Médicos ligados a conselhos de Medicina atuam como administradores e moderadores de um grupo de Facebook no qual circulam mensagens antivacina. Esses profissionais, que ocupam cargos nas autarquias que fiscalizam o trabalho de colegas, são autores de piadas postadas nesse mesmo grupo zombando da imunização contra a covid-19, estratégia cientificamente comprovada como a mais eficaz para controlar a pandemia.
O grupo controlado pelos médicos e no qual circulam as piadas é o "Dignidade Médica". Foi criado em 2011 e originalmente servia principalmente para troca de informações sobre rotina de trabalho entre profissionais e estudantes de Medicina.
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Só médicos ou estudantes podem ingressar no grupo, que é privado, mas possui mais de 93 mil membros. Ao solicitar a adesão, profissionais devem, inclusive, informar o número do seu registro em conselhos da categoria.
Apesar desse controle na entrada, segundo o próprio Facebook, circulam no grupo publicações que violam os padrões de comunidade da rede social. Ou seja, fake news.
Parte dessas postagens já foi banida pela rede social por propagar informações falsas. Piadas com conteúdo antivacina e outras publicações contra a imunização, no entanto, ainda circulam no grupo.
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No final de dezembro, por exemplo, a médica Cecília Salles, até então administradora do Dignidade Médica, fez um paralelo entre a eficácia de vacinas e um anticoncepcional fictício, que só funcionaria caso o paciente não tivesse relações sexuais.
Cecília é ginecologista, membro da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do Conselho Federal de Medicina (CFM) e primeira secretária da delegacia de Niterói do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj).
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No último dia 12, ela anunciou, no Dignidade Médica, que suas postagens haviam tido seu alcance restringido pelo Facebook por um mês. Junto com a mensagem, ela divulgou uma foto apontando que a restrição também atingia o grupo que ela administrava.
O Brasil de Fato enviou mensagem para Cecília pelo Facebook e ligou para seu consultório para tentar ouvi-la sobre suas postagens. Ela não respondeu. Após o contato da reportagem na segunda-feira (10), a médica deixou de ser administradora do Dignidade Médica.
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Cecília é mãe do anestesiologista Yuri Salles Lutz. Lutz é diretor do Cremerj e também atua como moderador de postagens do Dignidade Médica.
Procurado pelo Brasil de Fato para comentar as postagens que circulam ali, ele primeiramente informou que conversaria com outros membros do grupo para se pronunciar. Depois, bloqueou o contato com a reportagem e deixou a moderação do grupo.
Outro moderador do Dignidade Médica é Roberto de Castro Meirelles, médico cardiologista. Ele é conselheiro do Cremerj.
Moderadores são usuários do Facebook que aprovam ou removem postagens em grupos. Eles, por exemplo, poderiam evitar que circulassem ali mensagens com conteúdo antivacina publicadas por outros membros do Dignidade Médica. No caso de Meirelles e Lutz, não o fizeram.
Procurado pelo Brasil de Fato, o Cremerj informou que não tem relação com o Dignidade Médica e desconhece as postagens feitas ali. O conselho regional declarou ainda ser “totalmente favorável” à vacinação contra a covid-19, tendo, inclusive, sido pioneiro entre os conselhos profissionais do país a oferecer a imunização para os médicos do estado do Rio de Janeiro.
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O Cremerj também informou que qualquer falta cometida por médicos deve ser denunciada e apurada com todo o rigor necessário.
Já o CFM informou que o grupo Dignidade Médica é privado e, por isso, não teria acesso às postagens feitas ali.
Membro do governo
O secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, o ginecologista Raphael Câmara, é outro membro ativo do Dignidade Médica, apesar de não ser administrador nem moderador do grupo. Câmara também é conselheiro do Cremerj.
No grupo, ele chegou a anunciar que havia denunciado um colega ao Cremerj por conta de uma postagem em uma rede social sobre o afastamento médico do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) após suas férias, em janeiro, devido a uma obstrução intestinal.
O Brasil de Fato procurou Câmara e o Ministério da Saúde em busca de informações sobre a participação dele no Dignidade Médica. Eles não responderam.
Também não se pronunciou o médico Francisco Cardoso, administrador do grupo. Ele é um dos principais defensores do “tratamento precoce” contra a covid-19, questiona com frequência a eficácia de vacinas e é apoiador declarado de Jair Bolsonaro.
Em depoimento à CPI da Covid, no Senado, no ano passado, Cardoso disse ter sido “honrosamente convidado pelo Ministério da Saúde a compor a equipe de profissionais responsáveis pela construção da Nota Orientativa 17, sobre orientações para o tratamento inicial da covid-19, com doses adequadas de hidroxicloroquina e cloroquina”.
Esse tratamento não tem eficácia contra a doença.
Cardoso, aliás, está com sua conta no Twitter suspensa por conta da divulgação de fake news. Procurado, ele não respondeu à reportagem.
Bolsonarismo na medicina
O médico, filósofo e professor da Unisinos Marco Antonio Oliveira de Azevedo disse ao Brasil de Fato que postagens e comportamentos de médicos exibidos no Dignidade Médica não são exclusivos de membros do grupo.
Segundo ele, desde os anos 1990, tem crescido a resistência de médicos a campanhas públicas de vacinação. Essa resistência cresceu com respaldo do governo de Jair Bolsonaro, que já declarou não ter tomado o imunizante contra covid-19. Chegou até a cúpula dos órgãos que representam a classe médica, como os conselhos de medicina.
“Entre os médicos, a prevalência de opiniões críticas a estratégias preventivas como o uso de imunização em detrimento de estratégias terapêuticas, curativas, são muito frequentes. Não é a maioria, mas passa de 20% dos médicos", afirmou Azevedo.
Ele diz ser contra esse tipo de terapias e apoia a vacinação, considerando que dados científicos apontam para ela como a melhor solução para a pandemia. Azevedo ressaltou, porém, que uma parte de seus colegas insiste em estratégias que negam a ciência.
Na quinta-feira (27), por exemplo, a coordenadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), Selma Kuckelhaus, pediu demissão da instituição, que passou a exigir comprovante de vacinação de trabalhadores e estudantes. Ela não se vacinou.
Azevedo disse também que conselhos de medicina dificilmente conseguirão impedir que médicos negacionistas expressem sua opinião, ainda que ela não esteja baseada na ciência. Ele, inclusive, não acredita que punir colegas por postagens em grupos privados de discussão seja a melhor forma de lidar com o problema.
Já Rosana Onocko, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), criticou as postagens de médicos contra vacinação e afirmou que elas são faltas éticas. Deveriam, portanto, ser punidas.
“Nós [médicos] juramos na formatura que vamos defender a vida e usar os melhores meios para isso”, declarou. “Esses médicos estão iludindo quem não tem capacidade técnica de julgar os argumentos deles. Pessoas mais simples acabam sendo iludidas”, considera.
Prejuízo à população
Para Rosana, essa ilusão acaba atrapalhando a campanha de vacinação contra o coronavírus. “Alguns Estados têm pouca adesão de pais para levar seus filhos à vacinação. E muito disso tem sido promovido propositalmente”, disse.
O médico de família e comunidade Vinícius Ximenes Muricy da Rocha, membro do da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, também defende punição a quem posta contra a vacinação, ainda que em grupos privados. Ele, que trabalha em unidade básica de saúde, disse que piadas sobre a eficácia da vacina já atrapalharam muito o combate à pandemia no Brasil.5
“Isso não é só uma brincadeirinha de rede social, tem repercussões coletivas. Se tem repercussões coletivas, tem implicações éticas”, afirmou.
“Eu trabalho na atenção básica. A gente percebe os pacientes muito confusos com opiniões divergentes de médicos, entre argumentos embasados em evidências científicas e argumentos que são completamente baseados em pseudociência”, relata.
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"Conteúdo privado"
Olavo Vianna é administrador do Dignidade Médica. Ele, que também é membro do grupo Médicos com Bolsonaro, foi o único da comunidade que respondeu aos questionamentos do Brasil de Fato sobre as postagens que circulam no grupo.
Disse que os temas discutidos na comunidade são privados e não podem ser debatidos fora dali para que sejam respeitadas questões de sigilo inerentes à medicina.
A Meta, empresa que administra o Facebook, declarou que, desde o início da pandemia, removeu mais de 20 milhões de posts em todo o mundo, e mais de um milhão somente no Brasil, com conteúdos falsos sobre covid-19 e vacinas que poderiam causar danos às pessoas.
Edição: Rodrigo Durão Coelho