Autor de "China e Rússia no Pós-Guerra Fria”, o cientista político Diego Pautasso acompanha com atenção os desdobramentos da crise na Ucrânia que contrapõe a Rússia aos Estados Unidos e seus aliados europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Colaborador do curso de especialização em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ele discute, nesta entrevista, o xadrez jogado pelas grandes potências no leste da Europa, a dependência dos europeus do gás russo e, ao mesmo tempo, sua submissão aos interesses de Washington, seu mais forte parceiro.
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Além disso, Pautasso analisa a “linha vermelha” estabelecida por Vladimir Putin travando o expansionismo da [Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a recusa de China e Rússia em aceitar os Estados Unidos como “portador da democracia” e o derretimento da diplomacia brasileira sob Bolsonaro.
Brasil de Fato RS: O que significa o movimento de Putin no tabuleiro da crise com o reconhecimento de Donetsk e Lugansk?
Na semana passada, quando a Ucrânia bombardeou a região de Donbass (onde estão as duas repúblicas), comentei que a Rússia não invadiria, pois não haveria nenhum sentido nisso do ponto de vista estratégico. Acho que era isso que o Ocidente propunha, mas não entendia que Putin e Lavrov (Sergey, o chanceler russo) comeriam essa isca.
Havia apenas duas possibilidades: a Rússia fortalecer os grupos rebeldes de Donetsk e Lugansk; ou fazer algo similar ao que fez na Criméia – anexação através de plebiscito. No caso das duas repúblicas, reconhecer sua independência. São casos similares.
Com isso o que Putin está dizendo? Primeiro, que não tolerará agressões contra a população russa na Ucrânia e, depois, prova que os Estados Unidos não têm capacidade de responder a não ser com sanções e declarações duras do lado de lá do Atlântico. Este é o ponto. A Rússia prova sua capacidade de impor uma determinada ordem ali na região. Para a Ucrânia é uma derrota gigantesca, tendo em vista que o Leste é justamente a região industrial do país.
A Europa compra agendas que são de interesse estrito dos EUA
O que a Europa, dependente do gás russo, ganharia com as sanções contra os russos prometidas pelos EUA e seus aliados?
A Europa tem uma grande contradição. Por um lado, foi um continente que se reconstituiu no pós-guerra sob a hegemonia de Washington. E, portanto, comunga de valores e de interesses estratégicos no Atlântico Norte. Por outro, cada vez menos os EUA são capazes de sustentarem e serem um aliado chave para a Europa.
:: Qual o interesse dos EUA na fronteira entre Rússia e Ucrânia? ::
E a Europa, por vezes, compra agendas que são do interesse estrito dos EUA cujos custos para o continente europeu são muito elevados. As sanções contra a Rússia são um exemplo disso. Uma guerra agora com a Ucrânia arrastaria toda a Europa. Seria trágico para a Europa sob o ponto de vista da violência, do conflito, do comércio, da questão migratória, e seria de impacto mínimo para os EUA.
O jornal alemão Die Welt encontrou e publicou um documento demonstrando que, em 1991, numa reunião em Bonn, representantes dos EUA, Alemanha, França e Inglaterra se comprometeram a não expandir a fronteira da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) além do rio Elba que fica na Alemanha. Mas depois mudaram de ideia...
Havia um compromisso ao final da Guerra Fria para conter a expansão da OTAN mas, como Putin notou, foi diversas vezes desrespeitado em várias ondas de expansão. No final dos anos 1990, vários países do Leste Europeu foram incorporados à OTAN.
É bom lembrar que essa aliança militar surgiu na Guerra Fria com propósito anti-Rússia e anticomunista. Ou seja, mesmo o fim da bipolaridade não foi suficiente para que esse aparato se desmontasse. Não só isso. Ele foi fortalecido, expandido e passou a realizar operações militares muito além do seu escopo original. Aparentemente, a partir do governo Putin, foi estabelecida uma linha vermelha, como ele próprio chamou, para esta expansão. É o caso da Georgia, que redundou em conflito em 2008, e agora da Ucrânia.
Os EUA silenciam sobre os grupos de inclinação neonazista da Ucrânia
A forte presença de agrupamentos e milícias neonazistas ou de extrema-direita na Ucrânia estimula os movimentos do governo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Durante a II Guerra, países do Leste Europeu, entre os quais a Ucrânia, enviaram contingentes para lutar ao lado dos nazistas contra os soviéticos, casos também da Hungria, Bulgária, Estônia etc. Não por acaso muitos desses países estão hoje sob governos de ultradireita. Este fato também contribui para prolongar a crise?
A Ucrânia está cindida desde 2004, a primeira revolução laranja, depois em 2014, quando se conclui uma segunda etapa dessa revolução e, desde então em plena guerra civil. De um lado, forças pró-russas e, do outro, grupos de extrema-direita em grande medida vinculados aos EUA.
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Obviamente, os EUA silenciam quanto a esses grupos de clara natureza xenofóbica e de inclinação neonazista. É esse é um elemento determinante da própria cisão política que o país está experimentando. Me parece muito difícil uma solução política e geopolítica com esse quadro de forças à frente do governo ucraniano.
O acordo entre China e Rússia muda o quadro de forças internacional
A mídia brasileira não prestou muita atenção mas a reaproximação entre Rússia e China e a declaração conjunta de Putin e Xi Jinping sinaliza grandes mudanças na geopolítica global. Que mudanças são essas?
A declaração conjunta sino-russa talvez represente o mais importante marco das relações internacionais desde o estabelecimento da ordem pós-guerra (1939-1945). Sem dúvida nenhuma, China e Rússia indicam ali novos termos não apenas de convívio entre eles, mas padrões e regras de convívio para o século 21, revelando uma grande mudança no quadro de forças internacional.
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Rússia e China juntas significa que a segunda potência bélica do mundo e a primeira potência econômica, ambas com armas nucleares, confirmam sua aproximação depois de 50 anos, quando uma jogada diplomática dos EUA empurrou ambas para campos diferentes. Em termos práticos, o que pode mudar com esta nova realidade?
A situação geopolítica e geoeconômica da China e da Rússia é que permitiu a sinalização de novos termos de convívio internacional. A não escalada do evento na Ucrânia é um sinal da grande mudança do quadro de forças internacional. Revela a incapacidade dos EUA de levar adiante um desígnio seu diante da capacidade de reação, de resposta contra-hegemônica da Rússia.
Na declaração, Putin e XI Jinping defendem que não existe uma só forma de democracia e tampouco existe uma nação eleita para impor sua forma particular de democracia aos demais países. É um recado direto a Washington e sua predileção pela interferência militar ou híbrida em qualquer rincão do mundo para impor suas regras. É a aparente decadência atual dos EUA que fomenta o passo adiante de China e Rússia?
Na verdade, a democracia liberal nos termos em que foi posta pelos EUA sempre foi uma grande ideologia para legitimar um determinado sistema, uma ordem sócio-econômica, que é a capitalista. E, por isso, todos os demais regimes, como as democracias populares durante a Guerra Fria, foram deslegitimadas. Trata-se de uma estratégia seletiva para definir o que são aliados e não aliados. Todos os não aliados, os desafiantes, são tratados como ditaduras que desrespeitam os direitos humanos. É o pretexto para cerco, contenção ou mesmo escalada militar.
Ao contrário, ditaduras escancaradas, como a saudita ou as ditaduras latino-americanas do tempo da Guerra Fria, são fomentadas, apoiadas e nunca questionadas. Rússia e China sinalizam que tais características de quem se apresenta como portador da democracia, como avalizador, não serão mais aceitas.
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Em 2001, após o ataque às Torres Gêmeas, os EUA voltaram sua atenção para a Ásia e o Oriente Médio, permitindo que, nos primeiros anos do século, a esquerda ou centro-esquerda chegasse ao poder no Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Peru etc. Hoje, começa a acontecer novamente uma onda de vitórias esquerdistas no continente – Chile, Bolívia, Peru e podem acontecer outras na Colômbia e no Brasil. Desta vez, porém, como não há mais o Iraque ou o Afeganistão, os EUA estarão mais atentos e serão um empecilho para tais vitórias?
Na época da Guerra Fria, os EUA perpetraram vários golpes, militares ou não. No século 21, temos visto formas mais sofisticadas do que eles chamam de regime change que culminam nas revoluções coloridas, nas guerras híbridas, para deposição de regimes considerados “não alinhados”. Não creio, entretanto, que a capacidade da Rússia e da China de se contraporem aos EUA seja suficiente para diminuir a grande capacidade norte-americana de se introduzirem na agenda doméstica de vários países do mundo.
Um governo progressista ou minimamente consequente fará o Brasil retomar seu lugar no mundo
Como o Brasil, em uma eventual eleição de Lula, poderá se beneficiar desta nova situação que aproximou Rússia e China? Os BRICS - grupo que reúne cinco grandes países emergentes: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - retomarão o impulso inicial?
O Brasil vinha sendo um dos principais protagonistas do BRICS desde o governo Lula, quando o chanceler era Celso Amorim. No final do governo Dilma e, sobretudo, nos governos Temer e Bolsonaro, a política externa brasileira se desidrata, se esfacela, perde capacidade de atuar e de ler o cenário internacional.
É muito provável que, caso haja um governo progressista ou, pelo menos, um governo minimamente consequente, o Brasil retome seu lugar neste mesmo quadro de forças de multipolarização que demanda um país que é o maior da América do Sul.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira