Do início da pandemia de covid-19 até janeiro de 2022, ao menos 15.586 pessoas encarceradas se contaminaram com o vírus no estado de São Paulo. Destas, 80 morreram. No primeiro ano da pandemia, o governo estadual de João Doria (PSDB) resolveu cortar R$ 14 milhões da verba para atendimento à saúde nas prisões e R$ 31 milhões da aquisição de produtos como os de higiene.
Em seguida, só nos cinco primeiros meses de 2021, as mortes por covid-19 entre as pessoas presas em São Paulo superaram o total do número de óbitos dessa população ao longo de todo o ano anterior.
Os dados constam no relatório Inspeções em Presídios durante a Pandemia de Covid-19, lançado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo nesta sexta-feira (1). Segundo o documento, “essas mortes resultam de uma combinação perversa de violações de direitos no cárcere”.
O documento se baseia em 62 inspeções em presídios paulistas entre os anos de 2020 e 2022. O diagnóstico feito pelos defensores é que dentro do sistema prisional se vive “o caos e a barbárie”.
Insalubridade, superlotação, pragas, falta de assistência médica e a decisão do governo do Estado de desrespeitar a prioridade da população carcerária na imunização são elencados no relatório para constatar que “é impossível ser saudável nesse ambiente”.
“A omissão proposital quanto à tomada das medidas necessárias para o combate à covid-19 desaguou, com isso, nessa tragédia anunciada”, discorre o relatório.
“A gente chegou a ter unidades prisionais com dois terços da população infectada com covid-19”, atesta a defensora pública Marina Duarte.
“Estamos falando de uma população prisional elevadíssima, com problemas estruturais nas unidades prisionais muito graves desde antes da pandemia e que se agravaram muito no cenário pandêmico”, explica Duarte.
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Superlotação
Das 201 mil pessoas encarceradas nos 179 estabelecimentos prisionais de São Paulo – em sua maioria negras, jovens e com o ensino fundamental incompleto –, quase todas vivem amontoadas dentro das celas: 81,48% dos presídios estão superlotados. Entre as vagas do sistema prisional paulista, 140% estão ocupadas.
As inspeções encontraram até 43 pessoas dividindo espaços previstos para, no máximo, 12 indivíduos. Em 74% dos presídios, não há distribuição de “colchões”. “Colchões” entre aspas no relatório, pois são, efetivamente, laminados de espuma sem revestimento.
No Centro de Detenção Provisória (CDP) de Limeira, chamou a atenção dos defensores uma cela na unidade que é destinada à “quarentena”. Trata-se de um lugar onde as pessoas que chegam ficam isoladas por 15 dias sem contato sequer com a luz do sol. De “tamanho diminuto”, a cela não tinha banheiro, nem circulação de ar.
Na contramão da recomendação do Conselho Nacional de Justiça
O coronavírus ainda chegava ao Brasil quando, em março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu uma recomendação (nº 62/2020) na qual defende o desencarceramento como medida de combate aos impactos da pandemia.
Longe de ser um insight brasileiro, ações emergenciais de soltura de presos aconteceram ao redor do mundo. No Irã, cerca de 120 mil pessoas foram retiradas do cárcere. Na Turquia, 102 mil.
No Brasil, no entanto, a aplicação da recomendação foi ínfima. Segundo a Defensoria Pública, só em São Paulo, entre março e setembro de 2020, foram feitos 27,5 mil pedidos de soltura de pessoas presas em razão da pandemia. Destes, 5,5% dos casos foram acatados.
Vacina por último
Impedidas de acessar a liberdade emergencial ou o regime de prisão domiciliar, a maioria das pessoas presas em São Paulo, estado governado por João Doria (PSDB), viu a sua prioridade na ordem de vacinação estabelecida no Plano Nacional de Imunização ser absolutamente ignorada.
A largada da imunização foi dada em 17 de janeiro, com a enfermeira Monica Calazans. A primeira dose da vacina chegou de forma consistente à população carcerária meses depois, em agosto.
Falta de assistência médica
Além disso, o relatório aponta que “nenhuma das unidades inspecionadas tem equipe mínima de saúde completa”. Em meio a maior crise sanitária do século, 48% dos presídios inspecionados não têm nenhum médico.
Entre eles, os CDPs de Pinheiros II e o Vila Independência, onde vivem atualmente 1.042 e 1.227 pessoas, respectivamente.
Em 22% das unidades inspecionadas, não há dentistas; em 55%, não há psicólogos; e em 37%, não há assistentes sociais. De acordo com a Defensoria Pública, ao menos 1.395 presas no estado sofrem problemas graves de saúde e estão desassistidas.
Quando visitada por defensores, a Penitenciária Feminina da Capital possuía 606 mulheres detentas, incluindo três grávidas e 22 lactantes. Viviam ali, portanto, 22 crianças de até seis meses. A unidade não dispunha, no entanto, de nenhum pediatra, ginecologista ou obstetra.
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Insalubridade e pragas
“A completa desumanidade carcerária é ilustrada também pela situação do CDP de Suzano, onde três celas no setor de convívio tinham privadas quebradas, obrigando as pessoas presas a fazer as necessidades fisiológicas no ralo do chuveiro”, descreve o relatório.
Falta de iluminação, rachaduras, vazamentos de águas, fiações elétricas expostas e infestação de insetos e pragas diversas se apresentam como um padrão no sistema prisional paulista.
“Grande parte das unidades inspecionadas tinha infestação de insetos e outras ‘pragas’, principalmente percevejos, que vivem em ambientes quentes, úmidos e escuros, alimentam-se de sangue e costumam se esconder em colchões”, expõe o documento.
Ao Brasil de Fato, Luciana Silva*, familiar de pessoa presa, contou que “o presídio de Itaí está cheio de carrapatos”. “A gente não sabe mais o que faz. Estão comendo as pessoas, é desumano”, relata.
“Eu pedi para o meu marido pegar e guardar os carrapatos, eu trouxe, olha a situação”, afirmou, ao encaminhar uma foto dos aracnídeos.
Racionamento proposital de água
Em 70% dos presídios inspecionados, foi constatado o racionamento de água. Em 21% deles, a oferta de água acontece por um tempo menor do que uma vez por dia.
“O corte periódico de água foi confirmado pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) em resposta aos ofícios enviados”, expõe o relatório, “muito embora não utilizem o termo racionamento de água, mas eufemismos como ‘uso racional de água’ e ‘controle na distribuição do recurso"", aponta o relatório.
Com exceção da Penitenciária Feminina da Capital, nenhuma unidade prisional de São Paulo oferta banho aquecido para todas as pessoas presas.
Opção política
“O primeiro passo para mudar esse panorama é reconhecer que a opção política do Estado de São Paulo pelo encarceramento em massa de sua população pobre e vulnerabilizada é insustentável, inclusive do ponto de vista orçamentário”, discorre o relatório da Defensoria Pública.
O Brasil de Fato pediu à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo um posicionamento a respeito das violações de direitos denunciadas. Elas são negadas pela pasta, que diz haver chuveiro quente "em 100% dos presídios", que "os presos têm atendimento de saúde garantido" e que as unidades "passam constantemente por dedetização e diariamente por limpeza".
A SAP informou que em 2021 houve um aumento de R$ 204 milhões nos recursos em relação ao ano anterior, mas não especificou onde eles foram investidos.
Segundo a Administração Penitenciária, não existe racionamento de água: "Todos os presídios seguem o que determina a Organização Mundial da Saúde, que estipula o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água por pessoa por dia".
"Desde o início desta gestão", informou a SAP, "foram inaugurados oito novos presídios, ampliando 6,6 mil vagas no sistema prisional, além de cinco novas unidades prisionais em construção para criar outras 4,1 mil novas vagas".
Na contramão da expansão do sistema prisional, o relatório da Defensoria Pública defende ser "necessário racionalizar esse sistema e, sobretudo, passar a tratar as pessoas presas como seres humanos”, finaliza o relatório.
*O nome foi alterado para preservar a fonte.
Edição: Rodrigo Durão Coelho