"Mais do que um ponto geográfico específico num mapa, é um lugar existencial, onde existimos da forma como existimos, e isso acontece em diversos lugares ao mesmo tempo", escreveu José Falero, sobre a periferia, em seu recente livro de crônicas Mas em que mundo tu vive?
Trabalhando em seu próximo romance, com título provisório Quase Homem, em que abordará a masculinidade tóxica, de como são forjadas as masculinidades, e o aprofundamento do protagonismo das mulheres, Falero, recentemente homenageado na 35ª Feira do Livro de São Leopoldo, conversou com o Brasil de Fato RS.
Finalista do 63º Prêmio Jabuti, troféu que seu amigo Jeferson Tenório ganhou, o escritor foi agraciado em novembro deste ano com o prêmio AGES Livro do Ano 2021, na categoria narrativa longa, e também com o Prêmio Academia Rio-Grandense de Letras 120 Anos, ambos pelo livro Os Supridores, obra que levou uma década até conseguir ser publicado e que já vendeu mais de cinco mil cópias até o momento, com traduções para outros idiomas.
Ao falar sobre ter sido homenageado na Feira, Falero ressalta que ela não vem só para si, mas para toda uma comunidade. “Eu venho desse lugar que as coisas se não são coletivo elas não são, não tem individualismo, não rola, é muito difícil (...) “Não dá para centralizar as coisas em mim. É uma homenagem para uma comunidade, para toda uma galera, para uma família, para um povo, para uma nação”, afirma.
Mesmo com o sucesso, o escritor mantém os pés no chão, destacando sempre do lugar de onde veio e está, o bairro Lomba do Pinheiro, um dos mais populosos e pobres de Porto Alegre. Na entrevista, Falero fala dos seus livros, como eles mudaram sua vida, sobre racismo, a questão da masculinidade tóxica entre outros. “A gente tem um papel a cumprir, no sentido de se desconstruir e desconstruir o seu privilégio e entender que as situações são injustas, que os contextos são injustos quando tu olha nessa perspectiva de gênero”, pontua.
Abaixo a entrevista completa
Brasil de Fato RS: Eu queria começar sobre essa visibilidade, todo esse reconhecimento que teu trabalho está tendo.
José Falero: Tu sabe que esses dias eu vi uma frase que atribuíram ao Abujamra, só que não era dele, depois eu vou pesquisar, era de um intelectual estrangeiro, esqueci o nome agora, mas mesmo que eu soubesse eu não ia me atrever a pronunciar, porque era um nome esquisito. Essa frase dizia assim, que o sucesso e o fracasso eram a mesma coisa para um artista, porque os dois são impostores. E quando eu vi essa frase, eu pensei que ela descreve, nomeia um sentimento que eu tinha e que eu não conseguia nomear por mim mesmo.
Muito bom quando acontece isso, quando alguém chega e tem uma expressão perfeita. E eu acredito muito nisso, eu tive muitos fracassos na vida, muitos, muitos mesmo. E se eu acreditasse neles como verdadeiros eu estava fodido. O próprio Supridores eu tentei publicar por muitos anos, e nunca ninguém achou minimamente bom pra publicar, na verdade eles não acharam nem que era digno de uma resposta. E então nunca ninguém respondeu pra mim.
Quantos anos?
Não sei, quase 10 anos. Foi bastante tempo tentando publicar e não rolava, ninguém me respondia. E é o mesmo livro que agora está sendo reconhecido. Então tu vê, se eu tivesse acreditado naquele fracasso como verdadeiro, era para eu parar de escrever, não tentar mais nada. Mas eu tinha consciência que aquilo ali não era verdade. Só que da mesma forma que aquele fracasso não era verdadeiro, esse sucesso, essa visibilidade, esse reconhecimento também não é verdadeiro, também é um impostor.
Assim como o meu livro foi negligenciado, nesse exato momento tem muita obra foda que está sendo negligenciada por aí, provavelmente livros muito melhores que os meus, então eu tento sempre manter o pé no chão, pensando nesse sentido assim, fracasso, se ele é um impostor, o sucesso também é. Enfim, é assim que eu tenho tentado encarar as coisas, claro que a gente fica feliz, porque afinal de contas tem toda uma dedicação ali, tem um gasto de energia e de tempo, eu levo muito a sério a minha produção, mas eu tento manter o pé no chão a esse respeito.
Eu lembro que quando fizemos uma entrevista contigo no início do ano, tu falou que ter um livro escrito não significava que os perrengues tinham acabado. Como é que está hoje a situação, esse reconhecimento, essa visibilidade tem se transformado também em um reconhecimento financeiro?
Um pouco. Nem é tão recente isso, acho que desde o ano passado está rolando esse reconhecimento financeiro. Eu tenho trabalhado só com a literatura, com as coisas que eu produzo e também com as coisas que tem relação com isso, por quê? Por causa dos livros me chamam para conversa mediada, ou pra palestrar em algum lugar, ou oficina de escrita, então eu vou muito em universidades.
E aí como Os Supridores, por exemplo, é um livro que dialoga com muitos segmentos da sociedade, então eu acabo indo pra muitos lugares e isso tudo é remunerado. Eu conversei já com juízes, porque é uma história que dialoga com todo o sistema penal, eu conversei com professores universitários do Nordeste, onde tem o maior acervo histórico de registro dos processos trabalhistas. Supridores dialoga também com o universo do trabalho, então eu tenho sido chamado pra muitas coisas que acaba remunerando. Somando tudo isso, eu consigo viver, não de maneira confortável, mas de maneira digna, e sem precisar me dedicar a outra coisa, me dedicando só a isso.
Só que tem um problema, um dia eu estava conversando com um amigo meu que é escritor também, e aí ele ganha dinheiro também escrevendo, e a gente chegou a algumas conclusões interessantes quando a gente pensa nesse perfil histórico do escritor no Brasil, as pessoas que historicamente publicaram no Brasil. E aí tem aquela célebre pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, da UNB. Tu vê que é branco, são homens, são classe média que publicam historicamente no Brasil, e esse histórico se reflete até nos personagens.
É muito diferente quando o dinheiro entra para uma pessoa que tem a mesma origem social que eu, é que nem diz o Racionais, se o dinheiro constar eu não gasto sozinho, nunca é sozinho
Então quando esse perfil de pessoas publica, o mínimo dinheiro que entra é uma coisa, para nós é outra. Porque esse cara, quando ele publica, a primeira coisa na vida dele, ele já tem um apartamento, ele já tem uma casa, ele já tem um carro, ele nem precisa se preocupar com os pais dele porque são aposentados com bons empregos, com bons salários, os irmãos também, toda a família, todo o entorno dele já está bem estabelecido. E o dinheiro mínimo que entra ali pra ele, ele sei lá, guarda.
Mas é outra coisa para nós quando o dinheiro começa a entrar. Para mim é ‘foda’, porque, tipo, eu tenho os dentes estragados, que eu nunca pude tratar a vida toda, ai agora eu quero tratar os dentes. Aí eu começo fazer terapia porque eu vivi um monte de coisa traumática na minha vida, e nunca pude tratar disso, então começo a fazer terapia. Só que aí eu quero tratar os dentes da minha mãe também, quero terapia para minha mãe. Aí a minha casa está caindo encima de mim. Tem uma série de demandas acumuladas ao longo de toda uma vida, na verdade mais de uma vida, mais de uma geração. E ao mesmo tempo tem toda uma galera ali do meu círculo afetivo, às vezes precisa disso, às vezes precisa de uma assistência aqui, ali, é um primo, é uma tia, e o cara vai contribuindo. Então é muito diferente quando o dinheiro entra para uma pessoa que tem a mesma origem social que eu, é que nem diz o Racionais, se o dinheiro constar eu não gasto sozinho, nunca é sozinho.
Interessante essa análise. E como é que reverbera isso lá na Lomba do Pinheiro, a questão do teu livro entre os jovens, a galera leu o teu livro? Não só Os Supridores como Vila Sapo também?
Sim. O Vila Sapo foi outro lance, foi outro contexto. Porque era um livro independente, era uma editora pequena, eu tinha que fazer o corre, eu tinha que botar os livros na mochila e ir atrás das pessoas, era muito mais contato com as pessoas. Ele chegou em muito mais gente das periferias e da minha periferia em particular, meus conhecidos, meus camaradas, justamente porque o movimento era eu. E aí beleza, eu tive esse retorno, foi muito foda, o pessoal pegou o espírito. Eu me lembro de um camarada meu que leu. Na verdade isso aconteceu com algumas pessoas, com bastante gente, de pessoas que não tinham o hábito da leitura, não gostavam de livros, e pegaram um. ‘Bom, porque foi o plok’, eles me chamam de plok, ‘foi o plok que fez, vamos ver qual é que é, o que que ele tá falando aqui’. E aí acabaram lendo até o fim, não porque é bom, não é porque tem uma virtude ali que seja minha de escritor. Mas é porque é uma linguagem que é nossa, não é uma virtude minha, é uma virtude coletiva daquele lugar. E isso contribui para que eles vão até o fim. Eles falavam, o primeiro livro que eu leio inteiro e tal.
Teve um camarada meu, eu nunca vou esquecer disso, ele disse, quando acabou de ler: ‘Isso aqui qualquer um de nós podia ter feito também. Eu sei falar assim, eu sei que essas coisas acontecem’. E eu, ‘velho, é esse o espírito, é isso aí, qualquer um de vocês podia ter feito’. Exatamente disso que se trata, entendeu?
Só que Os Supridores, por exemplo, já foi outro contexto, é uma editora grande, eu não cuido da distribuição, não é eu que decido em que pessoas ele vai parar. Mesmo assim, as pessoas vem falar comigo que leram o meu livro e tal, e são pessoas da periferia de grandes centros urbanos, São Paulo, Rio de Janeiro, de vários lugares. É muito legal esse retorno, mas é menos próximo. E mesmo as pessoas da minha periferia, em particular, que conseguiram o livro, conseguiram a revelia de mim, eu nem ficava sabendo, e às vezes a gente só trocava algumas palavras. Então não foi tão próximo como foi a relação com Vila Sapo.
Eu assisti o teu encontro com Sérgio Vaz, no Theatro São Pedro, e achei muito emblemático aquele momento. Dois escritores, poetas, que vem da periferia, que tem um trabalho, que trás essa visão das favelas, enfim, naquele espaço, que é um espaço da burguesia. E falando as coisas que vocês falaram lá. Eu me emocionei muitas vezes, tocou profundamente. Como foi pra ti esse encontro?
Eu vou ser bem franco, eu estava muito nervoso, eu vou te dizer que o ambiente não me intimidou tanto. Eu tive, como todo mundo que tem a mesma origem social que eu, tive muita dificuldade em me sentir à vontade naquele tipo de espaço. Foi um processo, era difícil mesmo para mim. Mas eu acho que eu já me sinto a vontade nesses espaços.
É como eu disse, de onde eu venho nada é sozinho, tudo é sempre coletivo, eu consigo me sentir a vontade porque tem outras pessoas ali também, entendeu? Tem pessoas negras ali também, tem pessoas da periferia ali que me ajudam a me sentir a vontade, tem toda uma galera que começou esse processo de ocupação antes de mim. Então eu chego ali, tenho um mínimo acolhimento por causa dessas pessoas. E sobretudo naquele dia, que tu viu o perfil das pessoas que estavam lá. Eu queria ver alguém que pensa que Porto Alegre só tem branco, visse aquilo lá, o Theatro São Pedro cheio de pretos, cheio de gente da periferia. Então o ambiente não me intimidou.
Mas o Sérgio Vaz sim, porque ele é uma figura nacional, uma figura gigante, uma referência pra todos nós. E além disso teve uma outra coisa que eu fiquei pensando, que é o seguinte. Quando eu entrei ali, eu tinha ido no outro, o dia que estava o Xico Sá, e na vez que eu fui estava mais cheio. Eu achei isso muito significativo, justamente pelos assuntos que a gente ia tratar ali, e o perfil das pessoas que estavam ali, e aí isso também me intimidou.
É uma coisa que já vem tarde, há muito tempo que a gente devia estar ocupando esses espaços todos
Foi uma responsa, porque eu fiquei olhando aquelas pessoas ali e pensei: Essas pessoas merecem que corra tudo bem, que tenha um evento bonito. Porque, geralmente, quando eu vou participar eu tenho, até pra relaxar, eu penso assim: Eu vou tentar ir bem, vou tentar puxar boas conversas, falar boas coisas, porque às vezes não ocorre. Isso é uma das coisas que me leva a escrever inclusive. Porque a escrita tem o tempo todo pra ficar pensando até achar a melhor forma de falar. Mas falando assim, espontaneamente, para mim é difícil, eu nunca acho a melhor coisa para dizer.
E aí eu penso sempre assim, como forma de relaxar: Bom, eu vou tentar fazer o melhor que eu posso, se não ir tão bem paciência. Mas aquele dia era muito importante que as coisas fossem bem, era muito importante para mim que aquelas pessoas ali pudessem compartilhar com a gente assuntos que são da nossa pertinência. Então tudo isso me deixou muito nervoso, mas acho que foi tudo bem. Na verdade eu não tenho como ter certeza se foi tudo bem, algumas pessoas que estavam lá disseram que foi legal e tal. Mas eu não consigo nem ter noção de tão nervoso que eu estava.
É uma coisa que já vem tarde, há muito tempo que a gente devia estar ocupando esses espaços todos.
Eu queria que tu nos falasse o significado de ser homenageado na Feira do Livro de São Leopoldo.
Eu fiquei emocionado, fiquei feliz. Aí é que tá, eu fico frequentemente sem palavras, não é difícil eu ficar sem palavras, e aí com uma homenagem desse tamanho eu não consigo nem achar as melhores palavras para expressar o que eu tô sentindo. Mas uma coisa que me ocorre muito é o seguinte: Eu sempre bato nessa tecla, acabei de bater e vou bater de novo. Eu venho desse lugar que as coisas se não são coletivo elas não são, não tem individualismo, não rola, é muito difícil.
Tem um verso do Serginho Meriti, que fala sobre isso. Ele diz, se ninguém der a mão a gente fica a pé. É de lá que eu venho. E aí eu acho que esse lugar de onde eu venho as pessoas têm uma tendência para coletividade, para solidariedade, para empatia.
É claro que eu não quero romantizar a periferia, é claro que tu vai encontrar gente egoísta, individualista lá, mas proporcionalmente é o lugar onde tu mais vai encontrar pessoas solidárias, pessoas que exercitam a empatia, justamente por essa necessidade de se ajudar. Preciso ajudar o cara hoje porque ele me apoiou outro dia, as pessoas não esquecem isso aí. As pessoas estão sempre se apoiando, e as coisas se constroem de maneira coletiva. Então quando uma coisa também se concretiza na vida de alguém lá, isso é uma coisa coletiva, nunca é para um só. Para isso se concretizar teve uma série de gente que somou no rolê, entendeu?
Eu poderia citar inúmeros nomes aqui de pessoas que me apoiaram lá atrás, desde os meus primos lendo os meus textos quando eu nem publicava, desde a minha mãe me apoiando, minha irmã, minha namorada, a Carine Bace que publicou o meu livro a primeira vez. O próprio Jefferson Tenório, que deu a maior força, divulgou o trabalho. Uma galera, o mano Cascata, que chamou lá pro sarau na Feira do Livro.
Essa soma de força, essa coletividade, é o que faz com que as coisas aconteçam pra alguém que vem de onde eu vim, e isso tem um significado importante, porque no fim das contas essa homenagem acaba não sendo para mim, acaba sendo uma homenagem para uma galera toda. E eu gosto de ter isso muito claro na cabeça, que não dá pra centralizar as coisas em mim. É uma homenagem para uma comunidade, para toda uma galera, pra uma família, para um povo, para uma nação.
Tem uma outra coisa que eu fico pensando que é o seguinte, no valor simbólico disso. Eu me lembro que quando eu comecei a escrever, e aí descobriram que eu escrevia, eu virei motivo de chacota no meio dos meus parceiros, eu sempre conto essa história. Quando eu trabalhava na obra, eles tiravam sarro de mim, ‘ah, oh escritor, alcança o martelo lá escritor'. E eu não critico eles, porque a gente não tinha referência.
Essa soma de força, essa coletividade, é o que faz com que as coisas aconteçam pra alguém que vem de onde eu vim, e isso tem um significado importante
As coisas estão melhorando agora, tem uma pá de gente da periferia produzindo e tal. Mas a verdade é que eu cresci sem conhecer um escritor na minha vida, sem conhecer nada relacionado a cultura. O que eu conhecia era os ‘mano’ correndo atrás do caminhão do lixo, virando concreto no sol do meio dia. A minha mãe, minhas tias, as mais velhas, tudo faxineiras, porteiros. Isso aí era minha realidade, então eu compreendo eles, eu não julgo. Mas acontece que quando essa galera da periferia, esse movimento todo que vem da periferia começa a chegar nos espaços, quando isso acontece, quando acontece uma homenagem que nem essa que está acontecendo aqui em São Leopoldo, talvez agora numa obra alguém, queira escrever, e aí não vai ser motivo de chacota mais. Então tem um valor simbólico isso.
Qual o teu próximo livro, já está em vista, está pensando em um projeto novo?
Estou trabalhando no próximo romance que eu quero publicar no final do ano que vem. Inclusive estou meio atrasado, porque eu tenho tido muitos compromissos, tem sido raros os momentos que eu consigo sentar pra escrever. Mas estou trabalhando nele, a ideia é ser um romance de fôlego. Ele tem um nome provisório que é Quase Homem, e a ideia é ser um romance com mais de 600 páginas, um livro grosso. E eu quero abordar algumas coisas. Duas coisas tem a ver com os marcadores de gênero na sociedade, quero trabalhar a masculinidade tóxica, trabalhar como são forjadas as masculinidades das pessoas. E quero aprofundar também a presença das mulheres nos meus textos, que sempre apareceram de maneira secundária e de maneira muito pouco aprofundada nas coisas que eu escrevi. Quero trazer uma subjetividade mais profunda, mais complexa dos personagens femininos nesse novo trabalho, essa é a ideia.
Ele vai se ambientar na Lomba do Pinheiro, Vila Sapo, Porto Alegre. É lá, de onde eu olho pro mundo, é dali que eu vi tudo acontecer.
Tu acha que o homem está numa encruzilhada?
Em que sentido?
Todo esse debate da masculinidade tóxica, do feminismo, enfim, que de alguma forma tem colocado o homem numa situação de como lidar com isso, essa nova mulher. E aí tu vê a reação que vem, por exemplo, dessa extrema-direita, do conservadorismo, contra o feminismo e contra as mulheres independentes. Parece que tem uma parcela de homens que ainda não sabe muito como lidar dentro desse novo universo.
Eu acho que todas essas questões são bastante contemporâneas, são muito recentes inclusive, felizmente dá pra tu traçar um paralelo entre esses marcadores sociais. Isso é muito legal, isso foi inclusive o que me levou a querer escrever esse livro, por quê? Porque tudo que tu pensa para as relações étnico-raciais, por exemplo, serve para as relações de gênero.
Vou dar um exemplo: quando eu vejo a galera branca da academia, principalmente, mas não só, apropriando-se das coisas que são produzidas pela galera preta da periferia, isso me dá um embrulho no estômago. Eu fico olhando e pensando, esses caras querem falar de candomblé, esses caras querem falar de samba, querem falar de rap? Vai falar de branquitude, vai refletir sobre esses poderes, esses espaços de poder que são perpetuados sempre na mão dessa gente, refletir sobre esses privilégios, sobre esses acessos, que são perpetuados sempre só pra eles, refletir sobre eles, sobre seu lugar de privilégio. É o que eu penso. Só que isso serve também para as relações de gênero, entendeu?
Ao invés de apontar o dedo pra lá, eu apontar o dedo para cá. De pensar como são forjadas essas masculinidades problemáticas, como se forja essa subjetividade masculina e que na maior parte das vezes é preconceituosa
A coisa mais útil que um homem pode fazer diante disso é assumir um lugar de escuta. Só que perceba, uma escuta atenta, honesta, de coração aberto, e de tentar entender esse processo todo. Só que, veja que interessante, a gente vive um momento agora que tudo é muito perigoso. Qualquer pessoa percebe essa animosidade que tem, quase dá para pegar no ar, qualquer coisa é um problema.
Tu vê que o que eu acabei de falar é problemático, inclusive, porque isso sugere que o homem não tem nada a fazer. Não, a gente tem um papel a fazer, no sentido de se desconstruir e desconstruir o nosso privilégio e entender que as situações são injustas, que os contextos são injustos quando tu olha nessa perspectiva de gênero. A gente tem trabalho a fazer. Mas o que eu acho que é mais útil é tentar entender, é a escuta, e não o lugar de protagonismo, o lugar de fala, é o lugar de escuta mesmo, e isso é difícil de exercitar.
Então a mesma coisa que eu estava falando em relação aos brancos, serve para nós, e aí esse livro é sobre todo esse exercício, de eu ao invés de apontar o dedo pra lá, eu apontar o dedo para cá. De pensar como são forjadas essas masculinidades problemáticas, como se forja essa subjetividade masculina e que na maior parte das vezes é preconceituosa. Mesmo que a pessoa não se dê conta que essa subjetividade máscula, enfim, essa masculinidade é tóxica. Mas ela é, e como é que isso se dá ao ponto de a pessoa nem ter consciência de que ela é privilegiada por esse simples fato. Eu quero refletir sobre isso, porque é o que eu esperava que os brancos fizessem também quando eu trouxe esse paralelo entre a questão de gênero e a questão étnico-racial.
Eu fiz uma live esse ano, e estava uma representante dos quilombos, uma mulher, negra. E aí a gente falando sobre a questão do machismo e da violência contra a mulher. Ela trouxe uma questão que eu nunca tinha refletido sobre isso: o problema é que quem está indo preso são os homens negros da periferia.
Sim, mas aí é que tá, esse aspecto, ele só mostra o seguinte: às vezes as pessoas me fazem perguntas dentro do campo literário, no caso aqui a gente está conversando do âmbito mais sociológico. Mas dentro do âmbito literário as pessoas me fazem perguntas que tipo eu não tenho como responder dentro daquilo, porque é uma coisa maior, é uma coisa macro que aparece ali também por acaso.
Agora também está acontecendo isso. Veja, a gente está falando sobre essa desproporção de como o Estado age em relação aos homens negros, como ele age em relação aos homens brancos. Mas acontece é que, sim isso acontece, quem vai preso são.., inclusive isso causa até a falsa impressão, que ajuda inclusive a desumanizar esses homens negros da periferia, que causa essa impressão de que eles é que são violentos com as mulheres. É a periferia e os homens negros que são violentos com as mulheres. Não, é que eles vão presos, essa é a questão, entendeu?
O cara branco, lá de classe média não vai, ele bate na mulher e fica por isso mesmo. Só que isso só reflete uma coisa, que se apresenta em todos os outros segmentos sociais que tu puder imaginar, tem dados recentes, por exemplo do IBGE. Fizeram uma pesquisa encima desses dados, que vai mostrar que chegou a morrer 8 vezes mais, entre os idosos, mais gente preta na pandemia do que gente branca.
A pandemia, que é uma coisa que chega teoricamente, vamos dizer assim, na falta de palavra melhor, uma epidemia democrática, vai pegar todo mundo, não vai escolher ninguém, quem morre é os preto, é sempre assim. Também na área da saúde tu vai ver isso, na área de segurança pública tu vai ver isso, quando tu começa a comparar a renda das pessoas tu vai ver isso. Velho, isso já foi visto em todos os status sociais que tu puder pensar. Tem uma pesquisa que mostra o seguinte, que é só com moradores de rua, que os brancos ganham 3 vezes mais dinheiro de esmola que os pretos. Então até uma pessoa em situação de rua, ela é privilegiada se ela for branca, isso se reflete em todos os aspectos sociais.
Uma vez o Brown estava dizendo, acho que foi no podcast dele, ele disse: velho, quando tu pensa o racismo estrutural, o que que é isso, é isso cara, é a própria sociedade, tira o racismo desmancha, cai tudo, ela está estruturada nisso, e tu vai observar isso em todos os aspectos possíveis.
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Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko