"Dona Maria, aqui também não está nada fácil. A maior dificuldade é a fome. Cortaram muitos itens, como o docinho, o pãozinho, a salada e o suco. A nossa alimentação não está nos suprindo. No café um pãozinho e dois dedos de café. No almoço uma boia muito rala, dois dedos de feijão. A mesma coisa na janta, que a gente paga às 16h30 da tarde. Passamos mais de 14 horas sem nada para comer. No domingo, é uma caneca de sopa e uma bisnaguinha para cada. Muitos passam mal de fome. Eu mesmo já passei mal."
A carta é de um homem preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros, em São Paulo, e chegou ao Brasil de Fato por meio da Associação de Amigos e Familiares de Presas/os (Amparar). O relato não é, nem de longe, isolado.
Com 201.088 pessoas aprisionadas no momento, o estado de São Paulo, apesar de corresponder a aproximadamente um quinto dos habitantes do Brasil, concentra cerca de um quarto de toda a população carcerária do país (que somava, em junho de 2021, 820.689 pessoas de acordo com dados do Ministério da Justiça).
Nos últimos 26 anos, São Paulo aumentou o encarceramento em 400% e, com ele, também seu complexo prisional. Representando cerca de um sétimo das 1.381 prisões espalhadas pelo país, o número de presídios no estado hoje está em 179.
"Em praticamente todas as unidades que a gente visita, a falta de alimentação ou a insuficiência dela é uma pauta das pessoas que estão presas", alega Thiago de Luna Cury, coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
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Jejum de 15 horas por dia
Em afronta à Resolução 3/2017 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que estabelece a obrigatoriedade do fornecimento de cinco refeições diárias, em quase todas as cadeias paulistas o acesso à comida acontece três vezes por dia.
Além disso, como narra a carta, a regra geral é a imposição de um jejum de, em média, 15 horas por dia. É o intervalo entre o jantar, servido aproximadamente às 16h30, e o café, às 7h30.
Em junho de 2021, a Defensoria Pública de São Paulo apresentou uma Ação Civil Pública (ACP) contra o governo estadual na qual afirma que "foi instituída a 'pena de fome' aparentemente de forma deliberada pela unidade federativa mais rica desta República".
A ação segue tramitando na justiça. No documento, dados obtidos a partir da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) e das inspeções dos defensores dentro das unidades apontam que, dentro de uma amostra de 130 presídios, em 80% deles o Estado fornece alimentação três vezes por dia.
Em 75,3% deles, a duração do jejum compulsório varia entre 13 e 16 horas diárias. Em quatro das cadeias, o período oscila entre 16 e 20 horas sem comer todos os dias.
"Não é possível conceber que pessoas presas não tenham garantido o mínimo necessário a uma existência digna, o que, por óbvio, inclui a oferta de alimentação em quantidade e qualidade suficiente para garantia de sua saúde. Tratamento similar não se dispensa a animais de parques e zoológicos", discorre a Ação Civil Pública.
Como explica a nutricionista clínica Talita Kumy, quando alguém passa muitas horas sem comer, o organismo se adapta por meio de hormônios para inibir a fome. "São os hormônios anorexígenos. Mas a necessidade energética continua. Aí o organismo começa a usar aquilo que ele tem de estoque: o tecido adiposo, a gordura, a massa magra, o tecido muscular", elenca.
"A primeira refeição depois disso, nesse caso, normalmente é o pão. Ele tem um alto índice glicêmico, é como se desse um susto no pâncreas, que começa a liberar muita insulina de uma vez só", descreve Kumy, formada pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e com atuação voltada à segurança alimentar como direito humano.
Conforme expõe Talita, "esse processo causa muito desgaste no organismo. Pode gerar agressividade e indisposição e também outras consequências ao longo da vida, como desnutrição e diabete".
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Em nota, a SAP afirmou que "o intervalo entre a última refeição de um dia e a primeira do dia seguinte é menor que o relatado pela Defensoria". Qual seria, então, esse intervalo? Não foi informado. O Brasil de Fato fez seguidas solicitações - desde o dia 26 de janeiro - a respeito do horário das refeições no sistema prisional paulista e não teve a pergunta respondida.
Segundo a SAP, o largo tempo entre o jantar e o café "é necessário por questões administrativas como contagem dos custodiados e troca de turno".
Prioridade orçamentária é expandir o sistema prisional
Com o mais recente presídio inaugurado no fim de 2021 em São Vicente, já são 17 cadeias a mais no complexo prisional de São Paulo só nos últimos oito anos. No que depender dos gestores, o ritmo deve continuar: mais cinco unidades estão em construção.
A lógica é questionada pela ACP da Defensoria Pública, segundo a qual "investe-se em construir prisões sem qualquer planejamento no sentido de se haverá comida para as pessoas presas – sim, são pessoas como nós".
Comparando as Leis Orçamentárias Anuais (LOAs) do estado de São Paulo de 2021 e de 2022, a previsão de investimento em “provisão de necessidades básicas para a população carcerária”, que inclui alimentação, higiene e alojamento, aumentou 15,75%. Já o investimento em expansão de vagas e presídios saltou 345,21%.
Em uma inspeção feita na Penitenciária 2 de Guareí em 2 de outubro de 2020, os depoimentos coletados por defensores sobre a alimentação – servida às 6h30, às 11h e às 16h30 – foram de "quantidade insuficiente", "qualidade mediana", "pouquíssima variedade" e "fruta ou salada fornecida apenas uma vez por semana".
"Relataram também que a quantidade de leite servida no café da manhã é insuficiente e este às vezes é servido azedo. As informações colhidas ainda dão conta de que não haveria dieta específica para pessoas com diabetes ou outras doenças que necessitem de alimentação diferenciada", discorre o relatório da Defensoria Pública.
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R$ 4,50 por pessoa ao dia
Com um cálculo feito a partir do valor destinado para a alimentação repassado à Penitenciária 2 de Guareí em 2019 e 2020, dividido pela média de pessoas presas e agentes penitenciários, a Defensoria chegou ao resultado de que o investimento estatal em alimentação é de R$ 4,50 diários per capta. Isso equivale a menos de R$ 1,50 para cada refeição.
Segundo a Ação Civil Pública, "fica evidente que as pessoas presas na Penitenciária de Guareí 2 são submetidas à pena de fome, por conta de ilegalidade cometida pelo estado de São Paulo, que repassa valor insuficiente à unidade prisional para a aquisição de gêneros alimentícios".
No Centro de Progressão de Pena (CPP) de Franco da Rocha a situação é similar. Com o mesmo cálculo, de acordo com a Defensoria, o repasse para a unidade prover alimentação nos anos de 2019 e 2020 foi de menos de R$4,21 diários para cada pessoa.
Ao Brasil de Fato a SAP afirmou que "os valores informados pela Defensoria Pública estão defasados e não representam o valor per capta atual". Este, no entanto, não foi informado.
De acordo com o órgão do governo estadual - sob gestão de João Doria (PSDB) -, no CPP de Franco da Rocha e na Penitenciária 2 de Guareí "a comida é preparada pelos próprios presos em uma cozinha própria da unidade, com alimentos que são adquiridos via pregão eletrônico, de acordo com a legislação".
A SAP informa, ainda, que "são adquiridos gêneros da agricultura familiar por meio do Programa Paulista da Agricultura de Interesse Social (PPAIS), sendo a primeira Secretaria de Estado a aderir ao programa".
A "mistura"
Oguntemi está com o filho preso há um ano e sete meses no CDP de Hortolândia. Lá, a capacidade é de 844 vagas, mas vivem 1.061 pessoas.
"O que eu já vi e vivi lá dentro é um horror. Os presos evitam de comer a carne, por exemplo. Eu não sei o porquê, mas eles dizem que quem come carne tem muito furúnculo e que não conseguem atendimento médico", conta Oguntemi.
"Eu presenciei, eu vi, eu vi", faz questão de salientar, "um preso que tinha, pelo corpo, 16 furúnculos. Todos inflamados. Ele andava com os braços abertos e os olhos escorrendo lágrimas de dor", narra.
Furúnculo é uma infecção bacteriana na pele e, segundo a nutricionista Talita Kumy, a recomendação nesses casos é de reduzir o teor de gordura da carne ingerida.
"O que acontece é que a exposição ao açúcar dos ultraprocessados combinada com a baixa ingestão de frutas e verduras pode causar processos inflamatórios que baixam a imunidade e facilitam a contaminação da bactéria que causa o furúnculo", aponta.
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Na Penitenciária de Potim 2, segundo outro pedido de providências da Defensoria, o problema central é também o da chamada "mistura".
Desta vez, foi feito um cálculo a partir de informações fornecidas pela unidade prisional, comparando, por um lado, a quantidade per capta de proteína de origem animal comprada. E, por outro, aquela que obrigatoriamente deveria ser oferecida de acordo com as normativas do próprio estado de São Paulo (Resolução SAMSP 16/1998).
A conclusão é de que, em 2019, foi servido 69,3% da proteína animal necessária. No ano seguinte a situação piorou, passando para 67,9%.
Feijão ralo e dois dedos de café
Além da "mistura", reclamações recorrentes atestam que o feijão é ralo e que faltam verduras, saladas, legumes e frutas. "Não tem tempero. É muita água para poder render", constata Oguntemi.
É o que mostram fotos feitas ao longo dos últimos três anos em inspeções da Defensoria nas quatro unidades do Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, na capital paulista.
Na visita mais recente feita pelos defensores ao CDP 4 de Pinheiros, em 2021, "o relato dos presos foi unânime que há uma semana era servido apenas macarrão com salsicha ou linguiça durante o almoço e o jantar", aponta o relatório.
Depoimentos dos detentos criticam, ainda, a pequena quantidade de café e leite distribuída pela manhã e o fato de o pão ser menor que o comum.
"Conversando com as mães aqui, na porta, a principal reclamação é a fome. E depois vem a doença, né? Sarna, picadas de insetos. Mas a fome é a principal", conta Oswaldo*, cujo irmão está detido no CDP de Pinheiros.
Olhando para a marginal, que beira a cadeia, e apontando para um dos muros que o separam de seu parente, Oswaldo respira fundo e define: "Isso aí não fica atrás de um campo de concentração nazista".
Escassez de frutas, legumes e verduras
De acordo com Oguntemi, a alimentação em Hortolândia é "reduzida". "São marmitex de tamanho médio, geralmente com a comida azeda. Eles passam muita fome. Muuuita fome. É muita escassez mesmo", relata.
A Resolução 3/2017, por meio da qual o Ministério da Justiça e Cidadania dispõe sobre a prestação de serviços de alimentação às pessoas privadas de liberdade e aos trabalhadores do sistema prisional, baseia-se no Guia Alimentar da População Brasileira.
Por isso, determina que os cardápios dentro das prisões devem oferecer, "no mínimo, cinco porções de frutas, verduras e/ou legumes in natura por dia (400g/por dia)".
Nada parecido com isso foi observado nas inspeções da Defensoria Pública em qualquer uma das unidades prisionais do estado.
De acordo com o órgão, no CPP de Franco da Rocha, por exemplo, nos anos de 2019 e 2020, foram adquiridas apenas 56,8% da quantidade de legumes e verduras que seria obrigatória.
Casos extremos de insuficiência nutricional
Lembrando das seis pessoas presas que morreram e das 56 que foram internadas no Piauí por falta de vitamina B1, Talita Kumy explicita que a falta de minerais e vitaminas decorrentes da ausência de frutas e verduras pode levar a casos extremos de insuficiência nutricional.
"E, em menor grau, afetam o funcionamento adequado do organismo, causando uma liberação maior de cortisol, uma relação intestinal pior", descreve a nutricionista, ao concluir que os impactos daí decorrentes à saúde e ao humor são "o oposto de ressocialização".
Questionada, a SAP diz "que em todas as unidades da Pasta são servidas, ao menos, três refeições (café, almoço e jantar) diariamente. A alimentação é balanceada e segue um cardápio previamente estabelecido e devidamente elaborado por nutricionistas".
As famílias, o jumbo, os ultraprocessados e a fome oculta
A letra cursiva preta de outra carta de um preso do CDP de Pinheiros a que o Brasil de Fato teve acesso descreve desespero. "Peço que ligue para a mãe e pergunte se ela conseguiu tirar os documentos e se ela já enviou... Pelo amor de Deus, conto com sua ajuda".
O detento se refere à larga lista de documentos autenticados em cartório exigidos pela SAP para que o familiar de alguém encarcerado faça uma carteirinha e possa, assim, lhe enviar um kit de mantimentos – o chamado jumbo. Com as restrições decorrentes da pandemia de covid-19, o trâmite só pode ser feito via correio.
"Estou desesperado", discorre na carta, "já fazem sete meses que eu me encontro nessa situação. Só estou com a roupa do corpo. Passando fome, frio e por muitas dificuldades".
Em outra carta, um preso conta que já está encarcerado provisoriamente há um ano e que sua mãe conseguiu fazer a carteirinha apenas no sétimo mês.
"Recebi um Sedex em que foram retidos alguns itens simples como escova dental, sabonetes, troca de roupa e um creme de pele. Expliquei que era meu primeiro Sedex e que necessitava de tais itens, mas não teve jeito", conta.
"Ainda não tive nenhuma visita e também não tenho recebido cartas da minha família". E continua: "Não sei se estão passando por dificuldades. Gostaria muito de dar um abraço na minha mãe e conversar com ela".
Na opinião de Oguntemi, a saúde de seu filho depende do jumbo que ela envia. "Do meu filho e de todo preso. É a família que precisa manter o filho lá com a saúde alimentar dentro do aceitável. Do minimamente aceitável para um ser humano", afirma Oguntemi.
Os alimentos permitidos no jumbo, no entanto, são quase 100% de produtos industrializados ultraprocessados.
Para se ter uma ideia, os itens alimentícios que podem ser enviados para a Penitenciária de Pracinha são: 500g de leite em pó, 400g de bolacha sem recheio, dois bolos Pullman, 300g de chocolate, 300g de bala Halls, Freegells ou Soft, 250g de manteiga ou margarina, um pacote de pão Pullman e 500g de frios.
A variação entre o que é permitido no jumbo é mínima entre as unidades prisionais de São Paulo.
"O alimento ultraprocessado atua como um composto anti-nutricional", alerta Talita Kumy. "Então você come o bolo ultraprocessado, ele atua retirando nutrientes do seu corpo", diz. Essa carência não explícita de micronutrientes no corpo se chama "fome oculta".
Alimento como arma de guerra
"Total indignidade". É assim que Oswaldo caracteriza a vida atrás das grades. Revoltado com as condições descritas em cartas por seu irmão aprisionado, ele salienta que "convenções de guerra dão tratamentos melhores aos prisioneiros do que os dados aos nossos presos aqui".
Comparação similar é feita pela Ação Civil Pública da Defensoria ao citar a 3ª Convenção de Genebra Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra (1949), também ratificada pelo Brasil.
Nela, é determinado que "a ração alimentar diária básica será suficiente, em quantidade, qualidade e variedade, para manter os prisioneiros de boa saúde e impedir uma perda de peso ou o desenvolvimento de doenças por carência de alimentação".
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Sobreviventes
Railda Alves, uma das fundadoras da Amparar, ressalta que "a regra é que as pessoas voltem do sistema prisional extremamente magras e doentes". Não à toa, movimentos abolicionistas se referem a elas como sobreviventes.
Doutor em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP, membro do Grupo de Pesquisa Democracia, Saúde e Ambiente (DEMSA/UFU) e integrante do grupo Alimentação e Poder, André Luzzi avalia que, na gestão do sistema prisional, "a alimentação é vista como um insumo, uma mercadoria, um serviço contratado, e não como um direito".
Além de transformar a realidade do que acontece do lado de dentro das grades, Luzzi defende que ações a esse respeito sejam pensadas também para os libertos. "Como será possível construir espaços de reparação para essas violações do direito humano à alimentação?", questiona.
"Aí você tem a má alimentação, doenças que vêm devido à falta de nutrição, não tem socorro. Então o que acontece? Dentro dos presídios do Brasil, a exemplo do estado de São Paulo, é tortura física e psicológica. É a desumanização da pessoa", resume Oguntemi.
Em sua visão, se alguém espera que uma pessoa "cometa um crime, vá para o sistema carcerário e venha melhor para a sociedade, isso não vai acontecer. Não vai".
"Se ele não sabia o que é tortura, o que é crueldade humana, ele vai aprender lá dentro. Vai saber o que é ficar com fome, o que é ficar com sede por dias", cita.
Na Ação Civil Pública, a imposição da "pena de fome" no sistema prisional paulista é caracterizada como "uso do alimento como arma de guerra". O que leva a crer, nas palavras da Defensoria Pública, na "presença de uma guerra civil / estado de exceção em permanência na política adotada pelo estado de São Paulo".
* O nome foi alterado para preservar a fonte.
Edição: Rodrigo Durão Coelho