meio ambiente

Agronegócio, ultraprocessados, destruição ambiental e doenças crônicas: qual a relação?

Produção de alimentos in natura é soterrada por falta de estímulos e por prioridade aos ultraprocessados

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Ribeirão Preto, a primeira capital do agronegócio acumula problemas por cultivo de cana, queimadas e veneno - Joel Silva

Assim como o solo de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, Vilma de Jesus Barbosa carrega no corpo a devastação do trabalho nos canaviais. A agricultora de 54 anos é uma das pacientes que aguardam atendimento no posto de saúde do assentamento Mário Lago, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na manhã de 17 de novembro de 2021. 

Ela convive com inúmeros problemas de saúde: já foi operada da coluna, tem artrose, fibromialgia, depressão, ansiedade e diabetes. Antes de ir morar no assentamento, trabalhou durante muito tempo no corte da cana-de-açúcar em Pontal e na região de Ribeirão Preto, mas ficou desempregada devido ao seu estado de saúde. 

“Eu perdi meus empregos várias vezes, porque eu não conseguia trabalhar direito. E patrão, você sabe, só quer a gente quando tá trabalhando bem. Eu trabalhava cortando cana, na colheita de café, e isso acabou com meu corpo, meus nervos, meus ossos, e depois passei a trabalhar em casa de família”, lamenta Vilma. “Tem dia que não aguento fazer nada de tanta dor no corpo, dor em tudo. Muitos desses problemas que eu tenho, tudo veio causado disso aí.” 

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Ribeirão Preto foi a primeira capital do agronegócio. Localizada no nordeste do estado de São Paulo, foi uma porta de entrada para o agro avançar pelo Cerrado. Hoje, superada pelas cidades do Mato Grosso e do Matopiba, região formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, a cidade ainda acolhe a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), uma das principais organizações do setor, e sedia a Agrishow, a maior feira de agronegócio da América Latina. Além disso, é um importante polo de produção de cana-de-açúcar. 

Ribeirão era o lugar perfeito para pensar no encontro entre devastação ambiental, agronegócio, consumo de ultraprocessados e doenças crônicas. Enquanto se acumulam evidências científicas e exemplos de problemas associados a cada uma dessas questões, a confluência entre elas é algo ainda pouco analisado. Então, decidimos que valia a pena contar essa história. 

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Vilma de Jesus Barbosa carrega no corpo a devastação do trabalho nos canaviais. A agricultora é uma das pacientes que aguardam atendimento no posto de saúde do assentamento / Foto: Joel Silva

A saúde humana e do planeta em jogo

Há um consenso entre especialistas e evidências científicas de que os padrões alimentares no Brasil estão se tornando potencialmente mais prejudiciais à saúde humana e ao planeta. Portanto, uma reversão na tendência atual seria necessária para melhorar sistemas alimentares, tornando-os mais saudáveis e ​​sustentáveis.

Poucas semanas antes da conversa com Vilma, Ribeirão e também Franca, cidade vizinha, foram tomadas por uma nuvem de poeira. Tudo indica que a tempestade de poeira de setembro do ano passado está relacionada a esse modelo de produção de cana: o vento forte, a seca e o solo desprotegido e vulnerável formam um cenário propício para que isso ocorra. As formas agrícolas tradicionais e o desmatamento têm relação direta com o aparecimento desses eventos. 

“Se lá houvesse uma cobertura de vegetação, florestas, era bem provável que não haveria aquela quantidade de matéria suspensa. Isso em função do nível de exposição do solo, de empobrecimento da cobertura vegetal naquelas áreas”, afirma Guilherme Eidt,  assessor para políticas públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza. No momento da colheita da cana, a terra fica totalmente descampada. 

O MapBiomas monitora, com o uso de satélites, o desmatamento e a produção agrícola em todo o Brasil. E nos mostra que São Paulo é uma espécie de espelho do futuro dos demais estados do agronegócio: hoje, tem a menor porção de mata nativa remanescente do Cerrado.  

É em meio a esse cenário da monocultura da cana que encontramos o assentamento Mário Lago, que está prestes a completar 19 anos, onde era a antiga Fazenda da Barra. O assentamento se tornou um Projeto de Desenvolvimento Sustentável, uma referência nacional no campo agroflorestal e de proteção das águas do Aquífero Guarani. Mário Lago poderia ser também um exemplo na produção de alimentos, mas fica escondido em meio ao império dos usineiros da região. 

O assentamento está na zona leste da cidade. O acesso parece fácil, mas as estradas de terra apontam a falta de infraestrutura para escoar a produção desses alimentos. Ao todo, são 464 famílias. Destas, 268 são do MST, algumas entrevistadas pela reportagem durante a visita ao assentamento, e as demais famílias são de outros três agrupamentos e de outros movimentos. Atualmente, 35% de toda a área é destinada para reserva ambiental. 

Vilma, que mora no local há 14 anos, planta feijão, milho e mandioca. Foi criada na roça na Bahia e diz que prefere comida natural, que vem do chão dela. Ela conta que o médico pediu que fizesse mudanças na alimentação e, com isso, passou a controlar melhor a diabetes. 

“Depois dessa dieta, comecei a maneirar em muita coisa, bolacha, coisas assim. Aí eu consegui perder peso, me senti melhor também. Porque antes eu pesava muito, 90 e tantos quilos”, recorda. “Como eu sou baixinha, piorava o problema de coluna e as dores nos braços. Tem dia que eu não tava aguentando nem me mover.”

Segundo Vilma, a falta de incentivo público compromete a produção para subsistência e para adquirir renda. “A gente sofre muito e eles acham que é muito fácil, mas o que você ganha aqui dentro não dá para sobreviver direito, porque depende de chuva. Às vezes você planta, não colhe ou colhe muito pouco, e tem muita coisa que deveria ser feita aqui para ajudar nós e tem muita gente que só promete nos dias de política e depois esquece”, completa a assentada. 


Ribeirão Preto já foi eleita a cidade do agronegócio. Na foto, preservação da mata dentro do assentamento e ao redor, cultivo do commodities / Joel Silva

Baixa renda, maior consumo de ultraprocessados

O médico de família Nélio Domingos atende no posto de saúde do assentamento e faz visitas domiciliares – são cerca de 70 atendimentos por semana na área rural. Os primeiros casos que atendeu, em 2011, eram de doenças relacionadas ao álcool e ao tabaco, mas, com o tempo, passaram a predominar as doenças crônicas, como obesidade, hipertensão e diabetes, sendo a maior parte relacionada à alimentação.

Ele nota que, nos períodos de baixa produção e comercialização e quando há perda de auxílios governamentais, aumenta o consumo de ultraprocessados. O médico citou que ajuda os assentados a se alimentarem melhor usando uma cartilha da Nestlé. Para tornar mais visual, ele desenha em uma folha de papel os alimentos que um prato saudável deve conter, de acordo com a gigante dos ultraprocessados. 

Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, é considerado uma referência mundial em termos de diretrizes alimentares. A recomendação-chave de evitar ultraprocessados definiu um novo padrão de objetividade e clareza no diálogo com a sociedade. Além disso, o documento de 2014 inovou ao abordar uma alimentação que leve em conta os impactos ambientais e sociais na produção e na comercialização, e não apenas no consumo individual. O ministério tem ações voltadas à popularização do guia entre os profissionais de unidades básicas, mas o que chegou ao posto do assentamento foi o material da Nestlé. 

“Quando eles não têm dinheiro, é o que eles conseguem comprar, e muitas vezes a molecada começa a ter que comer miojo. Comer alimentos saudáveis é algo que melhora demais a saúde. Só que a gente conta nos dedos quem tem uma exuberância de produção [agricultura familiar]. Como é que a gente fala para a pessoa mudar a saúde, dizendo que o melhor alimento é o que vem  da terra, se muita gente não tem uma conversa fácil com a terra?”, indaga Nélio Domingos.

O médico  também afirma que tratou pacientes com doenças crônicas e notou que uma mudança na alimentação melhorou o quadro da doença. “O que está carecendo ainda é que as pessoas se sintam mais libertas da miséria. Pelo menos com dinheiro na mão as pessoas vivem melhor, é lógico, e isso impacta a saúde, a alimentação. Essas pessoas com dinheiro na mão, com auxílio, conseguem agregar no lote. Se tivessem mais incentivo para a produção, ficaria tudo muito melhor.”


Atendimento médico domiliciar na zona rural de Ribeirão Preto / Foto: Joel Silva

Quem escolhe de verdade

As nossas escolhas alimentares não estão pautadas só por nós, mas por uma série de decisões políticas e interesses econômicos de grandes corporações que respingam na saúde da população. 

lobby vai desde a propaganda massiva de ultraprocessados, a distribuição e grilagem de terras, a falta de acesso aos alimentos saudáveis, até o incentivo do governo à produção de ultraprocessados.

Atualmente, nem as embalagens, nem os preços dos ultraprocessados refletem o impacto ambiental, o risco de doença crônica, a violação de direitos, a desigualdade social e os conflitos agrários.

Existem propostas nesse sentido. O México, por exemplo, adotou impostos especiais sobre refrigerantes e outras bebidas adoçadas, um modelo que vem sendo seguido em outros países. No Brasil, organizações da sociedade cobraram que a reforma tributária abarcasse a criação de um imposto voltado aos produtos responsáveis por doenças crônicas – uma ideia que chegou a ser defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. 

Com grande poder político e financeiro, o agronegócio produz commodities como cana-de-açúcar, milho, trigo e soja, e as distribui, globalmente, como matérias-primas para os ultraprocessados. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o consumo desses produtos está associado a um maior risco de desenvolvimento de doenças crônicas como obesidade, diabetes, câncer, hipertensão, entre outras doenças. 

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 70% dos alimentos que chegam à nossa mesa vêm da agricultura familiar, mas, apesar disso, não é esse grupo que se beneficia de políticas públicas no Brasil. A distribuição de terras é desigual e os programas voltados à produção de pequenos agricultores vêm sofrendo desmontes desde 2016. 

Conversamos com agricultores, pessoas com doenças crônicas, profissionais e pesquisadores das áreas da nutrição, da saúde e do meio ambiente. Eles falaram como está o Brasil nessas discussões e as estratégias que poderiam mudar essa relação entre adoecimento e o agro. Mas antes de entendermos como evitar o processo de adoecimento causado pelo agronegócio, precisamos compreender como ele acontece no Brasil.


Tempestade de poeira em Ribeirão Preto, em 2021 / Joel Silva

Como começa o adoecimento?

Há uma desigualdade imensa no acesso à terra no Brasil. De um lado, poucas pessoas são proprietárias da maior parte das terras. De outro, milhares de famílias possuem propriedades muito pequenas, mas com participação significativa na produção dos alimentos que vão para a mesa dos brasileiros.

De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, levantamento feito em mais de 5 milhões de propriedades rurais de todo o Brasil, 1% dos proprietários de terras controlam quase 50% das terras agricultáveis do país. Por outro lado, os agricultores com áreas menores que 10 hectares, que representam metade das propriedades rurais, controlam apenas 2% da área total. O aumento do ritmo de avanço do agronegócio, somado ao abandono da agricultura familiar, faz com que o cenário atual seja provavelmente pior. 

A estimativa é de que 309 mil posses em áreas públicas federais aguardem por regularização fundiária, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Isso significa que milhares de hectares poderiam ser destinados à reforma agrária e à produção de alimentos, enquanto o Brasil agoniza com o aumento da insegurança alimentar e de doenças. 

Em extensão, a agricultura familiar ocupa o equivalente a 23% da área total dos estabelecimentos agropecuários brasileiros. A agricultura familiar  inclui pequenos produtores rurais, povos tradicionais, assentados da reforma agrária, silvicultores, aquicultores, extrativistas e pescadores. 

“Nós deveríamos estar apoiando fortemente esse tipo de produção, pois o fortalecimento da agricultura familiar e a garantia de que eles consigam produzir e se manter no campo é fundamental para evitar uma maior concentração da terra no Brasil, que já é altíssima” afirma Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e professora titular da Cátedra Josué de Castro, da USP. “A agricultura familiar cumpre um papel central na dinamização das economias locais. As cidades que têm uma forte agricultura familiar têm uma dinâmica local muito mais saudável e sustentável, e um aumento da renda no campo.” 

O modelo de produção em grande escala começou com a expulsão dos agricultores familiares para as grandes cidades, com o aumento do desmatamento, da degradação ambiental e com a predominância do monocultivo. 

“Boa parte dos problemas sociais, como falta de moradia, saúde e fome está relacionada também à não realização da reforma agrária”, segundo Kelli Mafort, moradora do assentamento Mário Lago e da coordenação nacional do MST.

Diversos movimentos do campo lutam pela reforma agrária no Brasil desde a década de 1980 e pressionam historicamente, através de ocupações, para que sejam feitos assentamentos. Com 38 anos de existência, o MST é um dos maiores movimentos da América Latina, com 90 mil famílias acampadas e 450 mil assentadas.  

Há uma relação perversa entre o agronegócio e a saúde. A forma como se estabelecem esses sistemas alimentares faz com que práticas de agroecologia que têm a preocupação com a saúde e o meio ambiente tenham de lutar o dobro para continuarem existindo. 

“O veneno está na mesa, está no agronegócio, nas commodities que vão para fora, mas também está nos alimentos. E como é que ele chega lá na agricultura familiar? Porque é um pacotão. E a agroecologia não tem política pública, então, muitas vezes para você conseguir um crédito, financiamento ou empréstimo bancário é difícil, só se tem disponível o pacote”, diz Mafort.

Políticas enfraquecidas

Durante o governo Bolsonaro se deu o enfraquecimento das políticas voltadas para os incentivos aos camponeses. Em 2021, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) teve um corte de 35% no orçamento, caindo de R$ 3,85 bilhões para R$ 2,5 bilhões. Os repasses do crédito rural são destinados para subsidiar o plantio, mas também empréstimos. O programa de reforma agrária e o programa de estoques de regulação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) foram interrompidos

Uma das iniciativas que colaborou com a cultura camponesa foi o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003 no governo Lula, que fazia parte de uma estratégia para combater a fome, fortalecer a agricultura camponesa e diversificar a produção de alimentos no campo. 

“No ápice do PAA, em 2012, o repasse do governo foi de R$ 1,2 bilhão. Foram adquiridos mais 300 tipos de alimentos diferentes e mais de 150 mil famílias camponesas foram beneficiadas, entregando mais 200 mil toneladas de alimentos. Isso demonstra a importância econômica, mas também segurança e soberania alimentar”, afirma Luiz Zarref, do setor de produção e direção nacional do MST.

Em 2019, menos de cinco mil famílias foram beneficiadas pelo PAA. “Em valores extremamente reduzidos, com recurso de R$ 41 milhões. Ele não é mais uma política que podemos dizer que exista no país, a não ser em um ou outro estado, por meio de emenda parlamentar”, avalia Zarref. 

Outro alvo é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que estabelece que pelo menos 30% dos recursos financeiros devem ser utilizados para a aquisição de alimentos da agricultura familiar. 

“É só olhar os pratos de alimentação das crianças nas escolas em qualquer região do país que era possível ver uma diversidade muito grande de alimentos, inclusive com alimentos típicos de cada bioma, de cada região”, explica Zarref. “Mas aí o governo Bolsonaro, embora não o tenha destruído, como fez com o PAA, fez o quê? Não apoia que seja mantida essa obrigatoriedade e não estabelece diálogo com as organizações populares para que os municípios e os estados garantam a aquisição desses 30%.” 

A pandemia piorou a desigualdade: as escolas municipais e estaduais garantem alimentação a crianças de baixa renda – em alguns casos, até cinco refeições por dia. Sem o ensino presencial e diante da demora de prefeituras e governos estaduais em adotar ações concretas, muitas crianças se alimentaram pior em 2020 e 2021.

O PAA e o Pnae romperam com a lógica das compras públicas de alimentos que eram concentradas em um pequeno número de empresas fornecedoras, priorizando a produção por associações e cooperativas, assentamentos da reforma agrária, comunidades tradicionais indígenas e quilombolas.

“Tem uma frase da Maria da Conceição Tavares que é assim: ‘O PIB vai bem, mas o povo não come o PIB’”, continua Tereza Campello. “Esse aumento do produto interno bruto resultante das exportações gera um modelo de crescimento extremamente concentrador de renda para o país. As commodities que são exportadas beneficiam poucos brasileiros, que aumentam a sua renda e sua riqueza. Estamos arrebentando o Brasil com uma produção insustentável e agressora da natureza. Em algumas situações afetando o próprio consumo interno, como o caso da produção de arroz.” 

De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, os estabelecimentos da agricultura familiar encolheram 9,5% em relação a 2006. O levantamento também apontou que esse modelo de produção perdeu um contingente de 2,2 milhões de trabalhadores.

Na próxima reportagem da série, abordaremos como o agronegócio tem impactado as áreas naturais de Cerrado e as políticas fundiárias de incentivo à produção de alimentos no Brasil.