“O Brasil precisará refundar a sua história verificando o fundo das violências que hoje nos atacam o peito”, frisou a vereadora pelo PT de Salvador (BA) e neta de Carlos Mariguella, Maria Mariguella, durante a mesa "De Marighellas a Marielles: o custo democrático da falta de justiça de transição". A atividade, que integra o Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD), aconteceu nesta quarta (27).
Promovido pelo Instituto Vladimir Herzog (IVH) e pelo Transforma MP, o debate contou com a participação do pastor Henrique Vieira, da advogada e mãe Marielle Franco, Marinete Franco, do Procurador da República Marlon Weichert, e do diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog (IVH), Rogério Sottili. O encontro teve a mediação de Alessandra Queiroga e apresentação cultural de Nei Lisboa.
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Para os participantes, a garantia dos direitos humanos e a manutenção e o fortalecimento da democracia só serão possíveis quando houver de fato uma justiça de transição que enfrente o passado da ditadura e a impunidade no país. Para tanto, entendem que é preciso responsabilizar, reparar, buscar a verdade, valorizar a memória e reformar as instituições.
"Não podemos repetir os erros do passado"
Em sua fala de abertura, o diretor do IVH, Rogério Sottili, pontuou que estamos vivendo um dos piores momentos da democracia brasileira. “Precisamos discutir essa história, fazer justiça de transição porque se não fizermos, se não responsabilizar de forma judicial todos aqueles que cometeram crime de lesa humanidade, estamos sinalizando para as futuras gerações que tudo pode acontecer”, destacou.
Para o diretor, hoje não se pode mais repetir os erros do passado. “Estamos vivendo hoje no mundo inteiro uma oscilação entre velho mundo e outro mundo é possível. Esse fórum pode apontar de que nós queremos outro mundo pautado pela democracia, pela defesa dos direitos humanos”, completou.
"Não toleraremos qualquer passo dado fora da democracia"
A vereadora Maria Mariguella destacou uma frase que seu avô costumava proferir sobre a democracia brasileira tinha um defeito de origem, um pecado original.
“Ele dizia que a democracia tinha conteúdo de elite. E se ela tem conteúdo de elite as instituições brasileiras tem conteúdo de elite. Quando os realizadores desse encontro tomam as instituições também por dentro delas e vão questioná-las, ocupá-las e vão incidir sobre elas trazendo responsabilidade sobre a democracia na sua profundidade, acho que estamos debatendo e incidindo sobre esse pecado original”.
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Conforme ressaltou a parlamentar, é importante que se saiba que houve um golpe no Brasil em 2016. "Um golpe parlamentar, jurídico, midiático e com as forças de parte do capital brasileiro", diferente do golpe de 64, que foi um golpe militar, empresarial e também com forças civis organizadas, mas que usou recursos militares para incidir nas instituições e fechá-las.
“O golpe de 2016 avança nas instituições e dá sua cartada por dentro delas. Hoje o governo brasileiro depõe contra as instituições e isso não pode ser tolerado. As instituições brasileiras precisam servir ao país, ao seu povo”, reforçou, destacando que não será tolerado qualquer passo dado fora da democracia. “A democracia é um arado, a democracia reivindica trabalho diário, é como um alimento que exige o trabalho na terra para que a gente se alimente. Estar aqui hoje é cuidar da democracia, cuidar desse arado”, salientou.
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Além de tratar da trajetória da sua família e das perseguições feitas a ela, Maria falou sobre o filme Mariguella. “O filme consegue dialogar com esse tempo, porque o Brasil de 18, de 16 de 20, 22 é o próprio Brasil que não se refez, o Brasil que não completou a sua justiça de transição e tem hoje na vida pública e na vida política a própria excrescência daquilo que a gente não superou”, avaliou.
Fundamentalismo religioso e intolerância
Ao falar do papel da religião dentro do contexto da democracia, o pastor Henrique disse que a experiência da espiritualidade e da religião deve estar a serviço da democracia, da justiça social, do bem comum, do respeito a diversidade, do Estado laico e da emancipação do povo empobrecido e oprimido.
“A experiência religiosa que me forma, a tradição da qual faço parte é essa que vincula a religião à luta política por emancipação humana. Fé e política se relacionam necessariamente. O perigoso, o que historicamente promove violência é quando a fé capturada pelo fundamentalismo torna-se um projeto de poder de se utilizar do Estado para, a partir das políticas públicas e da legislação, pautar a vida das pessoas, o comportamento das pessoas e a sociedade como um todo”, sinalizou.
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De acordo com Henrique, o fundamentalismo religioso carrega a marca da intolerância, de não celebrar a diversidade e se traduz muitas vezes como um projeto de poder. “Isso é necessariamente violento, autoritário, antilaico e antidemocrático e precisa ser enfrentado e superado pelo bem da democracia. A religião tem vocação pública e política. A experiência religiosa pode ser sim um fator que ajuda na construção de um país com democracia e justiça”, afirmou.
Para o pastor, no contexto atual há um avanço significativo da lógica do fanatismo religioso. “Nessa areia movediça, nesse pânico coletivo de uma sociedade neoliberal que tira o sentido comunitário e afetivo da vida, vem a narrativa fundamentalista e encontra um espaço para recolocar o indivíduo em um chão firme", disse. "Precisamos de uma justiça de transição que de nome a essas violências e responsabilize judicialmente porque não há como avançar em um futuro de paz sem reconhecer esse histórico de violência."
Ao falar sobre a retomada da democracia, que agora está em risco, Henrique disse para ver verdadeira é preciso de uma rebelião popular organizada e não só acordo de chefes. “Se não houver projeto popular daqui a 10 anos, o acordo de cima cai de novo para a extrema direita retomar o poder, vai ter que ter rebelião organizada por baixo”, concluiu.
Falta de justiça e resposta
A advogada e mãe de Marielle Silva, assassinada em 2018, e cujo os mandantes do crime seguem ainda sem resposta, Marinete Silva, disse questionar-se sobre a democracia todos os dias.
“É uma democracia que tira a vida de uma parlamentar, estamos há quatro anos em um processo que não há transição. Não chegou para Marielle, não chegou para outras pessoas que estão aí há anos. São quatro anos de uma luta, transformando não só o luto em uma luta, mas sobrevivendo de alguma maneira porque a gente vive com esse escritório do crime cada vez mais crescente no Rio de janeiro, a milícia", expôs.
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Ela resgatou a história de Marielle na política e contou o receio que tinha da sua filha entrar na política. "O que foi cometido foi uma violência do Estado e precisamos de uma resposta. Não dá para entender a brutalidade que foi aquilo. Uma parlamentar que ia contra o sistema, que chega para fazer aquela mudança. Não sabemos até hoje quem Marielle incomodou. Até quando vamos continuar essa transição que não existe, que não chega às famílias, até quando vamos viver esse processo democrático que não avança", questionou, ressaltando a importância da mobilização.
“Temos que trabalhar a justiça”
Há um legado antidemocrático que confunde o cidadão, a sociedade, e que contaminou as instituições, apontou o procurador Marlom. “Sem romper com esse legado de uma forma evidente e demonstrando quais são os desvalores que eles trazem para a vida social e para a vida política, de como isso distorce o sentido de democracia, fica muito difícil de reconhecer o que é nefasto nessa extrema militarização da política e da vida", afirmou. "Isso se soma com a transição brasileira, transição que ao invés de enfrentar esse legado agrava a ditadura”, completou, destacando que a transição no Brasil tem como fiador a elite brasileira e está sustentada em dois pilares: impunidade e esquecimento.
“Temos que fazer o processo de transição. O que vivemos nesses quatro anos é espécie de soluço desse mesmo processo. De um pacto pacto renovado a cada novo governo. Estamos na véspera de uma oportunidade de fazer o processo que não foi feito. Se queremos ter realmente uma democracia que se consolide, que avance, temos que trabalhar a justiça, mas não a justiça que temos, classista, racista, temos que falar de Justiça com J maiúsculo”, finalizou.
Sobre os Fóruns Sociais em Porto Alegre
O Fórum Social das Resistências (FSR) e o Fórum Social Mundial Justiça (FSMJD) iniciaram nesta terça-feira (26) em Porto Alegre, com a marcha de abertura. Os dois eventos contam com atividades presenciais e híbridas. Centenas de debates vão ocorrer até o sábado (30), quando acontece a plenária de encerramento que organizará um documento preparatório para o Fórum Social Mundial que será realizado no México entre os dias 1º e 6 de maio.
O FSMJD tem atividades focadas na transformação do sistema de justiça e na defesa da democracia, reunindo membros do judiciário com movimentos sociais para repensar as estruturas que perpetuam as desigualdades. Já o FSR traz movimentos sociais e organizações que para debater saídas para as crises que se abatem sobre o mundo e o Brasil, que penalizam a população mais pobre e vulnerabilizada e o meio ambiente.
Fórum Social das Resistências: Programação
Fórum Social Mundial Justiça e Democracia: Programação
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira