Economia global

Artigo | Quais vão ser os efeitos da guerra na Ucrânia e das sanções?

Conflito entre Rússia e Ucrânia destaca a permanência do petróleo como fator estratégico da geopolítica e economia

São Paulo (SP) |
Trabalhador atua no campo de perfuração gás da petroleira russa Gazprom, na península russa de Yamal. - ALEXANDER NEMENOV / AFP

Embora os combates se limitem ao território ucraniano, o impacto econômico é sentido por todo o mundo, muito devido ao conjunto de sanções impostos pelos países da OTAN e seus aliados, incluindo Japão, Coreia do Sul, e até a Suíça, países importante que normalmente não aderem a esse tipo de sanções unilaterais (fora do âmbito das Nações Unidas). Mas quais os desdobramentos globais, na própria Rússia e aqui no Brasil?

Nesse artigo vamos analisar os efeitos de curto prazo (que já estamos sentido), médio prazo (dependendo da duração da guerra) e de longo prazo (o mundo pós-guerra).

Após um choque inicial, os mercados financeiros já tinham se acalmado no segundo dia de combates quando perceberam que a rodada de sanções impostas não ia gerar tantos problemas para a economia russa e, por tabela, para a economia europeia. As coisas mudaram quando a guerra começou a demorar mais do que talvez o próprio Putin tivesse imaginado. É muito provável que ele calculou uma reação do presidente ucraniano,Zelensky, parecida com a que ocorreu no Afganistão no ano passado: a fuga do presidente Ashraf Ghani e em seguida uma desmoralização das forças armadas, treinadas e armadas pela OTAN, como é o caso na Ucrânia.

Mas não foi assim. Zelensky que estava com baixíssima popularidade interna e credibilidade externa não só resistiu como inflamou seu próprio povo e a opinião pública internacional, especialmente a europeia e dos EUA. Se tornou o grande herói da resistência, mesmo sabendo que estava na mesma situação que Ashraf Ghani: sozinho sem poder contar com a presença de forças armadas da OTAN.

A cada dia a mais de guerra, o constrangimento ocidental aumentou. Afinal, o Ocidente não tinha incentivados os ucranianos a se identificar e aproximar com vagas e promessas abstratas de um dia serem aceitos como membros pleno da OTAN e da União Europeia? Excluída a opção de enviar tropas, o Ocidente resolveu pagar por seus pecados com sanções econômicas. Embora a economia russa seja apenas 40% do PIB da Alemanha, ela ainda é a 12º maior do mundo e não há precedentes de sanções tão severas terem sido aplicadas por um conjunto tão grande de países contra uma economia desse tamanho.

A Rússia já estava acostumado a sanções leves impostas pelo ocidente após a anexação da Crimeia em 2014 e se preparou, desde então, para ter maior resiliência, inclusive com estoques de componentes estratégicos. Embora várias medidas anunciadas sejam mais simbólicas, como a de congelar as contas do própria Putin e as de seu ministro de relações exteriores, Seguei Lavrov, ou a suspensão da certificação do Nordstream II (sem impacto a curto prazo), os líderes ocidentais avançaram para terrenos antes considerados intocáveis. Duas medidas merecem destaque porque tem o potencial de efeitos colaterais imprevistos. Em primeiro lugar, forçar a retirada de alguns bancos russos do sistema internacional de comunicação interbancário SWIFT, com sede em Bruxelas. Embora essa medida já tivesse sido aplicada contra Irã, o impacto sobre a economia russa e seus parceiros comerciais é muito maior.

Na prática a Rússia tinha montado um sistema paralelo para operar em rublos, mas isso resolve só as transações domésticos. Pagamentos internacionais fora do Swift são possíveis, mas caros, exatamente pelo grau de insegurança. O fato complicador é que o Ocidente sabia que não poderia desestruturar o sistema de pagamento internacional ao ponto de inviabilizar a compra de energia da Rússia (petróleo, gás e carvão) ou de alguns outros insumos estratégicos para indústrias de ponta, como gás neon para indústria de microprocessadores.

O próprio anúncio no dia 7 de um bloqueio parcial do SWIFT já causou espanto, embora poucos pudessem imaginar como isso iria funcionar. A China, por exemplo, não participa das sanções e se posicionou contrária, mas suas relações econômicas e financeiras também foram afetadas. Exemplo é o cancelamento de pedidos de importação de carvão da Rússia devido a preocupação com a possibilidade do sistema financeira bloquear as transações. Pelo mesmo motivo duas instituições financeiras importantes nas quais China tem um papel de liderança também suspenderam suas operações com a Rússia: o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Banco dos Brics (NDB) .

Mais surpreendente foi a decisão de congelar as reservas internacionais da Rússia. Ao final foram exatamente estes cerca de US$ 640 bilhões (cerca de R$ 3,2 trilhões), sempre invocadas para mostrar a capacidade de resistência da economia russa e o preparo do governo Putin contra eventuais turbulências. Em 2014 eram menos de US$ 400 bilhões. Parte dessas reservas estão em ouro e em aplicações na China em RBM, ambos não atingidos pelas sanções, mas cerca de metade ainda é em dólar ou euro. Outra parte em yen, sendo que o Japão aderiu às medidas.

Isso teve um impacto direto na queda do rublo em relação ao dólar que despencou e, no dia 10 de março acumulou perda de 30%. A reação da parcela da população com aplicações em rublos foi de correr para retirá-los na expectativa de uma desvalorização que de fato ocorreu, pelo mecanismo de profecia autorrealizada: a expectativa de queda da moeda nacional gera uma corrida contra ela que faz com que ela, de fato, caia ou caia mais do que as movimentações na economia real justificariam.

Como efeito imediato, tivemos a pressão inflacionária e o Banco Central da Rússia mais que duplicou a taxa de juros básico de 9,5% para 20% para estancar a sangria. Mas ai já gerou um clima de insegurança e aversão ao risco. As autoridades fecharam as operações nas bolsas de valores para evitar reações de pânico. A imposição de controle de capital e as próprias sanções dificultam de qualquer forma a saída de capital. Além disso, o coração da economia russa permanece em intacto: a exportação de energia. Nessa situação as sanções econômicas não terão impacto sobre a situação no terreno militar e, por enquanto, parecem não abalar a popularidade e sobretudo o controle político de Putin na própria Rússia.

Interdependência

As vendas para o exterior de petróleo e gás representem sozinhas mais da metade das exportações e financiam cerca de 45% do orçamento federal da Rússia. Se o Ocidente quisesse quebrar a Rússia, seria só impedir esse fluxo comercial. Acontece que a Europa depende muito dessas importações para atender sua demanda e não tem para onde fugir considerando também a oferta pouco elástica devido à falta de investimentos relacionados a Covid e a incertezas relacionadas às metas de transição energética. No caso do gás, embora com valor total menor que as importações de petróleo, é muito difícil. Noruega, Catar e EUA têm capacidade limitada para aumentar sua oferta, no caso dos últimos dois inclusive é gás liquefeito. No caso de petróleo. a situação é diferente porque nesse caso alguns produtores na península arábica têm capacidade de aumentar rapidamente a produção, os famosos swing-producers, em particular a Arábia Saudita. Resta ver a vontade política e o preço que vão cobrar.

No dia 14 da guerra, o governo Biden avançou estendendo as sanções para as importações de petróleo. Para os EUA não é tão difícil porque com a explosão da produção interna com gás e petróleo não convencional o país tem se tornado na última década novamente o maior produtor de petróleo e gás do mundo. Em petróleo, o país, que chegou a depender de 70% das importações para seu consumo em 2003 (ano da invasão do Iraque), é hoje quase autossuficiente. E mesmo no total das importações dos EUA, a Rússia representa só 3%. Ironia da história é que se trata de um petróleo de um tipo pesado que deve ser substituído pelo mesmo tipo para garantir o mix nas refinarias estadunidenses. Os países que podem fornecer esse petróleo são Venezuela e Irã. Isso explica a surpreendente visita de um representante dos EUA a Venezuela para discutir com o governo Maduro o fim das sanções contras as exportações de petróleo no mesmo dia que Biden anunciou as sanções contras as importações de petróleo russo.

A motivação de Biden para proibir as importações de petróleo russo tem relação com a política interna. Essas demonstrações de dureza contra a Rússia unem republicanos e democratas, algo não trivial. Há dois problemas relacionados: os mercados ficam mais nervosos e o preços do barril subiu para o patamar de US$ 130 por barril. Sobretudo porque há medo do aumento da pressão política sobre os países europeus para aderir ao boicote ao petróleo russo, o que causaria uma crise econômica e social sem precedente.

Por enquanto, os países da União Europeia mantêm o sangue frio e ignoram os apelos agressivos de Zelensky para deixar o egoísmo de lado e dar o golpe final na capacidade econômica de Putin de continuar a guerra. Acontece que na União Europeia como um todo, em 2019 a dependência das importações russas de carvão, petróleo e gás eram respectivamente 43,5%, 26,8% e 34,2%. Ou seja, sim atinge em cheio a Rússia, mas também a própria Europa e com isso a economia internacional. Algo parecido com o que acontece com as bombas atômicas e o que se batizou de Destruição Mutua Assegurada (MAD, em inglês). Nesse caso os preços de petróleo poderiam, na avaliação da própria Rússia, chegar a US$ 300 por barril. Os Emirados Árabes Unidos foram os primeiros a anunciar disposição de aumentar a produção. Em seguida a esse comunicado, o barril já caiu para US$ 116, mostrando a enorme volatilidade diante das incertezas.

De outro lado, não por acaso Sergei Lavrov, ministro de relações exteriores russo, viajou essa semana para o Oriente Médio: EUA, Catar e Arábia Saudita. Esses países sentem novamente o poder que têm e que alguns desavisados imaginavam que fora perdido diante do avanço da transição energética.

Sem dúvida, desta vez a União Europeia vai levar a sério uma política de se tornar menos dependente da Rússia, mas isso leva tempo e não impacta na crise atual. Em 2014, após a anexação da Crimeia a UE havia lançado sua Estratégia Europeia de Segurança energética que tinha como um dos pontos centrais que “a União tem de reduzir a sua dependência externa em relação a determinados fornecedores”. Mas nada disso aconteceu. Pelo contrário, um ano depois de ter lançado o documento o governo Merkel deu aval ao início do gasoduto Nordstream II que garante um fornecimento direta da Russia pelo mar baltico sem passar pela Ucrânia ou pela Polõnia.

Mas: a Alemanha decidiu em 2011, em resposta ao desastre nuclear em Fukushima, abandonar de vez a energia nuclear com prazo final de dezembro de 2022. Ao mesmo tempo o país está sob pressão para diminuir o uso do carvão.

Agora, no entanto, a Alemanha deve adiar a data para fechar as ultimas usinas nucleares e pode mesmo rever sua decisão. As minhas de carvão se mostram ainda muito úteis, apesar dos compromissos assumidos na cupula do meio ambiente em Glasgow no ano passado.Todo indica que desta vez a indignação esteja forte demais para virar a página rapidamente como foi depois da invasão na Georgia (2008) e em 2014. Isso significaria que a Europa, em particular a Alemanha, se prepara de fato para uma alteração profunda da sua relação com a Rússia pós-guerra.

Pressão inflacionária acima de inflação alta

Por enquanto o nervosismo no mercado e movimentos especulativos já colocaram vários preços lá em cima, a começar pelo valor do barril. Outro setor fortemente impactado é a o agrícola, tanto pelo peso de Rússia e Belarus na exportação de fertilizantes, como no de Rússia e da Ucrânia nas de trigo.

Pressões inflacionárias nos setores de energia e alimentos encadeiam impactos nos demais segmentos. Acontece que muitos, se não todos os países, já estavam lidando com os efeitos nocivos de um patamar elevado de inflação devido aos desdobramentos da pandemia (problemas na oferta relacionado a desarticulação de cadeias de abastecimento) e, sobretudo nos EUA, o impacto de gastos e investimentos públicos bilionários para retomar o crescimento de forma acelerada. Ou seja, a inflação nos EUA já estava acima de 7% e o banco central (FED) deve iniciar um ciclo de aumentos da taxa de juros mensais em uma realidade de alto endividamento privado.

Não está claro como o consumidor estadunidense vai balançar seu eventual apoio a uma postura agressiva do governo Biden contra Rússia com o impacto das medidas no seu próprio bolso. Tudo depende da duração da guerra. Se houver um desfecho mais ou menos rápido é possível evitar um contágio sobre o processo de recuperação pós-covid que estava em curso. Mas se demorar - e há motivos para se acreditar isso -  há o risco de um acúmulo de pressões e de pânico mais generalizado nos mercados. Ainda não se fala em crise sistémica por achar que é um fenômeno passageiro.

Por enquanto há muito oportunismo e procura de oportunidades de lucro apostando em ativos que estão se valorizando por exemplo. O caso de JP Morgan e Goldman Sachs comprando títulos de empresas russas depois que seu valor despencou ou a Shell comprando petróleo russo com desconto de US$ 27 por barril são só dois exemplos. Outros apostam na alta do ouro e ativos cujos preços começaram a flutuar muito.

Brasil

O Brasil é afetado diretamente pelo aumento dos preços dos alimentos e do petróleo, algo que já estava pressionando os consumidores brasileiros. A perde de exportações brasileiras para Rússia (soja, carnes), embora pese, não é tão significativa pelo percentual limitadao sobre o total das exportações de nossas commodities.

Brasil não participa das sanções, mas estas impossibilitam por dois motivos o comércio conosco: fisicamente (sanções contra transporte) e o problema de pagamentos internacionais mencionados acima. A própria Ministra de Agricultura, Tereza Cristina, descartou a possibilidade de importar fertilizantes da Rússia e Belarus durante a guerra. O Brasil importa 85% de seu consumo, dos quais cerca de metade vinda de Rússia e Belarus. Emboratenha ressurigido a discussão sobre a oportunidade de o Brasil ter desistido da sua produção nacional, é impossível aumentar a oferta local em curto prazo. Portanto, o uso de estoques e outros fornecedores (Irã, Marrocos) deve aliviar, mas não resolver.

É diferente a situação com o petróleo, porque nesse caso o Brasil é um grande produtor e exportador, embora dependa de importação de derivados (entre 10%- 15% do consumo total) devido ao cancelamento dos projetos de expansão da capacidade de refino pelos governos Temer e Bolsonaro. Foram esses governos que introduziram também a lógica da Paridade de Preços de Importação (PPI) condenando o Brasil não só a ser exportador de petróleo cru e importador de derivados, mas sobretudo a ter preços para o consumidor final como se o país fosse um importador de petróleo.

Não são considerados os custos operacionais menores do pré-sal, que baixaram para menos de US$ 10 por barril. É isso que explica os lucros extraordinários da Petrobras (R$ 106 bi em 2021) , a serem distribuídos entre seus acionistas (R$ 101,4 bi). Observe que, contrário ao que se pense, só um terço das ações estão nas mãos do Estado. 2/3 privados, dos quais metade, estrangeiros. Isso, enquanto a população mais pobre sofre com o aumento dos preços dos derivados, trocando gás de cozinha por lenha.

O atual novo ciclo de aumento do preço do barril tensiona ainda mais essa discussão, o que é extremamente inconveniente para o Bolsonaro em campanha para sua reeleição. O governo tentou de forma informal segurar a aplicação da PPI sem acabar com ela de vez, algo cada vez mais difícil.

Quem sabe a guerra na Ucrânia provoque uma alteração da lógica de formação dos preços de derivados no Brasil. Só de pensar nisso, as ações da Petrobras perderam valor em um contexto de forte valorização de seus concorrentes internacionais (com exceção dos russos, evidentemente). Para acalmar os mercados financeiros a empresa resolveu, na quinta-feira (10), aumentar significativamente os seus preços (quase 19% no caso do diesel e pouco menos de 25% no caso de gasolina).

O que alivia a situação para o Brasil é uma surpreendente resistência do real perante o dólar. O dólar perdeu valor desde o início do ano, saindo de um patamar de quase R$ 6 para R$ 5. Por enquanto os mercados financeiros globais se mantêm calmos e não abandonam em massa os mercados emergentes por aversão ao risco, fugindo para ativos garantidos como o dólar e o ouro. A força da exportação brasileira justamente em commodities que estão se valorizando (entre as quais o próprio petróleo) e a garantia que o banco central vai acompanhar a alta de juros do FED pode ser uma explicação.

Por enquanto, nem a perspectiva de uma vitória eleitoral do Lula, nem o risco de Putin levar a guerra até a última instância, assustam os mercados no Brasil, o que já foi bem diferente no passado. Agora, se o conflito permanecer por mais tempo e crescer a desorganização de várias cadeias e mercados é possível que haja uma debandando do capital financeiro dos mercados emergentes, inclusive do Brasil. Nesse caso, o alívio sobre o petróleo (cujos preços são em dólar) e o patamar geral da inflação desaparece e os problemas se acumulam. Mesmo assim, um impacto negativo sobre a inflação já está sendo sentido, como também a expectativa de um aumento da taxa selic.

Difícil avaliar de que forma a guerra influencia a reconfiguração do poder econômico e político em curso. Há uma possibilidade que tendências de nacionalismo econômico, já fortalecidas pela experiência da Covid se consolidam. A Europa fala cada vez em “autonomia estratégia” para justificar investimentos e políticas voltadas para fortalecer capacidade tecnológica e de produção na própria região para ser menos vulnerável a interrupções.

A China pode acelerar sua busca de sistemas financeiros desdolarizados, trabalhando com mais vigor por controle maior sobre o fornecimento de energia e alimentos. A guerra não seria a causa, mas um catalisador. No caso do Brasil, fica a lição clara a respeito da enorme importância geopolítica e geoeconômica da energia e em particular do petróleo ainda por muitos anos. E isso contradiz os argumentos para vender o pré-sal para as empresas internacionais e diminuir o papel da Petrobras. A geopolítica do petróleo nos acompanha ainda por um bom tempo. Ignorar isso, inclusive inviabilizará a própria transição energética.

 

Giorgio Romano Schutte, Professor de Relações Internacionais e Economia da UFABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB)

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thales Schmidt e Rodrigo Durão Coelho