A mostra internacional de documentários “É Tudo Verdade” apresentou no Brasil neste início de abril o longa metragem soviético "A História da Guerra Civil", de Dziga Vertov. Foi produzido entre 1919 e 1921, retratando várias frentes de batalha da Guerra Civil russa, que sucedeu a Revolução de Outubro de 1917.
Vertov exibiu tal obra em 1921 aos delegados presentes ao terceiro Congresso da Internacional Comunista ocorrido em julho daquele ano. Não se sabe de outras apresentações naquele ano ou nos seguintes. O que é certo é que, depois disso, suas fitas ficaram desaparecidas, até serem recentemente redescobertas, restauradas e remontadas pelo historiador russo Nicolai Izvolov. Cem anos após sua última exibição, o documentário voltou às telas em várias mostras internacionais.
Dziga Vertov foi um documentarista pioneiro e diretor de cinema com forte atuação nas primeiras décadas da União Soviética. Tido como um dos maiores cineastas de vanguarda em todo o mundo, influenciou várias gerações de diretores internacionais, como os franceses Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, ou até mesmo o brasileiro Glauber Rocha.
Com vasta obra nas décadas seguintes, Vertov produziu os primeiros documentários no calor da Revolução Russa de 1917, da qual participou como apoiador dos Bolcheviques e ativista de agitação, propaganda e educação.
Educação e agitação política
Em obra imediatamente anterior, "Aniversário da Revolução" (1918), também desaparecida e apenas recentemente redescoberta e restaurada por Izvolov -, Vertov apresenta em ordem cronológica o desenrolar dos eventos da Revolução Russa. Ele compilou, em 2 horas, filmagens feitas (em geral para cinejornais) por ele e por outros cinegrafistas.
São apresentadas cenas (muitas inéditas para nós) com legendas explicativas da Revolução de Fevereiro de 1917 - quando a enorme insatisfação das massas leva à queda do Czar e a formação de um governo provisório que, embora com participação de dirigentes de partidos ligados aos trabalhadores, não rompe com a política anterior; cenas das crescentes lutas nas ruas impulsionadas pelos Sovietes (conselhos de trabalhadores e soldados que aderiram à Revolução); cenas das tentativas de golpe da burguesia com a ação reacionária do general czarista Kornilov; até as cenas da Revolução de Outubro, quando os Sovietes – sob o comando do Partido Bolchevique – tomam o poder, e formam um governo revolucionário que, pela primeira vez atende às demandas imediatas dos trabalhadores e camponeses, retirando o país da guerra e implementando uma reforma agrária ampla e radical.
Entre cenas do cotidiano das ruas agitadas pela Revolução, são mostrados também vários líderes do governo provisório (os social-revolucionários e mencheviques, Kerensky, Dan etc), os militares reacionários (Kornilov etc) e os líderes bolcheviques da Revolução de Outubro - Lenin, Trotsky, Kolontai, Radek, Kamenev etc.- em sessões dos Sovietes e em outras ocasiões.
Na segunda metade, "Aniversário da Revolução" mostra inúmeros momentos das frentes de batalha do primeiro ano da Guerra Civil. Na maioria delas, Trotsky - que recebera do partido Comunista a tarefa de organizar e liderar o vitorioso Exército Vermelho - aparece em destaque. Como Comissário do Povo (ministro) das Forças Armadas, ele é visto em vários momentos: acompanhando as linhas de fogo, orientando os pelotões de combate e animando/politizando com discursos os soldados revolucionários e as massas de trabalhadores e camponeses.
Cenas das Frentes de Batalha
“Aniversário da Revolução” foi preparado para a comemoração do primeiro ano da Revolução Socialista de Outubro e foi lançado na Rússia Soviética visando atividades de propaganda e de educação. Foi exibido em todo o país, viajando em trens de educação popular. Teve um enorme papel de propaganda revolucionária durante a guerra civil – tanto para elevar o moral das tropas vermelhas como para educar e mobilizar as massas trabalhadoras.
Já “História da Guerra Civil” é um documentário mais voltado à historiografia da guerra em si, mostrando os detalhes dos movimentos militares e dos embates das forças revolucionárias dos trabalhadores e camponeses, reunidas no Exército Vermelho mas também apoiadas por guerrilhas (partisans), contra o Exército Branco, composto por militares e mercenários a favor da restauração do czarismo e da ordem capitalista, e seus aliados imperialistas que invadiram o país.
Vertov apresentou nesse seu segundo documentário uma hora e meia de cenas reais das frentes de batalha ocorridas entre 1919 e 1921, da Ucrânia (ao oeste) à Sibéria (ao leste), de Baku (ao sul) a Petrogrado (ao norte). Apenas alguns dirigentes mais conhecidos diretamente envolvidos nas frentes militares aparecem. Trotsky, em particular, aparece discursando aos regimentos vermelhos na Sibéria: em Kazan e em Samara (onde parece organizar uma votação com a massa de soldados). Depois em Krasnaya Rechka (Tadjikistão), onde passa em vistoria à legião Checoslovaca (que, ao final, apoiou o Exército Vermelho, entregando a este o líder do Exército Branco general czarista Kolchak). É filmado também em Petrogrado, homenageando as tropas vermelhas que combateram em Kronstad, ladeado por Tukashevsky, principal quadro militar a operar diretamente com Trotsky, virando mais tarde marechal soviético e o mais brilhante estrategista e teórico militar do Exército Vermelho - sendo por isso executado por Stalin nos Expurgos de 1937. Além da guerra em si, o filme também mostra o esforço da retomada da atividade agrícola e industrial – quase que totalmente travada até então - na etapa final do conflito.
A produção de ambos os filmes fora de responsabilidade do Departamento Cinematográfico do Comissariado de Educação do Povo – como passou a ser chamado o ministério da Educação – e foi financiado com dinheiro do estatal, embora, formalmente, o cinema russo na época ainda não tivesse sido nacionalizado.
A História apagada
É intrigante o fato de ambos documentários não apenas terem tido suas apresentações suspensas nos anos seguintes aos seus lançamentos, mas também terem tido suas cópias (rolos dos filmes) desaparecidas nos arquivos estatais. Isso obviamente tem relação com o processo de burocratização contrarrevolucionária que começa a se formar na cúpula do estado soviético e do partido bolchevique (comunista), sobretudo a partir da morte de Lenin (1924).
A grande maioria dos dirigentes, membros do comitê central do partido entre 1917 a 1927, além dos quadros militares, foram executados nos Grandes Expurgos preparados pelo governo Stalin. Dirigentes que organizaram e garantiram a vitória da Revolução de Outubro – justamente por isso são eles (e não os burocratas stalinistas, no governo a partir dos anos 1930, quase todos ilustres desconhecidos em 1917) que aparecem em destaque nos dois documentários de Vertov.
A história da Revolução, com fatos reais registrados em quadros filmados, precisava ser também apagada pela burocracia stalinista governante. Ela necessitava falsificar os fatos para adequá-los aos seus novos interesses políticos. Nos anos 1990 essa mesma burocracia logrou enfim restaurar o capitalismo – tornando-se uma neoburguesia oligárquica e mafiosa. Ela finalmente passou a rejeitar por completo a Revolução de Outubro e a, oficial e publicamente, condenar Lenin e o bolchevismo. Os documentários de Vertov, redescobertos e restaurados, ajudam a resgatar a verdade que se tentou assassinar.
* Alberto Handfas é professor de economia da Unifesp
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Felipe Mendes