“Oito meses de gravidez. Um sol quente de dar agonia. Pegava o carro de mão e ia embora pegar água. E era longe, viu? Longe. Era mais ou menos uma hora, indo e voltando pra casa”.
Na zona rural de Cumaru, a 123 km de Recife, uma cisterna deu outro rumo para a vida de Ivoneide Santos Silva. Graças à estrutura, construída há 10 anos, a agricultora tem acesso regular a água no quintal de casa.
“Isso aí é um pote de mel que eu tenho em casa. Se não fosse essa cisterna era muito difícil pra mim”, pontua.
A garantia da segurança hídrica, antes um sonho para a mãe de quatro crianças, possibilita também a geração de renda com a criação de animais.
“Eu tenho uma faixa de dez animais pequenos, entre bode e ovelha. Tem uma vaca e um bezerro. A vaca já está prenha. Tudo graças a Deus depois dessa cisterna”, conta Ivoneide.
Desde a implantação, em 2003, o Programa Cisternas, criado no Governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para universalizar o acesso à água na região semiárida, alcançou mais de 5 milhões de brasileiros. Foram mais de 1,3 milhão de cisternas construídas e 1.200 municípios atendidos.
Mas o que parecia ser uma nova configuração para o semiárido brasileiro tomou um rumo desalentador nos últimos anos. Com a eleição de Jair Bolsonaro e a redução histórica de recursos destinados à segurança hídrica e alimentar, a construção de cisternas praticamente estacionou.
O desmonte fez ressurgir o cenário de escassez de décadas atrás para famílias que ainda não tiveram acesso à tecnologia.
Nesta reportagem especial, o Brasil de Fato foi até o agreste pernambucano conhecer os dois lados de uma mesma realidade: as vidas transformadas com ajuda das cisternas e o drama de quem ainda não tem acesso regular a água no dia a dia.
O caminho da água da chuva
Na casa de Lucimauro Bezerra, o reservatório é a chave para manter a horta, que dá frutos durante todo o ano.
“Toda a água que cai ali, ela corre para a cisterna. Aí se chove hoje um pouquinho, se chove amanhã ou outro dia, aí vai juntando toda aguinha que chover aí durante um mês, dois meses de inverno. Mesmo se não encher, fica aí uma meia cisterna d'água que já é água demais também”, conta o agricultor.
A cisterna da casa de Lucimauro, com capacidade para armazenar 52 mil litros de água, é o modelo mais comum nos quintais das famílias rurais do agreste.
No equipamento, área de captação da água de chuva tem 200 m² e é chamada de “calçadão”. A estrutura de concreto, levemente inclinada, é rodeada por um meio fio e construída um pouco acima do reservatório de água.
Quando a chuva cai, a água é conduzida para uma caixa de decantação antes de chegar até a cisterna. Coberta e fechada, a estrutura protege a água da evaporação e de contaminações por impurezas trazidas pelo vento, como os dejetos de animais.
“Hoje a gente tem no semiárido algo em torno de duzentas mil famílias que têm uma fonte de água para produção de alimentos. E certamente a diversidade alimentar e a qualidade dos alimentos que essas famílias consomem é superior àquelas famílias que não têm essa fonte de água”, afirmou o então coordenador executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Alexandre Pires. Atualmente, Alexandre está afastado da coordenação.
Seleção das famílias
Em cada localidade, uma comissão municipal — formada por sindicatos rurais, organizações vinculadas à ASA e secretarias dos municípios — organiza o processo de implantação das cisternas. São essas comissões que mapeiam os municípios que mais precisam de água.
O mapeamento também é feito ao cruzar os dados do Cadastro Único do Governo Federal, especialmente para chegar às famílias que estão em condição de extrema pobreza.
Após a seleção, as famílias aprendem a gerir a água e como cultivar os frutos da caatinga. Depois, há uma participação coletiva na escavação do buraco e em outras etapas da construção das cisternas. Também são ensinados os procedimentos para limpeza periódica da estrutura e todo o processo de retirada dessa água com bomba manual ou elétrica.
Pela metodologia da Articulação do Semiárido, o custo total de fabricação de uma cisterna de placas sai em torno de R$ 4,5 mil, valor usado para a mobilização social e a capacitação das famílias atendidas pelo programa.
“Um negócio desse aí não é todo mundo que constrói. Porque isso aí teve um investimento alto, a gente recebeu quase cem sacas de cimento de cinquenta quilos para fazer uma coisa dessa”, exalta Lucimauro.
“As ferragens, cimento, pedreiro, isso tudo foi o projeto. A gente não gastou nada. Só entramos com a contrapartida, né? Com a mão de obra”, completa.
Desmonte em curso
Mas segundo dados do Ministério da Cidadania, no último ano, o Programa Cisternas construiu somente 4,3 mil equipamentos em todo o semiárido. É o menor número desde a criação da política pública, em 2003, e representa uma queda de 98% em relação ao ano de 2014, quando foram concluídas 149 mil unidades.
Segundo a ASA, não houve pagamento dos recursos para a execução do programa em 2021. E o valor destinado pelo governo já era baixo: R$ 68 milhões, o menor orçamento desde 2006.
Sem as cisternas, muitas famílias precisam recorrer a baldes, caixas e tambores para armazenar a água, como faziam décadas atrás.
“Toda chuvada que dá a gente perde. Entendeu? Não tem como nós juntar. Não tem onde. Tem um tonel, um balde, dois. Aí perde toda água”, explica Josilda Avelino Dantas, que vive no Sítio Pilões, a 20km do centro de Cumaru.
Para suprir a falta de um reservatório, a agricultora caminha cerca de 1km, duas vezes ao dia, para ter acesso à água na cisterna da escola. Na divisão das tarefas, o caminho diário é feito pelas mulheres da casa. Aos maridos e filhos, cabem outras atividades do dia a dia.
Quando está muito atarefada, Josilda pede para as filhas, uma de 16 e a outra com 18 anos. Mas a agricultora não gosta: “Eu não quero que elas peguem peso porque elas são muito novas".
“É pesado, né? Para uma mulher dois bujão d'água é pesado. Mas é assim mesmo. A vida do brasileiro é assim”, pontua Josilda.
A rotina por água
A vizinha de Josilda, Leiliana Alves da Silva, de 22 anos, também não tem acesso regular a água. Duas vezes ao dia, as duas fazem o mesmo caminho com os carrinhos de mão.
“A gente sempre sofre por água, né? Porque tem que buscar água longe. Não tão longe mas também não é tão perto. E a gente precisa sempre de uma cisterna. Porque água é vida, né?", diz Leiliana.
Vivendo apenas de um vale gás e do Auxílio Brasil no valor de R$ 400, a agricultora só come do que planta durante os três meses de chuva. E não há fartura em seu pequeno lote: é milho, feijão e jerimum.
“O governo, o presidente, que tenham pena das pessoas pobres, né? Da gente que somos carentes, precisamos de muito recurso, muito emprego, né?”.
Não muito longe dali, Santana Carla Ferreira da Silva tem duas crianças e busca quatro galões diários em um ponto de água do exército, a 300 metros da casa onde vive com o marido e as duas crianças.
Quando chove, a família instala uma calha para encher vasilhas e tonéis com capacidade para 200 litros de água.
“Não temos água, a gente já carrega quatro baldes de água das terras do ponto do exército. A gente já não planta já por causa disso, entendeu? Porque não tem água o suficiente para os nossos gastos, para o nosso uso, e para cultivar as plantas”, conta Santana.
Também beneficiária do antigo Bolsa Família, a agricultora lamenta a falta de chuva e já percebe a mudança na vegetação. “Parou de chover e está assim, os matos ficando murchos. Não faz água nem nos Barreiros, porque a gente carrega também dos barreiros”, lamenta.
Os barreiros que ela cita são pequenos açudes de pouca profundidade, também usados para armazenar a água da chuva, mas que se evaporam com facilidade no clima do agreste.
Vivendo na mesma comunidade, mas em um cenário oposto ao de Santana graças à cisterna, Lucimauro Bezerra compara os períodos de chuva na região.
“Antigamente chovia aqui na nossa região cinco, seis meses de inverno. Eu mesmo sou testemunha disso. Vinte anos atrás, tinha um período de chuva que começava em março e no mês de agosto ainda chovia. Mas hoje a gente só tem três meses de inverno. Muito pouco e assim mesmo a chuva diminuiu muito”, explica o agricultor.
350 mil famílias sem cisterna
A tecnologia de cisterna, que coleta e armazena a água da chuva nos próprios quintais familiares, foi apresentada por uma comissão da ASA em visita ao ex-presidente Lula, meses após a posse para o primeiro mandato, em 2003.
Recentemente, a mesma ASA, conforme revelou reportagem de O Joio e O Trigo, tentou apresentar um novo plano de universalização do acesso à água ao Congresso Nacional e ao Ministério da Cidadania, mas sem sucesso.
O cenário é agravado pelo esfacelamento da Secretaria Nacional de Inclusão Social e Produtiva, pasta à qual o programa estava vinculado.
Na opinião de Alexandre Pires, a melhoria da qualidade de vida das mulheres camponesas e a diminuição da mortalidade infantil são duas conquistas que estão em risco com o desmonte da política pública.
“São essas mulheres que ainda não têm cisterna na porta de casa, e milhares não tinham no início dos anos 2000, é que sofrem buscando água a dois, cinco quilômetros de distância todos os dias, pelo menos duas vezes por dia e às vezes para buscar uma água que não tem uma qualidade suficiente para gerar saúde pra essas pessoas”, pontua. "Então eu acho que o impacto da do programa de cisternas acontece sobretudo na melhoria da qualidade de vida das mulheres”.
A estimativa da ASA é que haja hoje em torno de 40 mil famílias pernambucanas que não tenham água de cisterna para consumo. Em todo o semiárido são 350 mil famílias. Segundo o Ministério da Economia, 1,4 milhão de famílias estão sem nenhuma solução adequada de acesso à água no Brasil.
“Ao invés da gente ter uma maior sensibilidade do governo, com maior investimento no programa, para assegurar que mais famílias tivessem acesso à tecnologia diante do contexto, a gente tem exatamente o inverso disso, que é a desconstrução da política”, conclui Alexandre.
Outro lado
Questionado pelo Brasil de Fato, o Ministério da Cidadania não retornou os pedidos de esclarecimento até o fechamento desta reportagem.
A reportagem também procurou a Prefeitura de Cumaru (PE) para entender se há conhecimento sobre a situação de escassez hídrica vivida pelas famílias do Sítio Pilões e como irá atuar para resolver a questão, mas não houve retorno.
Edição: Felipe Mendes