Menos de uma semana depois do início da intervenção militar russa, Juan González, diretor de assuntos do hemisfério ocidental no Conselho de Segurança Nacional dos EUA deu uma entrevista a Rádio Voz da América (um ativo do Departamento de Estado). Ele declarou que “as sanções contra a Rússia são tão robustas que terão um impacto naqueles governos que tem afiliações econômicas com a Rússia, e isso é planejado. Então a Venezuela vai começar a sentir a pressão, a Nicarágua vai começar a sentir a pressão, assim como Cuba”.
Um artigo recente na revista Foreign Affairs, um fórum de debate do Departamento de Estado dos EUA, intitulado "O pesadelo euroasiático", defendeu a tese de que Washington não têm escolha senão combater a Rússia e a China ao mesmo tempo. Só que González revela que o “planejamento” do governo Biden também contempla uma frente ao Sul da fronteira, contra os três países latino-americanos que mais incomodam a Washington no momento. Mas esta frente pode ser mais ampla do que nos informa Juan González, um jovem quadro do Deep State nascido na Colômbia.
No dia 25 de março, a Comandanta do Comando do Sul das Forças Armadas dos EUA, General Laura Richardson, depôs no Comitê de Serviços Armados do Senado estadunidense, e afirmou que a Rússia seria a “ameaça mais imediata” na América Latina e no Caribe (ALC), mas a China representaria um desafio diplomático, tecnológico, informacional e militar aos EUA. Segundo a Sra. Richardson, sem a “liderança estadunidense”, a influência chinesa na região poderá “em breve, se assemelhar à influência egoísta e predatória que ela tem na África”. Ela se refere ao avanço da Nova Rota da Seda pelo continente africano desde 2013, responsável pelas inéditas dezenas de bilhões de dólares em investimentos chineses em infraestrutura básica (energia, telecomunicações, portos, ferrovias, rodovias etc.) em troca dos recursos naturais que a China necessita para alimentar sua indústria, responsável por 28% de toda a manufatura produzida no mundo e consumida globalmente.
O avanço da parceria entre China, América Latina e Caribe
Essa visão é elaborada pela Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China, criada em 2000 pelo Congresso. Sua função é monitorar e investigar a influência das relações com a China na segurança nacional dos EUA, e apresentar um relatório anual com recomendações de ações aos congressistas. O relatório de novembro do ano passado contém um capítulo específico sobre os últimos vinte anos de relações econômicas e políticas entre China e ALC, que desagradam a Casa Branca. Carregado de tintas ideológicas e um certo grau de paranoia, o relatório enfatiza o apoio dado pela China aos governos progressistas da região nas últimas duas décadas (chamados de “populistas autoritários”), destacando a Venezuela (Hugo Chávez e Nicolás Maduro), Bolívia (Evo Morales), Equador (Rafael Correa) e Argentina (Cristina Kirchner). Não à toa, governos que os EUA fizeram de tudo para enfraquecer ou derrubar, com relativo sucesso.
Contudo, o relatório também analisa dados concretos e percebe o aumento notável do comércio da região com a China: de US$18,9 bilhões (2002) para US$295,6 bilhões (2020), além de sua crescente importância como fonte de empréstimos, financiamentos (US$137 bilhões, de 2005 a 2020) e investimentos diretos (US$58 bilhões, entre 2016 e 2020). Graças a isso, lembra o relatório, a China foi fundamental na diminuição do impacto da crise financeira de 2008 na ALC, contribuiu para o aumento líquido na criação de empregos (1,8 milhão entre 1995 e 2016) e para a diminuição dos índices de extrema pobreza, que diminuíram de 12% (2002) para 4% (2018). Diante da crise da pandemia, a China não só garantiu a maior parte do fornecimento de insumos e vacinas contra a Covid, como ajudou a minimizar a recessão na região – a economia encolheu 7% em 2020 – graças ao aumento das importações de commodities latino-americanas. Em junho de 2020, as exportações de Brasil, Argentina e Chile, por exemplo, haviam aumentado 48% na comparação anual, de US$7,5 bi para US$11,1 bi.
A Comissão EUA-China se preocupa com o potencial de expansão da parceria sino-latino-americana e caribenha para setores mais estratégicos do que a exportação de commodities. É o caso das telecomunicações, onde sobressai a liderança da Huawei na implementação do 5G e a parceria espacial sino-sul americana, que já desenvolveu e lançou 21 satélites em conjunto com Argentina (10), Brasil (6), Venezuela (3), Bolívia (1) e Equador (1).
Eles temem que a expansão do controle ou influência chinesa sobre os portos da região, sobretudo no Caribe, permitam a Pequim eventualmente reverter seu uso, de comercial a militar. No entanto, o próprio relatório admite que as parcerias militares chinesas na região, apesar de crescentes, ainda não são relevantes. Os EUA possuem mais de 800 bases militares espalhadas pelo mundo e 76 delas estão na ALC, como no Panamá (12), Porto Rico (12), Colômbia (9) e Peru (8). Eles jamais admitirão que outro país expanda sua atuação militar no globo. Por fim, a Comissão recomenda uma série de ações ao Congresso dos EUA na região, com destaque para aumento de financiamentos e investimentos, envio de vacinas e monitoramento dos portos.
A reação do Congresso não tardou. No último dia 7 de fevereiro, os senadores Marco Rubio (Republicano) e Bob Menendez (Democrata), ambos filhos de cubanos, apresentaram uma lei chamada “Ato sobre Estratégia de Segurança do Hemisfério Ocidental de 2022". A lei convoca a combater a “influência maligna da Rússia e da China” na ALC, mas é bem genérica, precisa ser aprovada e não terá orçamento antes de 2023. Ainda assim, reflete o clima de nova guerra fria que irradia desde Washington ao resto do mundo.
Como Washington analisa a nova guerra fria na América Latina e Caribe?
O Dr. Evan Ellis é professor da Escola de Guerra do Exército dos EUA e o autor mais citado no relatório da Comissão EUA-China. Em janeiro desse ano, escreveu um relatório para o CSIS (Centro de Estudos Internacionais Estratégicos) onde faz um diagnóstico preciso do cenário político da região, do ponto de vista do Deep State. E ele não parece otimista. Intitulado Preparando para a deterioração do ambiente estratégico da América Latina e o Caribe, Dr. Ellis acredita que a combinação explosiva de crise social agravada pela pandemia de Covid-19, o renascimento do que ele chama de um “modelo particular de populismo autoritário de esquerda” e o engajamento cada vez mais estratégico da China com a região devem reforçar as tendências contrárias aos interesses dos EUA.
Além de Venezuela e Cuba terem superado tentativas recentes de golpes, diz ele, uma série de vitórias eleitorais de candidatos “populistas de esquerda” nos últimos anos (Argentina, México, Nicarágua, Bolívia, Peru, Chile e Honduras) trazem o risco da retomada das alianças regionais não simpáticas a Washington, enfraquecidas pela ascensão de governos de direita na última década. É o caso da CELAC – que reúne todos os países do continente, menos EUA e Canadá - criada como alternativa à Organização dos Estados Americanos, controlada pela Casa Branca. O presidente mexicano Lopez Obrador criticou duramente A OEA em julho do ano passado e pediu sua abolição. Em dezembro, ele recebeu o Fórum China-CELAC, que parece apontar para o avanço da relação estratégica com os chineses.
Dr. Ellis é cético a respeito da capacidade de mobilização de recursos estadunidenses para competir com investimentos chineses na região, como propõe a Comissão EUA-China. Primeiro, porque o Congresso está muito dividido, segundo, porque não é fácil convencer o setor privado a assumir essa missão. Por outro lado, as estatais chinesas – bancos, construtoras, mineradoras, energéticas etc. – planejam e executam a estratégia elaborada por Pequim, aumentando sua eficácia.
Ainda assim, ele recomenda ações imediatas, no estilo “guerra híbrida”: a) difundir narrativas midiáticas de denúncia sobre supostos malefícios das relações dos governos de esquerda com a China, b) apoio a movimentos de protestos e resistência contra governos locais não alinhados, c) aliança com as elites da região insatisfeitas com seus governantes “populistas autoritários” e d) sanções estrategicamente aplicadas aos países que representem uma ameaça aos EUA. Ao mesmo tempo, países aliados – ainda que pratiquem corrupção e agressões à população ou ao meio ambiente – devem ser isentos de sanções.
Nos próximos meses, duas eleições presidenciais podem enfraquecer a posição de Washington: as colombianas (maio) e as brasileiras (outubro). Na Colômbia, o candidato de esquerda Gustavo Petro lidera as pesquisas e pode substituir a direita aliada à Casa Branca, no poder há décadas. No Brasil, Lula segue à frente de Bolsonaro nas pesquisas e aumenta o arco de alianças ao centro. Mas o Dr. Ellis suspeita que sua prisão tenha “aprofundado o radicalismo de sua orientação populista de esquerda”. Lula nunca foi um “radical”. Porém, em maio do ano passado, em entrevista ao site chinês Guancha, ele demonstrou consciência da sina de nossa região: “não é possível que toda vez que um país da América Latina começa a crescer, tenha um golpe. E nesse golpe, tem sempre alguém dos EUA, tá sempre o embaixador dos EUA. Não é possível”.
Do ponto de vista geopolítico, o que difere a “onda progressista” dos anos 2000 da atual é a posição da China. Pequim ascendeu como protagonista no tabuleiro global e passou a desafiar, junto com Moscou, as arbitrariedades de Washington. Por outro lado, o robusto crescimento do nosso comércio com os chineses ainda se baseia na exportação de commodities, estruturalmente menos favorável à região a longo prazo. O novo realinhamento político que se anuncia na ALC conseguiria propor à China novos termos na relação econômica e política, fortalecendo nossa posição? Pequim já deu pistas de que está aberta ao diálogo, como no caso argentino. Finalmente, serão os EUA e seus aliados capazes de enfrentar, ao mesmo tempo, a Rússia, a China e a nova onda progressista que parece inundar Nuestra America, do Rio Grande à Patagônia? O tempo e a luta de classes dirão. Talvez o Dr. Evan Ellis tenha pesadelos pensando nas repostas.
* Marco Fernandes é pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, militante da Assembleia Internacional dos Povos, organizador da campanha Basta de Guerra Fria e co-editor do Notícias da China. Vive em Xangai, China.
Edição: Thales Schmidt