No último sábado (5), o Atlas vencia fora de casa o Querétaro por um a zero, com gol do atacante Julio Furch, pela 9ª rodada do Campeonato Mexicano, quando a partida foi interrompida por um surto de violência que tomou as arquibancadas aos 18 minutos do segundo tempo, gerando inúmeras imagens de brigas e espancamentos que horas depois povoaram os nossos celulares e redes sociais. Eram imagens de brigas generalizadas ao longo de todo o Estádio La Corregidora, em Querétaro, no México, que traziam requintes de brutalidade, com corpos nus jogados pelo chão, sangue e espancamentos realizados por numerosos torcedores de azul, do time da casa, contra uns e outros rubro-negros, do Atlas.
Apesar dos inúmeros relatos de mortes que pipocaram nos meios de comunicação e nas redes sociais, as autoridades não confirmaram nenhum óbito até o momento. Dos 26 feridos levados a hospitais da região, sete receberam alta e dez estavam em estado grave ou delicado até a tarde desta segunda (7).
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A briga
Segundo relato de um torcedor do Atlas publicado no Diario Olé, pela ótica dos visitantes, a partida estava “normal”, quando de repente se deram conta de que torcedores locais deixavam seus setores e vinham na direção deles contando com a anuência da segurança privada do estádio, que teria aberto as portas que separavam as torcidas.
A selvageria não deixou ninguém de fora, e até famílias – muitas vezes poupadas em brigas de torcidas – foram atacadas. Ainda nesse relato, foi levantada a hipótese de um conluio entre torcedores locais e forças de segurança (polícia e segurança privada), uma vez que as testemunhas teriam visto armas brancas e até pistolas em posse de torcedores locais. O mesmo torcedor denunciou que, além dos seguranças privados e dos torcedores rivais, ele também foi agredido pela polícia.
Em outro relato de torcedores, publicado na ESPN, a informação é de que a briga começou pequena e que, se houvesse segurança no estádio, para impedir que pequenos grupos brigassem enquanto ocorria o jogo, a tragédia poderia ter sido evitada. De acordo com essa fonte, sendo também possível constatar através das imagens que circularam pela internet, o que havia era uma briga verbal e pontual entre um punhado de torcedores em uma grade que dividia as torcidas.
Um episódio de certa maneira corriqueiro num jogo de futebol - torcedores rivais se provocando nas áreas fronteiriças dos estádios - até que torcedores locais, do Querétaro, conseguiram dar a volta a invadiram o setor dos visitantes. A partir daí, a briga escalou para a situação que lamentavelmente pudemos observar em nossos celulares a partir de sábado.
É importante apontar que os clubes mexicanos são entidades privadas, diferentemente dos clubes brasileiros, que ainda não aderiram em massa ao modelo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF). Assim sendo, a segurança dos estádios compete a esses clubes/entidades privados. E é nesse contexto que recaem as acusações de colaboração da segurança privada.
Nesse sentido, se as mortes forem confirmadas dentro do estádio, podem haver sérias sanções não apenas ao clube, mas a toda a Liga Mexicana, o que poderia comprometer, inclusive, o prosseguimento do campeonato.
Tal linha de pensamento faz com que alguns críticos digam que é provável que nenhuma morte seja contabilizada dentro do estádio, mesmo que ocorrida dentro dele, mas posteriormente, a partir dos hospitais para onde foram levadas as vítimas. É comum essa desconfiança com o poder público no país, e razões não faltam.
Possíveis mortes
Omar Zeron, jornalista esportivo da TNT Sports México, confirma as informações. “Há testemunhos de gente desaparecida e denúncias de pessoas falecidas, mas até o momento não tivemos registros de mortes pelas autoridades. Ainda que existam muitas dúvidas na população sobre o governo estar ocultando dados, temos de respeitar o que dizem as autoridades e buscar a verdade a partir das fontes corretas, pois é o que temos no momento. Espero que realmente não haja mortos”, declarou à reportagem.
Segundo o jornalista, a empresa G.E.S.K9, responsável pela segurança da partida, abriu uma convocação prévia ao jogo para contratar agentes, na qual dizia que quem quisesse ganhar os cerca de 15 dólares para trabalhar na partida poderia se apresentar vestido de preto em um local específico do estádio. “Ou seja, sem capacitação nenhuma e nessas condições, essas pessoas foram ‘cuidar’ dos espectadores”, analisou.
Pelas imagens, tudo leva a crer que houve mortes, e a denúncia da falha na segurança repercutiu dentro desse contexto. Horas mais tarde, a secretária de Governo do Estado de Querétaro, Lupita Murguía, publicou nas suas redes sociais algumas ações para penalizar os responsáveis pela tragédia. Entre elas, cinco servidores públicos responsáveis pela realização da partida foram suspensos de suas atividades por terem descumprido protocolos.
Murguía também afirmou que seria cancelado o contrato da empresa G.E.S.K9 com o clube Querétaro, que visava à gestão da segurança interna do estádio La Corregidora. Além disso, informou que, dos 26 feridos, pelo menos sete receberam alta e estão sendo transferidos pelas polícias estaduais até suas cidades de origem.
Como medida de contenção da violência nos estádios, a Liga MX, organizadora do campeonato, declarou que os próximos jogos teriam os portões fechados por tempo indeterminado, mas retrocederam e a restrição será apenas para torcedores visitantes. Os jogos da 9ª rodada que ainda não haviam sido realizados foram cancelados em solidariedade às vítimas da tragédia.
Marco zero da violência no futebol mexicano
O que ocorreu no México chama a atenção, pois, apesar de ser um país violento com seus narcos, feminicídios e massacres que justificam a desconfiança com o poder público que vimos acima – veja por exemplo os massacres de Tlatelolco e mais recentemente o desaparecimento de 43 estudantes no estado de Guerrero –, essa violência não costumava se expressar nas arquibancadas. O México não se destaca nesse quesito se comparado a Brasil ou Argentina, onde o ganguismo das torcidas já atinge um patamar histórico há cerca de quatro décadas.
Um estudo da universidade de Córdoba, na Argentina, intitulado A violência como experiência (ou o brigar nas barras argentinas), do sociólogo e antropólogo Nicolás Cabrera, deixa claro que não existe uma relação direta entre violência social e violência no futebol. Para comprovar a tese, o estudo traz alguns dados comparados entre Brasil, Argentina e México.
Em 2016, os argentinos tiveram 316 vítimas fatais vinculadas ao futebol; enquanto o Brasil registrou 300 mortes; e o México, nove. Por outro lado, nas taxas de 2017 de homicídios por milhão de habitantes divulgadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Argentina viu apenas seis mortes por milhão; enquanto o Brasil registrou 29,7; e o México, 22,5. Resumindo: apesar de ser um país bastante violento, essa violência não se expressava no futebol mexicano. Até sábado passado.
O jornalista esportivo Omar Zeron concorda com a análise: “O futebol mexicano não é violento. Há outras partes do mundo, como na América do Sul, em que essa violência se manifesta com muito mais força. Já estive em jogos no Brasil, na Argentina e na Colômbia e vi outros cenários. Antes do sábado, no México, não estávamos acostumados a isso. O episódio lamentavelmente mancha, sem dúvidas, o nosso futebol e expõe o que acontece na nossa sociedade, além de passar uma imagem de que no México não existem leis ou organização. A mim, pessoalmente, me dói muito o que está acontecendo. Se nosso país, dia a dia, vive momentos difíceis de violência, com assassinatos e narcotráfico, esses são eventos externos ao futebol, mas agora, ao que parece, se permeiam e contagiam em meio ao futebol. Há certas versões não confirmadas de que essa escalada de violência no futebol também guarda relação com grupos de narcotraficantes e do crime organizado, mas isso teria que ser confirmado, insisto. De toda forma, o que podemos ver claramente é uma violência da sociedade contaminando o futebol, e não o contrário”.
Entrevistado pela reportagem, o pesquisador argentino Nicolás Cabrera, é enfático: “Definitivamente, será um ponto de inflexão para a história da violência no futebol mexicano”. Mas ressalta que, ainda assim, é importante frisar que há episódios de violência, a exemplo do ocorrido em 2018, quando torcedores do Tigre foram muito violentos contra torcedores do Nueva León; ou o de 2017, no Estádio dos Tiburones Rojos (Tubarões Vermelhos), onde houve um enfrentamento de Barras; ou ainda a Batalha de Irapuato em 2012, quando torcedores foram baleados. Isso sem contar um episódio ocorrido em 1992, também em Irapuato, que foi o primeiro desta natureza no país.
“O México tem antecedentes de violência nos estádios, mas nenhum deles teve o impacto midiático nacional e internacional como o do último sábado. Nesse sentido, pensando no impacto, nas imagens e na repercussão desses eventos, sem dúvidas estamos em um marco zero do histórico de violência no futebol mexicano”, analisou o pesquisador.
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Narcotráfico
Um dos rumores que tomaram os meios de comunicação e as redes sociais é o da presença de carteis narcos que estariam usando as barras mexicanas para expandir seus interesses, como já aconteceria tanto aqui, no Brasil, como na Argentina, em algumas situações particulares e não centrais dentro do universo das torcidas. Dessa forma, estariam espalhando suas práticas entre os agrupamentos mexicanos. A narrativa ganhou força principalmente pelo fato de que diversas imagens mostraram torcedores do Atlas nus e feridos, jogados ao longo do La Corregidora. E levando em consideração todo o histórico de atuação desses grupos no México, a preocupação pode se justificar ainda que não haja nada confirmado nesse sentido.
É o que diz o jornalista Omar Zeron. “Se você observou alguns vídeos, podemos ver negligência da polícia e dos seguranças, que, inclusive, golpearam torcedores do Atlas. Tudo parecia premeditado. Chamam atenção os corpos deixados nus, pois isso é algo que o crime organizado faz, como uma espécie de troféu. São coisas que não estão confirmadas, mas que são de conhecimento público, que estamos vendo e cuja verdade precisa vir à superfície”, afirmou.
Para o antropólogo e sociólogo argentino Nicolás Cabrera, que pesquisa o tema, a preocupação se justificaria dada a repercussão entre os mexicanos. Entretanto, dentro do âmbito do futebol, o fato de alguns torcedores terem tido suas roupas subtraídas o remete a uma prática conhecida nos estádios argentinos, quando há um torcedor rival infiltrado na arquibancada.
“Está longe de ser uma particularidade mexicana. Aqui na Argentina, quando pegam ‘infiltrados’, fazem o mesmo: bater, tirar a roupa e expulsar do estádio. Isso ocorreu em 2015 em Rosário, no clássico da cidade entre Newells Old Boys e Rosario Central e novamente em 2016 em um jogo entre Laferrere e Sportivo Italiano, pelas divisões inferiores do futebol argentino”.
A questão segue incógnita e preocupando os mexicanos amantes de futebol, uma vez que, além desse prensa nos infiltrados, também vem da Argentina um modelo bem específico de venda de drogas e conluio com o crime por parte das barras bravas, já extensamente pesquisado e comentado, como no livro La Doce, do jornalista argentino Gustavo Grabia, que conta a história da principal barra do Boca Juniors, lançado no Brasil em 2010 pela editora Panda.
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Das "porras" às "barras": breve histórico
Nicolás Cabrera nos explica que, apesar de não serem o elemento central da violência social mexicana, as batalhas campais entre torcidas não são uma novidade no país e nos traz a dimensão histórica delas.
Em primeiro lugar, precisamos levar em consideração que o desenvolvimento do futebol no México se deu muito mais tarde do que nos países do Cone Sul, e foi só a partir das décadas de 1970 e 1980 que começaram a pipocar os primeiros grupos de torcedores organizados, que animavam os jogos dos clubes. Como aqui, no Brasil, demos o nome de “torcida” algumas décadas antes. No México, esses grupos levaram o nome de “porras”.
Dado o falso cognato, é importante destacar que esse nome vem dos grupos de estudantes que se juntavam para torcer pelos times de futebol americano das universidades – e que, no México, o nascimento do futebol está muito ligado às universidades. Então, nas décadas de 1970 e 1980, surgiram as primeiras porras, conforme explica Cabrera, “agrupamentos oriundos do ambiente estudantil com componentes jovens, de classes mais abastadas, muitas vezes ligadas a determinadas famílias, que têm jeitos de torcer mais tranquilos, sem muitos instrumentos e com músicas curtas”. Segundo o pesquisador, seria um ambiente mais de "espectador", de pessoas que vão assistir a um espetáculo e buscam animá-lo.
Mas, a partir da década de 1990, isso começou a mudar, e, já no início do século 21, o futebol começa a crescer muito no México com a popularização da televisão a cabo, que se dá naquele momento. Os mexicanos começam a assistir, além das ligas europeias, aos jogos do Cone Sul – da Argentina, do Uruguai, do Brasil e do Chile. E esse consumo do futebol sul-americano faz com que muitos torcedores mexicanos começassem a imitar o modelo sul-americano de torcer de forma mais ampla, especificamente o modelo argentino das barras bravas.
“Nesse contexto, aparecem as primeiras barras no México, que terão, é claro, particularidades próprias e características locais, mas o central é saber que se diferenciam das porras porque são grupos e coletivos bem mais organizados, geralmente com organização vertical, lideranças e diferentes estamentos e grupos, além de uma origem social diferente – ainda que estejamos falando de grupos policlassistas, a composição das barras vem mais de grupos periféricos, das classes populares. É importante dizer que, nessa verticalidade das barras mexicanas, a forma de subir posições e de chegar a lugares de liderança e prestígio, exige-se certas habilidades e competências, como saber organizar grupos, trazer dinheiro e recursos para a barra e, é claro, mostrar o “aguante”, como falamos na Argentina, ou seja, mostrar que você é o macho bom de briga, que pode ir para a pista a qualquer momento. Então é esse modelo de masculinidade violenta que é tão importante nas barras sul-americanas, e aparece muito forte no México”, explicou Nicolás Cabrera.
Para o pesquisador argentino, essa mudança das porras para as barras intensifica uma violência que existia previamente e aumenta a rivalidade entre os diferentes grupos. Começam a aparecer brigas, explica, entre diferentes barras, que sempre têm como regra a vingança – “por exemplo, se quando fui para o teu estádio você me atacou, quando você vier ao meu estádio, eu vou te atacar” – e que também encontra na emboscada uma metodologia para atacar o inimigo. “Esse passo das porras para as barras tem dimensões sociais, culturais, geracionais, econômicas e também no que se refere ao aumento da violência, que são centrais para entender esse contexto”, conclui.
Rivalidade entre Atlas e Querétaro
O Querétaro é um pequeno clube de província que leva o nome da cidade em que está fundado, capital do pequeno estado de mesmo nome, no interior do país, ao norte do Distrito Federal, onde está a Cidade do México. O clube não possui uma rivalidade histórica, um clássico, como os times das grandes das cidades – a exemplo de Monterrey e Tigres em Monterrey, Guadalaja e Atlas em Guadalajara, o FlaFlu no Rio de Janeiro ou o Palmeiras e Corinthians em São Paulo.
Dessa forma, os torcedores do clube atribuem suas rivalidades a clubes de localidades próximas, a exemplo do León (clube do estado de Guanajuato, que separa Querétaro de Jalisco, onde está a sede do Atlas, na capital Guadalajara) ou o San Luis (de San Luis de Potosí), que estão a pouco mais de uma hora de Querétaro. Este último clássico, com o San Luis, nos conta o jornalista Omar Zeron, “é conhecido como o clássico da Estrada 57, que conecta as duas cidades”.
Já o Atlas, um clube de amplitude nacional, de uma grande cidade, Guadalajara, capital do importante estado de Jalisco, está distante cerca de 4 horas de Querétaro e é o atual campeão mexicano. A rivalidade entre os dois começou em 2007, quando, após vencer por 2 a 0 em seu estádio, o Atlas rebaixou o Querétaro para a segunda divisão nacional, gerando uma enorme tristeza nos torcedores locais. As imagens da tribuna visitante em prantos viraram algo parecido aos memes que temos hoje em dia, depreciando o então rebaixado Querétaro e, já naquela ocasião, houve um primeiro enfrentamento entre as duas torcidas.
Os Gallos, como é apelidado do Querétaro, voltaram para a primeira divisão em 2009 e, no ano seguinte, houve uma nova briga entre seus torcedores da porra/barra Resisténcia Albiazul, com a Barra 51, do Atlas. Três anos mais tarde, em 2013, um novo episódio de briga entre as torcidas ocorreu no La Corregidora com arremessos mútuos de paus e pedras.
Desde então, as hostilidades continuaram, porém sem episódios capitais, até o último sábado.
Nesta terça-feira (8), haverá uma reunião extraordinária, uma “Assembleia de donos”, segundo a terminologia utilizada pelos mexicanos, na qual uma das possibilidades, segundo informou o jornalista Omar Zeron, é de que o Querétaro seja desfiliado da Liga MX e que se jogue o campeonato com 17 clubes até seu final, em maio. “Agora temos de esperar as resoluções. De momento, o que podemos confirmar é que as torcidas visitantes não poderão mais viajar para ver seus times, o que me parece uma medida muito frágil, como já pudemos ver em outras ocasiões”, concluiu o jornalista.
*Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania; email: [email protected]
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho