Entrevista

Nicolelis: “Com a taxa de transmissão que tem, ômicron vai sufocar os sistemas de saúde"

Segundo o neurocientista, se continuar com tudo aberto e aglomerações, podemos atingir 670 mil óbitos no final de março

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |

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Para Miguel Nicolelis, criou-se uma narrativa de que a ômicron é leve, moderada, mas não é nada disso
Para Miguel Nicolelis, criou-se uma narrativa de que a ômicron é leve, moderada, mas não é nada disso - Foto: José Luiz Somensi

“Temos que manter as proteções, se vacinar, isolar o máximo possível, porque a pandemia não acabou, ninguém tem bola de cristal para dizer quando ela vai acabar. Então não acreditem nas narrativas que a ômicron é leve, que é uma luz no fim do túnel”, afirma o neurocientista Miguel Nicolelis.

O Brasil de Fato RS conversou com Nicolelis, na última sexta-feira (14), quando o Brasil registrou mais de 112 mil casos de pessoas infectadas com o coronavírus, conforme previsto pelo neurocientista, e 251 casos de óbitos.

Até essa terça-feira o país já contabiliza 23.074.791 pessoas infectadas e 621.166 vidas perdidas desde o início da pandemia. O Rio Grande do Sul é o quarto estado em relação ao número de pessoas contaminadas e o quinto em relação às vítimas fatais. No mundo já soma mais de cinco milhões de vidas perdidas.

Confira a íntegra da entrevista

Brasil de Fato RS - Em seu livro recente o senhor destaca que o cérebro humano é o verdadeiro criador do universo. Trazendo essa afirmação para esse contexto da pandemia e no vislumbre para um mundo pós pandêmico, como o nosso cérebro faz a leitura desse momento? Que explicações a neurociência pode nos dar para explicar esse momento?

Miguel Nicolelis - Bom, eu acho que a neurociência pode explicar bem o que está acontecendo com a criação de múltiplas narrativas, múltiplos enredos da pandemia, inclusive como o cérebro humano é extremamente frágil quando exposto a uma barragem de fake news, transmitida pelas redes sociais, por exemplo.

O nosso cérebro é um criador de narrativas, um criador de abstrações que tentam fazer algum sentido em relação ao mundo que nos cerca, o universo que nos cerca. E eu acredito que o que nós estamos passando, em grande parte na pandemia, as dificuldades que estamos passando é porque nunca antes na história da nossa espécie tivemos tantas narrativas, tantas bolhas de realidade sendo criadas simultaneamente. Essas bolhas são criadas e tribalizam a humanidade.

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Então nós temos milhões de visões de realidades, e algumas delas contradizendo as leis da Física, as leis da Biologia, as leis da natureza e os fatos, porque o cérebro, infelizmente, tem essas fragilidades. E ele pode ser cooptado facilmente para aceitar essas fake news, essas visões deturpadas da realidade como uma nova narrativa. Então acho que a neurociência tem muito a dizer sobre as dificuldades que nós temos de convencer as pessoas que elas precisam pensar em termos comunitários, ao invés de termos individualistas, egotistas.

Estimativas da Universidade de Washington diz que o Brasil pode atingir o pico de 1,3 milhão de infectados por dia pela Covid-19 em meados de fevereiro por causa da disseminação da variante ômicron. As projeções incluem não só casos positivos confirmados, mas também estimativas de quem se infectou e nem chegou a testar. Em sua avaliação isso pode de fato acontecer?

Essa é uma previsão do Instituto de métricas de saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, que mostrou nos seus modelos matemáticos, como eles fazem previsão para o mundo inteiro, que no caso do Brasil nós poderíamos chegar de 1,3 até 2,2 milhões.

Esse é um intervalo, dependendo do que acontecer em termos de medidas de proteção, se nós aumentarmos o uso de máscaras, se o isolamento social aumentar ou diminuir. Existe um intervalo nessa predição. Mas ela é assustadora, porque, por exemplo, já prevê que os Estados Unidos, nesse instante, estão tendo 5 milhões de casos por dia. Achamos que um milhão e meio é de mais, mas já está subnotificado, nos Estados Unidos também.

Então essas previsões também têm a estimativa de que se nós continuarmos na situação que estamos nesse momento, com tudo aberto, aglomerações ocorrendo vários eventos, podemos atingir 670 mil óbitos no final de março. Ou seja, 50 mil óbitos a mais nesses 45 dias até o mês de março.

Qual sua avaliação da atuação do governo federal e dos governos estaduais frente ao apagão dos dados?

O apagão vem de muito tempo, já tínhamos subnotificações gigantescas ocorrendo desde o começo da pandemia, mas piorou muito no final de agosto, começo de setembro, nós começamos a ter estados que não reportavam dados, confusão no preenchimento.

Nós estamos vendo agora uma confusão absurda aqui entre o estado de São Paulo e a cidade de São Paulo. A cidade de São Paulo reporta milhares de casos diários, e o estado de São Paulo reclassifica, aparentemente só coloca centenas de casos. Nós ficamos com o absurdo da cidade de São Paulo reportar mais casos do que o estado de São Paulo no total. Então você vê a confusão.

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Somos um dos piores países do mundo em testagem per capita, e nesse sentido a realidade da pandemia foi escondida, desapareceu. E evidentemente o governo federal, não precisa falar muito mais, foi um dos piores manejos do mundo por avaliações de fora do Brasil, não só do Brasil.

Organismos internacionais reconhecendo que o Brasil poderia ter sido muito melhor nessa pandemia, portando o Sistema Único de Saúde, tendo um sistema vacinal muito avançado, um dos melhores do mundo. Mas evidentemente o negacionismo do presidente da República, o Ministério da Saúde que teve desde o início um ministro pior que o outro.

A Organização Mundial da Saúde comparou a ômicron ao sarampo, como um dos vírus mais transmissíveis que conhecemos na história

Mas o que é surpreendente na minha opinião, é o desempenho pífio e realmente abaixo do esperado, da vasta maioria dos gestores brasileiros, são poucas as exceções que nós temos, mesmo entre governadores progressistas, ditos progressistas, que tive contato pessoal.

Eu fiquei extremamente decepcionado com a falta de preparo, a falta de visão estratégica, visão de estadistas, e o resultado não poderia ser diferente. Basicamente a classe política brasileira não está preparada para os desafios do século XXI que vão ser tremendos, entre eles pandemias recorrentes como a que nós estamos tendo nesse instante.

O que esperar da pandemia para 2022?

Quanto a duração da pandemia, ninguém pode dizer nada, é muito difícil fazer qualquer previsão, porque é um vírus com grande capacidade de se adaptar, haja visto as mutações que nós estamos tendo em grande número e as variantes. As pessoas não estão se dando conta, a ômicron foi detectada em 27 de novembro na África do Sul, em menos de dois meses ela tomou conta do mundo, é uma coisa assim impressionante.

Ontem [no dia 13 de janeiro], na Organização Mundial da Saúde, comparou-se a ômicron pela primeira vez ao sarampo, como um dos vírus mais transmissíveis que conhecemos na história, e infelizmente não conseguimos prever o que pode acontecer, tanto o vírus pode desaparecer do nada, como pode aparecer outras variantes ainda mais problemáticas.

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Agora com a ômicron, criou-se essa narrativa de que ela é leve, moderada, não é nada disso, com a taxa de transmissão que ela tem, ela vai sufocar os sistemas de saúde. Em menos de duas semanas nós já estamos vendo UTIs lotando, das capitais dos estados. Como aconteceu na primeira, e pior, muito pior na segunda onda, e como nós não estamos recorrendo ao aumento do isolamento social, como nós fizemos na primeira onda e conseguimos achatar a primeira onda brasileira, nós vamos ter um pico gigantesco, nós vamos bater recordes de tudo, como os Estados Unidos estão batendo.

Criou-se essa narrativa de que a ômicron é leve, moderada, não é nada disso, com a taxa de transmissão que ela tem, ela vai sufocar os sistemas de saúde

Os Estados Unidos estão com quase 155 mil pessoas internadas nesse momento, 25 mil pessoas em UTI. Metade dos hospitais americanos, dos estados americanos, estão reportando um sistema de saúde próximo do colapso, nesse momento, o que é uma coisa assim inaudita, é um choque pra todo mundo nos Estados Unidos. E todo mundo que conhece, como eu que estou lá há 32 anos, a estrutura precária de atendimento, se os hospitais começam a colapsar, os prontos socorros, que é o grande problema, não tem uma rede primária pública, não tem para onde as pessoas irem, então esse é o grande drama nesse momento.

O presidente da República falou que a ômicron seria bem-vinda, e que representaria o fim da pandemia. Isso teria a ver com a tese que ele sempre defendeu da imunidade de rebanho?

Imagino que sim, é uma afirmação completamente absurda, mas infelizmente ele começou usar declarações de alguns cientistas aqui, inclusive no Brasil, que começaram a espalhar essa narrativa que não tem base científica alguma. Pode até acontecer, eu sempre falo, pode acontecer de darmos sorte aí, e ou houver uma mutação que acabe com a variante, ou que acabe com a própria pandemia.

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Isso já aconteceu na pandemia de 2018, da influenza. Mas não temos nenhuma previsão, você não consegue fazer uma previsão disso. Então essa declaração não tem pé nem cabeça. Mas, evidentemente, eu acho que ela é baseada na tese de se criar uma imunidade de rebanho permitindo que qualquer variante se espalhe a esmo, que é a tese central do governo federal brasileiro desde o início da pandemia. Que é considerado inclusive antiética, e monstruosa, por organismos internacionais.

A imunidade de rebanho é algo que você quer atingir pela vacinação, você quer ter um número muito grande de pessoas com anticorpos neutralizantes, que impeçam se não a infecção, como aconteceu, impeçam casos graves e a mortalidade. Eu falei isso desde julho do ano passado, mas as pessoas não prestaram atenção.

O que aconteceu no Brasil foi natural, nós tivemos um número de infecções tão gigantesco na segunda onda, mas não temos nem os dados corretos pra saber, que se desenvolveu uma imunidade temporária, um número muito grande de pessoas. Então um número de suscetíveis caiu, e a vacinação subiu rapidamente, isso teve uma janela de imunidade global do país, que aconteceu exatamente nos Estados Unidos.

Nos Estados Unidos foi de final de janeiro a final de junho, exatamente o que aconteceu no Brasil, caíram casos, caíram mortes, o presidente foi na televisão nos Estados Unidos dizer que ia ser o verão da felicidade, o fim da pandemia, e aí explodiu. Explodiu porque apareceu uma coisa chamada delta, uma variante delta.

Nós temos que fazer tudo para acabar com a transmissão do vírus. É a única forma que nós temos de conter um eventual colapso no sistema de saúde

Nós demos muita sorte de quando a Delta explodiu estarmos nessa janela, mas várias pessoas alertaram: Veja, essa janela é temporária. As pessoas começaram a ser vacinadas no começo do ano de 2021, os anticorpos vão cair, a titulação de anticorpos vai cair e nós vamos ter pessoas suscetíveis novamente.

E foi o que a ômicron está fazendo, ela está explorando as pessoas que não foram vacinadas, as crianças, ela está aumentando a internação de crianças em todo o mundo, inclusive no Brasil. E ela está explorando quem não tomou a terceira dose ainda, porque a queda dos anticorpos das duas doses já ocorreu, já está ocorrendo no Brasil em grandes números. E é por isso que nós temos que fazer tudo para acabar com a transmissão do vírus. É a única forma que nós temos de conter um eventual colapso no sistema de saúde.

As pessoas não entendem que se o sistema de saúde colapsa, as pessoas começam a morrer de outras causas além do coronavírus. E a mortalidade excedente brasileira do ano de 2021 já foi de meio milhão por todas as causas, meio milhão de óbitos acima da média pré-pandemia, dos anos de 2019 e 2018. Se tivermos um colapso nacional do nosso sistema público e privado, vamos ter pessoas que não podem ir para o hospital e que precisam estar num hospital, para ser operadas, pessoas que tiverem enfarte, derrame, acidente de automóvel, enfim.

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Você começa a ter um efeito cascata, que é totalmente imprevisível, e é totalmente, chamamos de não linear, você não consegue estimar como vai ser a explosão em diferentes partes do país. E nós já temos pelo menos 10 capitais brasileiras, até ontem (13), isso vai aumentar muito hoje.

Eu acredito que hoje à noite (14), que nós já estamos tendo, como a Universidade de Washington sugeriu, por volta de meio milhão de casos diários, baseado na modelagem deles, que é a única que temos disponível nesse instante.

Então provavelmente nós vamos bater recordes dia após dia nessas próximas semanas, e provavelmente hoje nós cruzamos 100 mil casos, se o sistema do Ministério da Saúde reportar minimamente o que está vindo dos estados, das secretarias estaduais. A gente nem sabe se isso vai acontecer, mas como quinta e sexta-feira se tem a maioria dos estados reportando na sua totalidade, ontem (13) chegou a 97, hoje deve passar de 100 mil.


Médico e cientista, Nicolelis coordenou o Comitê Científico do Consórcio Nordeste / Laura Molinari

Sobre a questão do sistema de saúde, nós estamos vendo também muitos profissionais com covid, o que prejudica muito o atendimento, são pessoas que vão ter que ficar afastadas, não tem como repor os profissionais que estão ali na frente da batalha digamos assim, e aqui em Porto Alegre por exemplo tem hospitais já suspendendo visitas.

Eu tenho dito que a ômicron removeu dos gestores brasileiros a decisão de fazer o lockdown, ela está promovendo o lockdown dela, é um lockdown promovido pelo vírus, que evidentemente é muito pior que aquele que poderia ter sido feito pelos gestores antes dessa explosão. Os sinais eram claros que íamos tê-la, o mundo explodiu de novo antes do Brasil.

Mas aqui no Brasil nós sempre estamos correndo atrás do vírus, e não a frente do vírus. E quando você começa a ter, como é agora o caso, um número recorde de profissionais de saúde ficando doente, você já tem os primeiros sinais de um colapso no sistema de saúde, porque você não tem profissionais para cuidar das pessoas, ou atender, ou enfermeiras, atendentes de enfermagem, pessoal que colhe sangue, pessoal que faz análise clínica, raio X, o pessoal que limpa as UTIs.

Quando você começa a ter uma infecção disseminada, generalizada dentro dos hospitais, você já acelera esse processo de colapso. Já existem até médicos que apoiam o governo federal, por incrível que pareça, falando que o colapso vai ocorrer em uma questão de dias.

Qual a avaliação que o senhor faz da determinação do governo de reduzir o tempo de isolamento em caso de dúvida, nos casos assintomáticos?

É um absurdo que já começou nos Estados Unidos, eles tão copiando a diretriz americana, que está sendo bombardeada lá por profissionais da saúde e cientistas. Para começar, os dados que eles estão usando são de variantes anteriores, ninguém tem os dados da ômicron que é muito mais transmissível.

Então ninguém sabe quanto tempo as pessoas vão ficar transmitindo, mesmo que assintomáticas com a ômicron. E 10 dias era o mínimo do mínimo, seguro, que sabíamos. Agora com uma variante mais transmissível, nós devíamos estar indo no caminho oposto.

Eu continuo dizendo, as pessoas falam: ‘tive contato com uma pessoa, estou negativo, estou assintomático, ou mesmo estou positivado, mas assintomático, quando que eu posso ver minha mãe?’. Eu falo, no mínimo 14 dias, o ideal seria 21. Quando começou a segunda onda, eu avisei as pessoas, veja, no mínimo 14 a 21 dias, para você não expor uma pessoa idosa ao risco de ser infectada.

Essa decisão de reduzir os dias de isolamento foi muito mais para tentar manter a força de trabalho trabalhando, do que qualquer tipo de indicação baseada em evidências sanitárias ou científicas

Essa redução foi feita nos Estados Unidos claramente para forçar as pessoas a voltarem a trabalhar. Mas o que estamos vendo nos Estados Unidos é provavelmente na sua história a maior taxa de pessoas voluntariamente deixando o emprego. Chama-se de great resignation, as pessoas estão se recusando a trabalhar nas condições existentes.

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As pessoas no Brasil não sabem, mas não existe nada de proteção trabalhista nos Estados Unidos, virtualmente nada. Então quando as pessoas se deram conta do que elas estavam passando com a pandemia, e ao voltarem viram as condições e sendo infectadas, não tendo teste no país, filas enormes para você ser testado ou ser atendido, as pessoas começaram deixar o serviço. E as que ficaram, começaram a ficar apavoradas. Então essa decisão (redução de dias de isolamento) foi muito mais para tentar manter a força de trabalho trabalhando, do que qualquer tipo de indicação baseada em evidências sanitárias ou científicas. Foi realmente uma tentativa de forçar as pessoas de volta ao trabalho.

Tem estados americanos, como Rhode Island, que é um estado muito pequeninho, no nordeste americano, que está falando para os médicos e enfermeiros trabalharem mesmo que sejam positivos. O que aconteceu? O que era esperado, surtos enormes nos hospitais, onde esses médicos e profissionais continuaram trabalhando.

E a questão da vacinação? É tanta narrativa criada que me parece que esquecemos de valorizar as vitórias com as vacinas.

Nicolelis - A vacinação não pode ser usada isoladamente, porque com a ômicron vimos claramente que as pessoas mesmo com três doses podem contrair a variante. Elas vão ter casos mais brandos, não precisarão de hospital, na maioria das vezes, muito raramente terão complicações letais. Esse é o sucesso da vacina, a melhor notícia de 2021 foi essa, na minha opinião, e ela foi pouco divulgada.

Acho que você tem razão, não se deu ênfase ao fato que pela primeira vez na história da Medicina uma vacina foi introduzida com um ano numa pandemia, isso mostra um poder de reação tremendo, positivo. Todavia, veja só a discussão das vacinas para as crianças. Eu estava me lembrando da história da pólio.

A pólio devastava os verões americanos na década de 1950, as crianças tinham medo de ir nadar nas piscinas públicas, as mães, os pais, porque esse era o período em que o vírus da pólio atacava em massa. Eram surtos horrorosos, terríveis. Tem adultos que, crianças da época, convivem com sequelas da pólio até hoje.

Mas a vacina surgiu, e ela foi feita com estudos clínicos naquele período, e a vacina foi administrada e foi um sucesso absoluto, total, um caso histórico da Medicina, rendeu o Prêmio Nobel. E ninguém ficou falando: não, mas o que que eu faço? Não, as pessoas vacinaram seus filhos, porque sabiam o risco, você podia morrer de pólio. Você podia ficar preso numa cama o resto da sua vida, como recentemente faleceu um paciente no Hospital das Clínicas de SP onde eu estudei, que estava com o pulmão de aço que chamávamos naquela época, o respirador artificial de corpo inteiro, há 30 anos.

A Anvisa estudou, junto com as agências ambulatoriais mais importantes do mundo, a vacina foi aprovada e já tem milhões de crianças sendo vacinadas

Pensa em uma brincadeira dessas, ele cresceu e viveu a vida inteira num quarto do hospital do HC, era um paciente que todo mundo conhecia, porque todas as classes de Medicina que passaram pela faculdade sabiam desse paciente, passaram pela enfermaria lá. E na época, nos anos 1950, ninguém ficou falando: ‘bom, mas e a longo prazo, como vai ser?’ Não, tinha um surto de pólio, e a vacina acabou com o surto.

Então nós temos agora, a Anvisa passou com critérios rigorosos, como tem sido o papel dela, que é um papel elogiável. Tem muita gente de esquerda que não quer falar bem da Anvisa, eu acho um absurdo isso.

A Anvisa é uma das instituições mais rigorosas e que mais contribuiu seriamente para o combate a essa pandemia. As divergências que ocorreram em relação a vacina russa não podem ser usadas para desfigurar o papel central que a agência teve. Mesmo porque eu acho que ela foi correta em todas as decisões que ela tomou, inclusive naquela. Mas enfim, a Anvisa estudou, junto com as agências ambulatoriais mais importantes do mundo, a vacina foi aprovada e já tem milhões de crianças sendo vacinadas. E começou hoje (14) só em SP, com um mês de atraso. Nós perdemos um mês, nós podíamos ter vacinado essas crianças antes dessa explosão da ômicron.

Esse é outro crime, é um crime contra a humanidade na minha opinião, porque você deixou um mês passar em branco, onde crianças brasileiras podiam estar protegidas. E me falaram agora, daqui a 15 dias, 20 dias voltam as escolas, voltam as aulas em alguns lugares do Brasil. SP acho que é um dos estados, e como nós vamos abrir essas escolas com essas crianças não vacinadas? Não faz o menor sentido, nós tínhamos que ter vacinado todas elas antes de poder abrir as escolas, se é que poderemos abrir, porque o número de casos vai ser tão gigantesco, que infelizmente nós vamos ter professores, funcionários, pais, crianças expostos.

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E aí me perguntaram hoje: mas como que estão as internações de crianças no mundo? Explodindo, o Reino Unido bateu o recorde, os Estados Unidos bateram o recorde de internações de crianças, e o Brasil tá batendo o recorde também, não há dúvida alguma. Então é isso, nós politizamos uma questão que a Medicina tem farto material pra comprovar a eficácia de vacinas há décadas, aliás a quase um século.

Uma das soluções mais viáveis para combater a disseminação do coronavírus e suas variantes é, notoriamente, combater a desigualdade de vacinas entre os países do mundo. As grandes farmacêuticas não deveriam ter obrigação de abrir mão de seus direitos de propriedade atendendo aos apelos de democratizar a distribuição e a produção de vacinas?

Sim, mas elas deveriam ser obrigadas pelo Estado, já que o Estado está comprando bilhões de dólares e tem gente ganhando muito dinheiro com isso. Essas patentes deviam ser abertas, é evidente. Eu defendi isso desde o começo do Comitê Científico do Consórcio do Nordeste, dei entrevistas na mídia americana sobre isso, na mídia inglesa, falei em simpósios internacionais durante o ano de 2020 e no começo de 2021, sobre a necessidade dessas patentes serem abertas, na África, na Índia, no Brasil, todos os lugares, para que você possa ter uma governança global.

O pessoal já ganhou bastante dinheiro, qual o problema de distribuir essas vacinas por esses 31 países, por exemplo, que não tem vacina, tem país com 2% de pessoas vacinadas, e porque é benefício de todos, é benefício do planeta inteiro, até das pessoas que estão ganhando dinheiro na bolsa com essas vacinas.

Então, isso que eu falo que a neurociência tem muito a dizer sobre esses dois anos, porque o cérebro humano está sendo moldado por esse comportamento coletivo de ganância, de hedonismo no limite. Quer dizer não posso ir a uma festa, como eu vou viver sem uma festa de Réveillon? Vivendo, vai ter outros réveillons.

Eu estou usando os exemplos dos sítios das cidades de Leningrado e Stalingrado na Segunda Guerra Mundial, onde pessoal passou três anos cercado pelos nazistas, e era uma questão de vida ou morte. Eles resistiram e as cidades existem até hoje por causa disso, porque as pessoas entenderam que era uma questão de vida ou morte. Aqui também é, então dá pra evitar ir a um jogo de futebol, dá pra evitar ir numa festa de Réveillon aqui no Brasil, porque nós não estamos com índices de vacinação que nos protege integralmente ainda.

Uma pesquisadora falou que a humanidade leva muito tempo para entender o luto, a dor do luto, da perda, que na Segunda Guerra Mundial foram muitas décadas pra conseguir lidar com todas as perdas. Como é que o senhor vê todas essas perdas, enfim, que nós tivemos com a pandemia, como humanidade vamos lidar com isso?

Veja, o número oficial, 5 milhões e pouco de vítimas no mundo, é outro número subnotificado gigantescamente, nós podemos estar chegando a 10 milhões de vítimas. É uma das maiores perdas da história, depois da Segunda Guerra Mundial certamente é a maior perda. E nós não nos demos conta do que isso significa, nós vamos ter impactos individuais, familiares, que vão para o resto da vida, mas nós vamos ter impactos demográficos no mundo.

Os sistemas de saúde do mundo todo, principalmente dos países que têm sistemas públicos como o nosso, vão sofrer um impacto dramático com as sequelas crônicas de covid

O Brasil bateu recorde de óbitos, e teve um dos piores índices de taxa de nascimento em 2021. Ou seja, nós tivemos um impacto estrutural que vai ser refletido em décadas aqui no país, e não sabemos quando termina a pandemia. Nós não estamos debatendo essas perdas, porque evidentemente nós estamos no meio da guerra, eu entendo isso. Mas quando isso acabar, não vamos nem acreditar em certas consequências secundárias que são decorrência dessa perda impressionante de vidas.

Sem falar, do número gigantesco, provavelmente centenas de milhões de pessoas no mundo a fora, com sequelas crônicas, que muito pouca gente fala no Brasil. A imprensa simplesmente não toca nesse assunto, mas os sistemas de saúde do mundo todo, principalmente dos países que têm sistemas públicos como o nosso, vão sofrer um impacto dramático com as sequelas crônicas de covid.

Qual a lição que fica desses dois anos pandêmicos?

Nos mostrou a fragilidade da mente humana. No século XXI o hedonismo, a cultura do hedonismo, do consumismo e do entretenimento, se transformaram em algo mais profundamente importante para nossa cultura, do que o nosso próprio instinto de sobrevivência. E junto a isso, o lobby econômico que é exercido sobre os governantes no mundo todo. Ele é muito mais relevante para esses governantes, para a classe política, do que a vida humana, porque esses lobbies sustentam o processo eleitoral, os processos políticos.

Nós criamos sistemas, que chamamos de democracia, e que eu acho que os gregos do século V devem rolar na tumba, pensando que diabo é isso que nós chamamos democracia, que eles criaram lá na Grécia.

Mas na realidade as nossas vidas têm muito pouco valor no processo decisório, de se manter ou não aberta uma economia, fazer lockdown ou não, vacinar-se ou não. E é esse o grande desafio da humanidade nesse momento. Para vocês terem uma ideia, não houve nenhuma gestão global da crise, ninguém assumiu, nem a Organização Mundial da Saúde porque não tem poder nenhum de implementar as suas políticas. Não tem o que chamam nos Estados Unidos de poder de morder, eles não conseguem obrigar ninguém a fazer nada.

Nós não vamos sair dessa crise, ao menos que tenhamos um mínimo de ação coletiva, porque nós estamos combatendo um organismo coletivo, que age apenas em termos coletivos

Como nós não tivemos uma governança global para combater a pandemia, nós temos, segundo eles, 31 países com menos de 10% de vacinados da primeira dose no mundo. E esses países evidentemente vão sofrer dramaticamente, e vão ser reservatórios de variantes para o resto do mundo.

Nós não vamos sair dessa crise, ao menos que tenhamos um mínimo de ação coletiva, porque nós estamos combatendo um organismo coletivo, que age apenas em termos coletivos. E se formos cada um atirar para um lado, seja individualmente, seja a nível de gestão de saúde, não saímos disso.

É triste dizer isso, porque eu sempre acreditei na política e acredito, tenho uma militância política a minha vida toda, desde o ensino médio e o ensino universitário, mas a política nacional derreteu com a pandemia. Tanto é que você não houve ninguém de relevância falar da pandemia, nem de um lado nem de outro, ela sumiu da pauta política.

Me perdoem a intromissão em outros domínios, mas discutimos pesquisa um ano antes da eleição, resultados virtuais que não tem nenhuma influência na eleição presidencial daqui um ano, mas não falamos que tem que parar, e tem que parar de aglomerar, tem que parar de fazer tudo que aglomera, pelo menos por duas ou três semanas. Porque os picos da ômicron parecem ser mais curtos do que os picos da delta. Então se parássemos já, ainda daria tempo de evitar esse colapso.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko