Abandono

Há cinco meses, haitiana vive sem energia elétrica em Manaus

Gloriane Antoine afirma que a empresa Amazonas Energia a tratou como ‘ladra’ e a impede de retomar a vida

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Desde agosto de 2021, a Amazonas Energia S/A interrompeu o fornecimento de luz elétrica na casa da haitiana - Arquivo pessoal

“Eles não querem me deixar viver, estou sufocando aqui.” A recorrente fala de Gloriane Aimable Antoine, imigrante haitiana, parece não ter fim. Morando em Manaus, capital do Amazonas, no calor de 40 graus, segundo ano da pandemia da covid-19, a mãe de três filhos já soma cinco meses sem energia elétrica em sua casa. Com nome ‘sujo’ e sem fonte de renda, Gloriane tenta brigar, sem sucesso, contra a companhia fornecedora de luz. 

Desde agosto de 2021, a Amazonas Energia S/A interrompeu o fornecimento de luz elétrica na casa da haitiana. A empresa também bloqueou o CPF de Gloriane, tornando seu documento irregular para compras ou empréstimos. Ela recebeu boletos com cobranças de inadimplência, mas alega serem falsas, com valores entre 500 e 800 reais. 

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A haitiana tentou meios públicos para reclamação, como o Procon-AM. O órgão retirou os pagamentos falsos, mas manteve bloqueado o seu CPF. Em seguida, Gloriane recebeu uma multa de 600 reais sob acusação de alterar a contagem do equipamento de eletricidade de sua casa. Além de ser acusada de furto, ela teve a energia elétrica do imóvel que aluga para usar como restaurante no Novo Aleixo – sua única fonte de renda até então – desligada. “(Estou) desesperada, sem oportunidade de emprestar (dinheiro), sem oportunidade de comprar, sem energia total na minha casa para meus filhos estudarem, dormindo no carapanã e no calor”, conta ela.


Lanchonete da Gloriane (Foto: arquivo pessoal)

O acesso à energia elétrica é um direito fundamental social no Brasil, tais como dignidade da pessoa humana, tipificado pela Constituição Federal de 1988. Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) validou a Lei estadual 5.145/2020, do Amazonas, que proíbe o corte de energia elétrica durante a pandemia da covid-19.

Para o relator Marco Aurélio de Mello, então ministro da Corte, uma vez atendida a razoabilidade, e considerando-se a crise sanitária, é constitucional a legislação estadual que proíbe o corte do fornecimento residencial dos serviços de energia elétrica, no caso de inadimplência, e determina o parcelamento do débito.  

A Amazônia Real solicitou, por diversas vezes, uma explicação da empresa Amazonas Energia S/A sobre a situação de Gloriane, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.   

“Eu era estrangeira para eles”

Gloriane Antoine, de 38 anos, mudou-se para Manaus em janeiro de 2010, logo depois de seu país ser acometido por um terremoto. “Estava escolhendo um lugar para me esconder”, lembra. Foi até a embaixada do Brasil no Haiti, onde conseguiu visto permanente para a nova morada. Deixando a família para trás, ela trabalhou como doméstica, tendo experiências que classifica como ‘exploração’. “Não sabiam me tratar como semelhante porque eu sou negra”, desabafa. 

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Havia cerca de 500 imigrantes haitianos morando na capital do Amazonas em abril de 2020, segundo a Pastoral dos Migrantes da Arquidiocese de Manaus. Foi na pastoral e também na Paróquia São Geraldo que Gloriane conseguiu auxílio para trazer a família para o Brasil. Segundo ela, mais um desafio se iniciou: a adaptação dos três filhos à casa nova. 

“Deixei eles um tempo, então vieram me encontrar numa terra estrangeira, e assim me tornei estrangeira também para eles, mesmo sabendo que eu era mãe. Não eram as crianças que eu deixei em casa. E assim tive que trabalhar o psicológico deles e o também o meu”, explica. Hoje, os três filhos de Gloriane, que prefere não revelar os nomes por conta da exposição, têm 12, 13 e 15 anos.

O racismo e a xenofobia não perderam tempo, e os filhos de Gloriane tiveram de enfrentar o preconceito. “Algumas situações deixavam eles irritados. Quando andávamos na rua, as pessoas pediam para tirar foto ou para tocar no cabelo deles”, conta. Para uma criança de 4 anos, avalia a mãe, era difícil entender. O ambiente escolar foi uma das salvações para a haitiana e seus filhos. 

Após deixar o trabalho como doméstica, vendeu biscoitos na rua, foi vendedora em supermercados e atuou no ramo da construção civil. Com dificuldades para cuidar dos filhos, já matriculados na rede pública, e se manter empregada, largou o trabalho para cuidar da casa. Entre o projeto de abrir um restaurante, cuidados do lar e a vida já complicada pela situação de imigração, a pandemia chegou na vida dos amazonenses – e na de Gloriane. 

Morando em Manaus há 8 anos, a haitiana se viu retornando ao antigo emprego de doméstica. Com as restrições da pandemia, ela não conseguiu alavancar seu projeto de restaurante, mesmo tendo iniciado o funcionamento do local na Zona Norte da cidade. No dia 16 de março de 2020, o ponto comercial Guloseimas da Gloriane teve de fechar as portas. 

Entre serviços de diarista e doações de cestas básicas, a haitiana já pouco dava conta de colocar comida na mesa. Não bastasse o desafio imposto pelo vírus, ela viu a vida piorar significativamente quando a empresa Amazonas Energia lhe enviou boletos com gastos que ela desconhecia. 

Além de corte na luz em sua casa, o fornecimento de energia elétrica em seu ponto comercial foi encerrado. Com ajuda de uma advogada, ela se dirigiu até a empresa em diversas ocasiões, tendo respostas negativas e frustrantes em todas elas. Sem a renda do Guloseimas, a bola de neve aumentou: a família já estava com as contas básicas de casa atrasadas. 

A associação de haitianos


Haitianos e haitianas são atendidos pela Associação (Foto: arquivo pessoal)

Ainda em 2020, enquanto trabalhava como doméstica, Gloriane criou a Associação FANM NWA – Mulheres Imigrantes e Refugiados Empoderados. Ela teve essa ideia ao observar que muitas famílias se viram sem saída diante do isolamento social: quem tinha condições, contratava professores particulares para auxiliar os filhos na modalidade de educação a distância. Não era o caso dos imigrantes. 

O objetivo da associação é o de atender a população migrante, principalmente mulheres e crianças. “Conversei com outras mães e o projeto tomou vida. Meus filhos estavam na mesma situação, com falta de internet ou sem saber falar português.” A casa de Gloriane, na época, também era a sede do projeto, que ficou prejudicado pela ausência de energia elétrica. 

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A haitiana Jacqueline Marseille, que faz parte da associação, conta que ter local para seguir com o projeto se tornou um empecilho. Sem incentivo financeiro, as reuniões na casa de Gloriane foram encerradas. Uma das atividades, que é a produção de artesanatos, sofreu atrasos para produção e entrega, prejudicando o coletivo. 

Jacqueline também lamenta pela interrupção do curso de reforço. “Não conseguiu ir para frente e as crianças estão prejudicadas, é uma coisa muito lamentável. As crianças amavam a aula e as mulheres se juntaram para ajudar as crianças. Temos mais do que dois meses que as aulas estão paradas, sabemos que as coisas nunca eram fáceis e nunca vão ser”, diz.

A situação teve novo agravante em janeiro de 2022. A empreendedora Gloriane alega que teve cabos e energia elétrica e medidor roubados em seu ponto comercial. Com quase 200 dias de calor e hoje adoecida pela Influenza H3N2, a haitiana faz mais um apelo. “Quero suplicar, por favor, para me deixarem em paz. Ao fazerem isso, atrapalham pessoas que dependem de mim, minha família, minha mãe e meu pai. Enquanto falo com você, tenho que achar um local para carregar o celular. Sou uma imigrante”.