Assim como os nós firmes e precisos traçam uma boa rede de pesca, a articulação e organização dos comunitários nativos da Ilha do Mel, no Paraná, também têm dado segurança aos moradores para exigir seus direitos. Exemplo disso foi a construção do Protocolo de Consulta das Comunidades Tradicionais de Nova Brasília, lançado em uma cerimônia realizada no trapiche de Brasília, no dia 10 de novembro.
Se a rede é a ferramenta usada para contribuir na pesca, o Protocolo de Consulta é o instrumento usado para cobrar o direito de consulta prévia, livre e informada – previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) - das comunidades tradicionais do local.
“A gente acredita que através desse documento – que é um documento jurídico – a gente consiga ter um pouco mais de voz, porque a gente sabe que nossos antepassados não tiveram”, conta a secretária da Associação dos Nativos da Ilha do Mel (Animpo), Marinelli Campos Pedrussi. A Animpo foi uma das entidades responsáveis pela construção do protocolo, que contou com assessoria técnica da Terra de Direitos e do Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (Cepedis).
O documento foi construído de maneira coletiva ao longo do último ano, por meio de atividades formativas e de debates sobre de que forma os nativos de Nova Brasília querem ser consultados sobre medidas administrativas ou do setor privado que afetem seus modos de vida. Fizeram parte desse processo as comunidades tradicionais de Brasília, Farol, Fortaleza e Praia Grande, que reúnem cerca de 70 famílias que vivem da pesca artesanal – principalmente da pesca da tainha – e do turismo. [Continua após o vídeo.]
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Assessora jurídica que contribuiu na assessoria técnica aos nativos de Nova Brasília, Jaqueline Andrade avalia que o protocolo é lançado em um momento muito importante. “A comunidade vem enfrentando desafios de direito à moradia, cerceamento de gestão e autonomia sobre o território. Então esse protocolo serve como instrumento de diálogo com o Estado que administra a Ilha e todos os agentes externos que possam interferir na comunidade”, destaca.
Por conta da pandemia, as oficinas começaram de maneira virtual e possibilitaram o intercâmbio de experiência com comunidades tradicionais do Pará, de São Paulo e de Mato Grosso que já elaboraram seus protocolos de consulta. Com mais referências, as comunidades de Nova Brasília avançaram em uma proposta de documento que sistematiza parte da história e tradição da Ilha do Mel, e que estabelece medidas determinadas por elas para que o processo de consulta prévia seja efetivo.
Coordenadora do Programa Sul da Terra de Direitos, Naiara Bittencourt destaca que a própria construção do protocolo colabora para o processo de fortalecimento interno das comunidades. “Ao longo da construção do protocolo, por meio de processos dialógicos, foi expressivo o resgate e consolidação da memória coletiva das comunidades tradicionais, com identificação de passado e futuro comuns. É um processo que potencializa lideranças e o autorreconhecimento como sujeito coletivo de direitos”, diz.
Assessora jurídica e pesquisadora do Cepedis, Flávia Rossito também avalia a importância desse processo. “Para gente, enquanto assessora, é muito interessante e bonito ver o processo acontecendo, porque é a própria comunidade que constrói seu protocolo. A gente enquanto assessora jurídica que participa dessas oficinas traz mais a metodologia de diálogo, mas é a comunidade que define como será”, explica.
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Impactos da falta de consulta
As comunidades localizadas em Nova Brasília sofrem há anos pela pressão da especulação imobiliária, acentuada por um modelo de exploração turística de base não comunitária, e também pelas restrições impostas às famílias nativas por parte dos órgãos públicos. A ilha do Mel é um dos destinos turísticos mais importantes do Paraná e é uma área de preservação inserida dentro de um Parque Estadual administrado pelo Instituto Água e Terra (IAT).
Enquanto os nativos sofrem restrições nas áreas para ampliação das moradias – uma demanda urgente por conta do aumento das famílias – eles veem o território se transformar com a chegada de empresas e pousadas caras. Com o protocolo em mãos, as comunidades esperam que os órgãos garantam maior transparência e diálogo sobre a gestão do território.
“Muitas empresas vêm aqui, é cedido um local que chamam de reserva técnica para elas, e as famílias em si – as que moram aqui, que são tradicionais e que estão aqui há muitas gerações – não têm oportunidade de ter um lote, por exemplo, para seus filhos e netos. A gente não concorda, porque o território também é nosso”, ressalta Marinelli.
A Consulta Prévia, Livre e Informada, prevista na Convenção 169 da OIT, determina que povos e comunidades tradicionais, assim como indígenas e quilombolas, sejam previamente consultados sobre qualquer medida ou empreendimento que possa afetar o território ou o modo de vida desses grupos. Dessa forma, a instalação de empresas e mesmo a alteração de legislações que afetam as comunidades da Ilha deveria ser previamente discutida com elas.
“As comunidades têm o direito à consulta baseado nessas normas nacionais e internacionais, e essa é uma forma de defesa da cultura, do território, da vida, do modo de ser e viver dessas populações”, destaca Jaqueline Andrade.
O direito à consulta, no entanto, independe da existência de um protocolo. O protocolo, na verdade, é mais uma garantia de que esse processo de consulta acontecerá em conformidade com os acordos coletivos das comunidades.
Morador da comunidade tradicional de Nova Brasília, Hélio Ribeiro reforça a importância de garantir que a comunidade seja ouvida sobre as mudanças propostas para a Ilha. Exemplo disso foi a reforma de dois trapiches na Ilha, finalizadas este ano, que foram parte de medida compensatória de uma dragagem realizada no território.
“Hoje em dia é muito fácil chegar um engenheiro aqui e falar ‘tem que fazer esse trapiche’. O trapiche está lindo, mas não está adequado com a nossa realidade. A gente encosta um barco aí e não consegue mais deixar o barco amarrado dentro da comunidade”, fala. E completa: “A gente vive dentro das comunidades, a gente sabe qual é a realidade local”.
*Com informações da assessoria de comunicação da Terra de Direitos.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Lia Bianchini