Glaucielle Martine e Almir Marques vivem desde setembro de 2021 dentro de uma barraca, no marco zero da cidade de São Paulo. O aluguel de R$ 500 que pagavam por um quarto no Parque Dom Pedro ficou inviável depois que o preço do combustível disparou, e as corridas que Almir fazia, como motorista de aplicativo, estavam deixando o bolso mais vazio do que cheio.
Segundo levantamento de dezembro de 2021 feito pela prefeitura de São Paulo, a população de rua da capital paulista chegou a 31.884 pessoas naquele ano, sendo 7.540 pessoas a mais em relação a 2019, o que representa um aumento de 31%.
Entre as milhares de pessoas que passaram a viver nas praças e calçadas da cidade de São Paulo durante a pandemia de covid-19, o casal é exemplo do que vem se chamando de um novo perfil da população em situação de rua. São aqueles que estão nessa condição pela primeira vez, muitas vezes com família e vivendo em barracas.
Aos 37 anos, Glaucielle conta que trabalhava com reciclagem de papelão, mas viu seu serviço desvalorizar ao mesmo tempo em que a inflação escalou preços de itens básicos de sobrevivência, como os alimentos. "Enquanto estava R$ 1 o quilo do papelão, a gente conseguia pagar o quarto. Aí o papelão caiu para R$ 0,40. Ou pagava aluguel, ou comia", relata.
Censo 2021 da população de rua
O censo da população em situação de rua em São Paulo foi encomendado pela gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) para a empresa Qualitest Ciência e Tecnologia e divulgado no final de janeiro.
A pesquisa aponta que, de 2019 para cá, o número de barracas pelas ruas aumentou 330%. Antes da pandemia, eram 20% as pessoas que informavam viver nas ruas junto com membros familiares. No fim de 2021, o percentual foi para 28,6%.
Grupos que atuam nesse tema há décadas — a exemplo da Pastoral do Povo de Rua, encabeçada pelo padre Julio Lancellotti, e do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) — contestam a metodologia do censo e afirmam que seu resultado está subnotificado.
:: Censo da população de rua de São Paulo não mostra a realidade, contesta movimento ::
O rapa
Todos os dias, Glaucielle e Almir armam sua barraca ao entardecer. Às 4h, eles e todos seus vizinhos já desmontam, antes que chegue a zeladoria da prefeitura, popularmente chamada de "rapa".
Os relatos colhidos pela reportagem na praça da Sé foram unânimes: quem não guardar seus pertences ainda antes de o sol nascer corre sério risco de perdê-los.
Um posicionamento da prefeitura a respeito da prática foi requisitado, mas até o momento não houve resposta.
Em um vídeo enviado ao Brasil de Fato, agentes da gestão municipal aparecem retirando e levando embora colchões e cobertores, em uma das ações que fazem diariamente.
Almir é uma das mais de 25 milhões de pessoas no Brasil que pegaram covid-19. "O rapa não me permitiu ficar isolado para não transmitir para as outras pessoas. No terceiro dia em diante, já tive que ficar desmontando barraca e ficar circulando”, relata.
Tem de circular, mas não para muito longe. “A gente não sai daqui, da praça. Não consegue por causa do pessoal do rapa, né? Que tem gente aí que fala que é a zeladoria, mas aqui é o rapa. Então não tem como”, descreve. “Tem o plantão ruim que chega e já leva, leva barraca, roupa, leva tudo”, complementa.
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A busca por trabalho
Assim, o casal se reveza quando um deles precisa se afastar da Sé para, por exemplo, procurar emprego. “Eu distribuí bastante currículo aqui, mas não tive sucesso ainda”, diz Glaucielle, que é natural de Ponta Grossa (PR) e chegou a São Paulo em junho do ano passado.
De acordo com o IBGE, atualmente a soma das pessoas desempregadas (12,6% da população brasileira) com as desalentadas, que são aquelas que já nem buscam trabalho, equivale a 18,6 milhões.
Segundo o levantamento da prefeitura de São Paulo entre a população em situação de rua, 42,8% estão sem trabalho. Outros 33,9% estão vivendo de bicos, 3,9% têm emprego sem registro em carteira e 2,2% trabalham registrados. Antonio faz parte da parcela de 16,7% que trabalha por conta própria.
Idas e vindas
Antônio morava em Itapevi (SP) e agora, aos 45 anos, passa as noites embaixo da marquise de uma agência da Caixa Econômica Federal, na Lapa, zona oeste de São Paulo. Nos últimos quatro anos, viveu idas e vindas com condições de ter um teto. "Quando o negócio aperta, aí eu vou pra rua", diz. E foi durante a pandemia que o negócio apertou de novo.
Há um ano, foi dispensado do serviço de ajudante de pedreiro. Atualmente, Antonio cata papelão pela região, na parceria de outro colega da antiga obra, que vive nas mesmas condições e não quis aparecer na reportagem. "Minha mãe teria um enfarto se me visse nessas condições", justificou. É com o mesmo papelão recolhido durante a jornada que eles forram o chão para passar a noite.
"Vem um, dá comida, vem outro, dá comida, e assim nós vamos vivendo a vida. No dia a dia, quando não tem [algo] para comer, nós dormimos de todo jeito", descreve Antonio.
"Tem uns que querem ficar mangueando. Nós não: nós já queremos trabalhar para se manter, tá entendendo?", explica Antonio, ao dizer que eles têm perspectivas de alugar um quarto, sem cozinha, mas com banheiro. Até o momento, conseguiram juntar R$ 100 dos R$ 350 necessários.
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"O medo maior é a discriminação das pessoas"
Segundo conta Almir, a solidariedade entre as pessoas que dividem o espaço da praça da Sé garante o compartilhamento de cobertores e outros objetos necessários para a sobrevivência ao relento.
"Mas o olhar das pessoas que passam é o pior. É como se você fosse roubar. O ser humano já não gosta de olhar muito para o próximo, né? Então, o olhar discriminatório arrebenta mais”, narra. Nesse mês de fevereiro, Glaucielle começa um curso de técnico em Radiologia, na faculdade Anhanguera, na República. Será a vez de o marido cuidar dos pertences enquanto ela estiver fora.
Edição: Rodrigo Durão Coelho