Oito meses depois da operação que resultou na chacina do Jacarézinho, com 28 mortos, 1.200 policiais civis e militares voltaram a ocupar a comunidade na zona norte carioca na manhã da última quarta-feira (19). Em seguida, foram ocupadas as comunidades da Muzema, Tijuquinha e Morro do Banco. Foi assim que o governo do Rio fez conhecer o “Cidade Integrada”, seu mais novo programa de ocupação policial prolongada em territórios pobres.
O “Cidade Integrada” foi anunciado como uma continuidade das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que, criadas em 2008, tiveram na tortura e desaparecimento do pedreiro Amarildo, em 2013, uma de suas mais impactantes marcas.
Quebrando o padrão de operações policiais em territórios dominados pela facção Comando Vermelho (CV), como é o caso do Jacarézinho, as outras regiões ocupadas, localizadas na zona oeste do Rio de Janeiro, estão sob gestão das crescentes milícias. Até o momento 32 prisões foram confirmadas.
O governador Cláudio Castro (PL), pré-candidato à reeleição, postou em rede social que foi dado o início a “um grande processo de transformação das comunidades do estado do Rio” e que as operações “são apenas o começo dessa mudança que vai muito além da segurança”.
Foi anunciado que em breve serão também ocupadas militarmente as comunidades Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, além do complexo de favelas da Maré.
O que está por trás dessa nova movida de peças no jogo de forças políticas, econômicas e territoriais do Rio de Janeiro? Qual o papel das eleições nisso? O que esperar do programa “Cidade Integrada”?
Para refletir sobre essas e outras questões, o Brasil de Fato conversou com o sociólogo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Claudio Souza Alves.
Pioneiro dos estudos sobre as milícias cariocas e autor do livro Dos Barões ao extermínio: uma história da violência na baixada fluminense, José Claudio se debruça há décadas sobre temas relacionados à desigualdade e violência urbana.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: O Rio de Janeiro amanheceu no dia 19 de janeiro com uma mega-operação policial e com o anúncio de um novo programa de ocupação militar prolongada nesses territórios, onde vive uma população majoritariamente pobre e negra. O que as eleições desse ano podem ter a ver com isso?
José Claudio Souza Alves: 2022 já começa com sua marca de ano eleitoral. Desde a ditadura empresarial-militar de 1964, são 55 anos de atuação estatal nessa forma militarizada, ostensiva, repressiva. Então é um imenso museu de grande novidade.
O discurso é o do próprio nome do projeto: "Cidade Integrada". A ideia de que a cidade está dividida, de que parte dela foi tomada pelo tráfico e agora precisa ser tomada de volta. Esse é o mote da bandeira do Brasil que se coloca no topo do Complexo do Alemão quando foi ocupado. “Agora isso pertence ao Brasil”.
Tem alguma novidade no que se inaugura agora?
A novidade do [governador] Cláudio Castro (PL) - que no fundo não é novidade porque a UPP também trouxe essa dimensão - é a de não ter mortes no confronto inicial. As mortes serão escalonadas com a própria estrutura do aparelho policial que vai tratar essas populações, como sempre, a partir de dimensões bélicas.
Mas a grande sacada do Cláudio Castro é dizer que agora é diferente, “não vamos matar, que vai entrar o social sim”. É uma grande construção político-midiática que se repete e que faz muito sucesso. Dá voto. Um fetiche de que as armas, a guerra e a morte resolvem os problemas sociais.
Como é o discurso bolsonarista...
Ele se elege em cima desse discurso. Se estabelecem territórios segregados porque é em cima deles que se faz a descarga da dimensão sanguinária do Estado. É isso que dá voto. Esse negócio de políticas sociais para ajudar pobre em favela, isso a classe média não está nem aí, não quer saber. Quem conduz essa cidade e esse estado é esse discurso de proteção, que quer ver sangue. Não é à toa que Bolsonaro é daqui.
A gente sabe que as forças milicianas não são homogêneas, que existem disputas aí. Mas por serem ligadas às forças policiais, são conectadas ao Estado e, por isso também, esses territórios não costumam ser alvo das incursões policiais. Como você vê o fato de áreas dominados por milícias terem sido também ocupados militarmente nessa operação?
O movimento de Cláudio Castro é de transformar a milícia em palanque, que serve simultaneamente para vários fins. Às vésperas das eleições municipais de 2020, no dia 14 e 15 de outubro, a Polícia Civil e a Polícia Rodoviária Federal fizeram duas operações. Uma em Nova Iguaçu: mataram cinco pessoas. E a outra em Itaguaí: mataram 12. Eles lançaram naquele momento um discurso de que mataram "narco-milicianos".
Primeiro grande palanque: "Estamos atuando contra a milícia”.
Segundo grande palanque: joga a milícia não como responsabilidade da estrutura policial, que é o que ela é - ela é parte da estrutura do Estado. Mas são apresentados como "narco-milicianos", como uma milícia criada por traficantes, o que é uma farsa, isso não existe. Matam traficantes que fazem parceria com a milícia e isentam a estrutura policial. Matam os matáveis.
E o terceiro grande palanque: “bandido bom é bandido morto”.
No dia 11 de janeiro de 2021, uma articulação do Cláudio Castro com o prefeito de Belford Roxo (RJ) implanta um destacamento do 39° Batalhão numa área do Complexo do Roseiral. De lá para cá já mataram cerca de 30 pessoas. Operações constantes contra o Comando Vermelho, com o intuito de refazer acordos e unificar com uma milícia que já funciona há muito tempo em Duque de Caxias (RJ).
Como o Jacarézinho entra nisso?
Essa atuação de agora é continuação da chacina do Jacarézinho que aconteceu em maio de 2021. Tem a ver com uma disputa geopolítica.
Se enfraquece o Comando Vermelho no Jacarézinho, é o passo para que a milícia avance nessa estrutura. É disso que se trata. Essa mega-operação é para fazer o deslocamento do CV ou, se não conseguir, para estabelecer um novo acordo.
Milícia é controle territorial, econômico e político-eleitoral. Então a milícia é a chave do jogo eleitoral no estado do Rio de Janeiro.
E a milícia na Muzema, Tijuquinha e Morro do Banco?
A morte do Ecko em junho de 2021, o líder da milícia que mais cresce, abriu as fronteiras de uma disputa interna a ela. E vai ganhar aquele que negocia melhor com essa estrutura por dentro do Estado. De controle territorial, econômico e político-eleitoral. Esse eixo da Liga da Justiça, Bonde do Ecko, é o eixo fundamental da milícia no Rio de Janeiro.
:: Governo do RJ faz operação policial no Jacarezinho para inaugurar projeto que substitui UPPs ::
Já esse eixo da Muzema, Morro do Banco e Tijuquinha é consolidado pela milícia. Os prédios desabam, vão comentar da morte de moradores, mas ninguém vai fiscalizar, continua o padrão de empreendimento imobiliário miliciano funcionando tranquilamente, ninguém toca. Prenderam algumas pessoas, mas o negócio continua.
Para a sociedade, esse palanque diz "combato milícia, estou invadindo a Muzema". Para a extrema-direita diz “bandido bom é bandido morto”. Para os próprios envolvidos com a milícia é como dizer “a gente não vai atingir os negócios, a estrutura, identificar para onde vai a grana, inteligência articulada. Vamos fazer um cenário”.
Quem são os cerca de 30 presos? Figuras inexpressivas nessa estrutura. São pessoas que são mortas ou presas para aplacar a classe média no seu furor por sangue de pretos. A classe média adora, sempre adorou. É a dimensão colonial brasileira.
O que está em jogo não é uma vitória bélica. Nisso o Castro está com uma dimensão mais sofisticada, a gente chama de guerra de quarta geração. Estão interessados na construção de uma vitória midiática.
O discurso sobre a ação, o seu efeito moral, psicológico: a estratégia comunicativa de veicular essas imagens e de transformar isso em vitória real. Daqui para frente é o que se vai ver em movimento no Rio de Janeiro.
Edição: Vinícius Segalla