfrenta no Brasil”, ressaltou a jornalista, recordando d a luta do movimento das mulheres no país e o surgimento do slogam "quem ama não mata".
"Não existe crime passional, para nós o feminicídio é um crime de ódio, de menosprezo à condição de gênero das mulheres e das pessoas trans, e é atravessado por racismo, capacitismo, machismo, homofobia, transfobia e outras formas de depreciação de mulheres e das pessoas”, avaliou. A jornalista também destacou que a luta das mulheres voltou a ser banalizada, com o abandono das políticas que foram substituídas por políticas ultra-conservadoras.
A ativista apontou os culpados pelas 36 mulheres assassinadas desde o início do ano no estado: “São os feminicidas que matam as mulheres, as autoridades públicas que se omitem diante da sua obrigação enquanto Estado, e a sociedade, infelizmente. Uma sociedade que se comove por alguns minutos mas que em seguida retorna a vida na normalidade com se fosse natural exterminar mulheres pelo simples fato de serem mulheres".
"Uma tentativa de cobrar de quem é responsável"
A psicóloga, mestre em psicologia, coordenadora da Lupa Feminista contra o Feminicídio, integrante do Coletivo, Thaís Pereira Siqueira, explicou que o dossiê vem sendo feito desde o ano passado. Emocionada, destacou que os dados apresentados no dossiê não são novidade para quem acompanha o tema. “O que fizemos foi congregar todas as informações, mais uma tentativa de cobrar de quem é responsável por implementar políticas públicas que possam enfrentar a violência e o feminicídio.”
Thaís explicou que o dossiê foi também abordou os transfiminicídios, por entender que é necessário que exista esse registro, uma vez que eles não são computados nas estatísticas oficiais dos órgãos que tratam do assunto. “Em 2020, cinco mulheres travestis ou transexuais foram mortas no RS. Em 2021, quatro pessoas trans foram mortas no RS”, destaca o dossiê.
Em sua abordagem a ativista também frisou também a subnotificação nos casos de feminicídio, que podem ser desqualificados na hora do registro, quando uma tentativa de feminicídio é registrada como lesão corporal. "No feminicídio a gente precisa seguir as diretrizes para julgar, investigar e processar os assassinatos de mulheres com uma perspectiva de gênero”, aludiu Thais, citando como exemplo o caso da jovem Kaingang, Daiane Griá Sales, de 14 anos, assassinada em Redentora, no ano passado.
De acordo com o Anuário de Segurança Pública, dos assassinatos violentos de mulheres que não foram tipificados como feminicídio, no ano passado, 14,7% foram de mulheres assassinadas por companheiros ou ex-companheiros, totalizando 377 mulheres. "Temos uma dificuldade de traçar um perfil de dados com os enfoques em identidade de gênero, orientação sexual, etnia, deficiência. Tivemos que montar a Lupa para além do observatório procurando outras fontes”, expôs.
Rede sem proteção
Niara de Oliveira, jornalista, escritora, integrante do Levante e uma das responsáveis pelo dossiê, falou sobre o estado das políticas públicas no RS. Destacou o sucateamento e o abandono das políticas contra o enfrentamento da violência contra as mulheres. “A rede de enfrentamento (Rede Lilás) não tem conseguido diminuir os números de violência. Essa é a grande tristeza, a constatação de que toda essa rede montada não é suficiente para dar conta da violência.”
Ressaltou que o estado do RS, governo e prefeituras, sufocaram financeiramente a rede de proteção, citando como exemplos o caso do Centro Estadual Vânia Araújo, de Porto Alegre, e o caso em Pelotas do prédio de atendimento que está mudado de lugar. “Isso influencia no resultado final da denúncia da violência doméstica acaba influenciando nos números de feminicídio no final”, disse.
Ela também destacou que o RS foi um o último estado a aderir ao Pacto de Enfrentamento da Violência Contra a Mulher, em 2011. “A partir de 2015 passamos a ter esse processo de sucateamento das políticas de enfrentamento, que aparece agora. Quem atende na ponta, quem acolher mulheres, quem luta ao lado essas mulheres pela vida delas percebe isso nitidamente.”
Niara citou como exemplo um caso particular, quando na semana passada foi procurada para um acolhimento. “Quando uma militante é procurada pessoalmente é porque o Estado está falhando, é porque suas ferramentas não estão funcionando”, afirmou.
Por fim a ativista mencionou que o ex-governador Eduardo Leite (PSDB), quando renunciou ao cargo, fez o anuncio de R$ 1 milhão para os Centros de Referência no estado. “Esse dinheiro não chegou na ponta ainda. É bonito fazer o anuncio da verba, mas ele não chega, e a gente não tem notícia da aplicação dessa verba. Embora tenhamos todas as ferramentas elas estão sendo destruídas aos poucos, isso tem influenciado nos números de feminicídio e a gente precisa fazer essa rede funcionar. Hoje no estado essa rede no estado é uma ficção e, falhando, faz com que as mulheres morram”, alertou.
"Estamos falhando e muito"
Sobrevivente de tentativa de feminicídio em 2003, a promotora legal popular Fabiane Lara dos Santos, do bairro Mathias Velho, do município de Canoas (RS), ressaltou as ações feitas pelo Levante Feminista, do qual faz parte, diante do descaso com a morte das mulheres. "Nós temos que ter noção que nós, enquanto sociedade, estamos falhando e muito. Todas nós temos as mãos sujas de sangue, todos esses homens tem as mãos sujas de sangue”, enfatizou.
Também destacou o sucateamento da rede de enfrentamento e dos Centros de Referência no estado, citando Canoas, onde houve quatro feminicídios no ano passado. “Estamos vendo sim a rede de enfrentamento sendo estraçalhada, temos que estar implorando para participar. A gente é a ponta e atende essas mulheres lá na periferia e não tem o respaldo da rede, a rede que deveria nos assessorar porque a gente está fazendo um trabalho de lacuna da rede e do Estado”, expôs.
Ainda segundo a promotora, nos 16 anos de vigência da Lei Maria da Penha, a mesma não foi implementada em sua plenitude. “A gente gostaria que tivesse o comprometimento (da Assembleia). Se a gente está sendo ouvida, porque não estamos conseguindo resolver? Falando assim parece fácil resolver, falta boa vontade, união, uma situação pactuada entre todos os poderes, com a mesma disposição”, avaliou.
“Eu sou uma sobrevivente, eu sei o que é ser atendida sem ter rede nenhuma. É descabido destruir uma rede que é nossa, ver situações que eram para ser superadas regredindo. Eu não pude colocar o meu agressor na prisão. Eu levo a marca no meu pescoço até hoje por conta da facada que eu levei”, relatou. Para a promotora é preciso de investimento, estrutura, pesquisa e trabalho de conscientização.
Depois da fala de Fabiane, Télia leu as dez medidas propostas pelo Levante.
Na sequência, a fala foi aberta para as demais participantes da audiência. Manifestaram-se as deputas Luciana Genro e Stela Farias; pelo Ministério Público, Carla Fros; Ewelin Canizares do Movimento Feminista de Mulheres com Deficiência Inclusivas; Fabi Dutra da União Brasileira das Mulheres (UBM); Ariane Leitão da Força Tarefa da Assembleia; Rita Guaraná do Levante Feminista de Pernambuco e representante do Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e com baixa visão; Lavinia Dias, vereadora de Capão da Canoa; Marisa Irasete, advogada, presidente da Comissão da Mulher Advogada OAB de Esteio e integrante do levante feminista; Reginete Bispo, suplente do senador Paulo Paim; Viviane Martines do Grupo Autônomo de Mulheres de Pelotas e pesquisadora da UFPEL sobre violência contra as mulheres (GAMP).
Mãe traz a dor de perder uma filha para o feminicídio
Por último houve a fala de Sílvia Moraes, moradora de Canoas que perdeu sua filha, Débora Machado, para o feminicídio em fevereiro deste ano. Ela deu seu depoimento a pedido da Procuradoria da Assembleia.
“Esse domingo foi muito difícil para mim que foi Dia das Mães e minha filha, que também era mãe, eu tive que ir no cemitério levar flores para ela. Não é coisa que a gente sonha e espera fazer. A gente não pode depender de prefeitos. Não é só verba da prefeitura, não vem verba do governo para isso (para os Centros de Referência), tudo é limitado, tudo é difícil. Espero que vocês consigam criar uma lei que seja obrigatório em todos os locais, que não seja obrigação de um prefeito, porque a gente pode não ter sorte de ter um prefeito que olhe para o lado feminino sempre, ou a maioria dos moradores acha que é um dinheiro jogado fora. Outra coisa é o medo, não é porque a minha filha já morreu que eu não carrego o medo dentro, esperando quando ele for sair da cadeia. Esperando se ele não vai buscar o pai dela, não vai vir matar o meu neto, porque ele é um sociopata, não um homem”, expôs emocionada.
Sílvia ainda relatou que várias vezes a família foi à delegacia fazer ocorrência e que ela queria expor a foto do agressor na entrada do edifício, e eles disseram que não pode. Segundo ela, o responsável pela morte de sua filha entrou no prédio fingindo querer comprar um apartamento.
“Levei meu neto no cemitério e ele gritando e chorando eu quero ela’. A gente fez de tudo para evitar isso. Poucos dias antes dele matá-la, mandou uma mensagem dizendo que era o limite final, ‘ou tu volta ou tu vai morrer’. Eles não tem limite para nada. E quando postamos sobre a morte dela, ele foi nos comentários dizendo que nós éramos culpados, que teve que fazer isso porque 'vocês nos separaram'. Tu acha que uma pessoa assim está arrependida?”, indagou.
Débora Machado, 26 anos, morreu com um tiro na cabeça em fevereiro deste ano, dado pelo seu ex-namorado. O crime aconteceu em um condomínio residencial. Débora tinha medida protetiva.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira