ENTREVISTA

Resultado no Chile pode influenciar cenário eleitoral de 2022 no Brasil, analisa Boulos

Dirigente do Movimento Sem Teto, Guilherme Boulos, esteve em Santiago de Chile acompanhando 2º turno presidencial

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Guilherme Boulos e presidente do PSOL foram convidados pela Frente Ampla para observar 2º turno das eleições presidenciais - PSOL

Guilherme Boulos, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e ex-candidato à prefeitura de São Paulo pelo PSOL em 2020, disse acreditar, que a derrota do ultradireitista José Antonio Kast no Chile coroa o “declínio do ciclo da extrema direita” no continente. 

Boulos foi convidado a viajar a Santiago pela campanha do agora presidente eleito Gabriel Boric para acompanhar de perto a reta final deste segundo turno. O líder brasileiro falou sobre algumas impressões que teve durante a sua visita ao país andino e sobre as perspectivas que têm com relação ao futuro governo chileno.

O que você observou de mais interessante nesta reta final de segundo turno aqui no Chile?

Foi uma ótima experiência, pudemos acompanhar a reta final destas eleições junto com o comitê político, conversamos com o [Gabriel] Boric e com outros dirigentes da Frente Ampla e do Partido Comunista, foi algo bem interessante. Também nos deparamos com algumas situações que nós já conhecíamos desde a nossa candidatura em 2018. O uso das fake news por parte da candidatura da extrema direita, a falta de ônibus em circulação no dia das eleições, prejudicando a chega das pessoas aos seus locais de votação, esse tipo de tática suja que nos fez inclusive temer pelo resultado, e que são coisas que nós já vimos a direita fazer em outros países. 

:: Quem é Gabriel Boric, favorito nas pesquisas para vencer a presidência no Chile ::

Mas, felizmente, o povo chileno soube superar essas coisas e foi às urnas para dar essa vitória incontestável ao Boric. E foi muito importante, entre outras coisas, o papel da juventude, que participou dessas eleições para manter vigente o espírito da revolta social que se iniciou em 2019, e que o projeto do Boric representa.

Mas a extrema direita, apesar de perder a eleição, também teve uma votação importante.

É verdade, mas este segundo turno aqui no Chile refletiu muito o que vem sendo a dinâmica da política no país a partir da revolta social de 2019. Antes, a direita tradicional, aquela representada por Sebastián Piñera [atual presidente], já havia sido derrotada e bem derrotada antes, no primeiro turno. Então, surgiu essa extrema direita representada pelo [José Antonio] Kast, que tentou aderir de forma farsesca a um certo discurso antissistêmico, essa coisa de “nós não somos a política tradicional”, reproduzindo uma fórmula que nós já conhecemos. O Bolsonaro fez isso em 2018 e, em outros países, também tivemos candidatos usando esse discurso.


Gabriel Boric (Frente Ampla / Aprovo Dignidade) é advogado e com 35 anos  tornou-se o presidente mais jovem da história do Chile / Javier Torres / AFP

Qual você acha que vai ser o impacto desta vitória do Boric para a América do Sul e para a América Latina?

Acho que esta eleição do Chile terá dois impactos importantes para a América Latina, que estão representadas nesses dois fatos gerados pelo resultado: a derrota do Kast, e a vitória do Boric. A derrota do Kast coroa o declínio do breve ciclo da extrema direita no continente. A extrema direita passa por maus momentos hoje na América Latina. O Bolsonaro, que é o seu maior expoente, está perdendo mais popularidade a cada dia no Brasil, a ponto de o Lula poder ganhar as próximas eleições, talvez até no primeiro turno. 

A derrota do Kast coroa o declínio do breve ciclo da extrema direita no continente.

Em outros países, essa extrema direita também perdeu disputas importantes, como a Keiko Fujimori perder para o [Pedro] Castillo no Peru. Na Bolívia, houve uma retomada do projeto democrático com o Luis Arce, após o golpe de Estado de 2019. Na Colômbia, nós temos o [Gustavo] Petro como favorito para vencer as eleições do ano que vem, segundo as pesquisas, o que seria uma vitória histórica para a esquerda colombiana, e sem o [Iván] Duque no poder, a extrema direita perderia mais um representante no continente. Então, esta derrota aqui no Chile pode marcar uma sequência de vitórias do campo progressista, no ano que vem, na Colômbia e no Brasil.

E o outro aspecto importante do resultado deste domingo é que está representado no Boric, que é o da vitória de uma esquerda renovada. O Boric, com seus 35 anos, é o presidente mais jovem da história do Chile. Um líder que surgiu como dirigente estudantil aqui no Chile há cerca de dez anos, adquiriu uma enorme experiência política, como líder estudantil também, depois se elegeu deputado, liderou o seu partido na formação da Frente Ampla, e agora chega à presidência do seu país. Ele representa toda essa geração de uma esquerda renovada, que sabe dialogar com temas que são fundamentais para a juventude, como o ambientalismo, as pautas feministas, as pautas da diversidade sexual, as demandas também dos povos originários, e essa renovação da esquerda sabe conjugar todos esses temas sem perder de vista a questão das desigualdades sociais.

Na reta final da campanha, um dos temas mais importantes aqui no Chile foi o fim desse sistema de previdência de capitalização, que é o sistema que o Paulo Guedes quem implementar no Brasil e que aqui no Chile tem gerado miséria entre os mais idosos, entre outros exemplos. Então nós vemos, ao redor do Boric, uma esquerda que mantém o seu foco no combate às desigualdades ao mesmo tempo em que se abre para dialogar sobre outras pautas, com uma outra linguagem, mais conectada com a juventude, essa é uma lição importante que podemos levar para o Brasil também.

Como você acha que pode ser a relação de um governo do Gabriel Boric com o Brasil?

É difícil dizer agora, porque o novo presidente ainda não escolheu o seu chanceler, ou a sua chanceler, mas eu tenho a impressão, pelo que nós conversamos aqui e pelo que entendemos da visão internacional desta coalizão que chega ao poder no Chile, que eles estão dispostos a conversar com todos os países, independente das diferenças ideológicas, inclusive com o Brasil. 

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Não sei se haverá essa mesma postura por parte do governo do Bolsonaro, aliás, pelo contrário, eu acredito que não, o governo do Bolsonaro já nos deu vários exemplos de que só sabe conversar com quem pensa como ele. Mas acho que uma vez que o Brasil supere o bolsonarismo, haverá um fortalecimento das relações entre o Brasil e este Chile, não tenho dúvidas disso. E talvez, também, a consolidação de um novo bloco progressista na América Latina.

Há uma percepção de que o contragolpe dessa direita que perdeu no fim de semana pode vir na forma de um ataque a essa constituinte que tem maioria progressista, que tem maioria de mulheres, e também uma grande representação dos povos originários. 

Como foram as suas conversas, como representante do PSOL, com os dirigentes da Frente Ampla e do Partido Comunista aqui do Chile?

Tivemos reuniões maravilhosas com eles, nas quais trocamos experiências, compartilhamos ideias. Vimos um grupo que pessoas que, obviamente, está feliz com o resultado obtido, mas também muito consciente da responsabilidade que terá por diante, e não só da responsabilidade de ser governo, que já é algo muito grande, mas eles também estão preocupados em defender a convenção constitucional, a Assembleia Constituinte que se iniciou aqui no Chile em julho passado e que deve entregar o seu texto final em julho do ano que vem. Há uma percepção deles de que o contragolpe dessa direita que perdeu no fim de semana pode vir na forma de um ataque a essa constituinte que tem maioria progressista, que tem maioria de mulheres, e também uma grande representação dos povos originários. 

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A direita tem muito medo do resultado final desse processo constituinte e haverá uma tentativa de minar esse processo. Mas, independentemente dessa preocupação, nós pudemos conversar bastante com todos eles, com o próprio Boric, com a Beatriz Sánchez [candidata da Frente Ampla em 2017], com o Daniel Jadue [pré-candidato do Partido Comunista, derrotado por Boric nas prévias], e criar laços com os quais podemos tirar lições dos desafios que eles terão pela frente, tanto no governo que eles deverão liderar como também no caso da constituinte, que eles terão a missão de proteger desses ataques da direita, que foi uma tarefa com a qual o Boric se comprometeu durante a campanha.


Principais ruas da capital Santiago de Chile foram tomadas por uma festa popular após vitória de Gabriel Boric / Javier Torres /AFP

Você participou da festa da vitória?

Quando vimos o resultado final e o Boric já era o presidente eleito, nós saímos do comitê e fomos para a Alameda (avenida principal de Santiago), onde estava montado o palco para o discurso da vitória, e foi incrível. O clima era incrível, porque era um clima de felicidade, de esperança. Fizeram uma festa muito bonita e na qual nós víamos muita gente jovem. Acho que havia ali cerca de 70% de jovens. Era muta gente, e estavam representados grupos dos mais diversos, ali havia estudante, movimento feminista, comunidade LGBT, muitas outras. 

A avenida foi enchendo muito rapidamente até virar um mar de gente. Nós tivemos que nos esforçar depois para conseguir um lugar o mais perto possível do palco e acompanhar o discurso do Boric. Parecia jogo do Corinthians em final de campeonato.