A família Dilascio Detomi, acusada de manter o caseiro Geraldo Duarte, de 93 anos, em condição análoga à escravidão em São João del-Rei (MG), resiste em cumprir com suas obrigações trabalhistas mesmo após o resgate do empregado, na última semana.
O trabalhador idoso, que recebia um salário mínimo por mês, foi libertado em uma ação conjunta entre o Ministério do Trabalho, a Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho (MPT), a partir de uma denúncia anônima.
Durante 26 anos, Duarte nunca recolheu contribuição para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), não recebeu 13º nem tirou férias. Analfabeto, o caseiro teria uma dívida “de gratidão” com os Dilascio Detomi e dizia que não podia sair do sítio dos empregadores sob nenhuma hipótese.
A casa onde o trabalhador vivia com a esposa Maria Inês tinha goteiras, telhado quebrado, forro apodrecido e fiação em más condições. Quando chovia, eles ficavam molhados, no frio e no escuro, para evitar choques elétricos.
“O banheiro tinha a porta quebrada e não fechava, a descarga não funcionava há muitos anos, obrigando a família a usar baldes, e nem pia tinha para lavar as mãos”, informaram os auditores-fiscais da Superintendência Regional do Trabalho de Minas Gerais (SRTb/MG).
O ambiente contrasta com o conforto da casa ao lado, onde a família Dilascio Detomi se divertia nos finais de semana, com piscina, churrasqueira e área gourmet.
Os empregadores
A propriedade está registrada em nome de cinco pessoas da mesma família. Dois são médicos em São João del-Rei e frequentadores do sítio: os pediatras Cristiane Maria Dilascio Detomi e Carlos André Dilascio Detomi. Este último também atua como cirurgião e é coordenador do curso de Medicina do Centro Universitário Presidente Tancredo de Almeida Neves.
Além da mãe deles, Maria Luiza Dilascio Detomi, outros dois irmãos compõem a lista de empregadores: a pedagoga Adriane Maria Dilascio Detomi e Souza e o enfermeiro Marcos André Dilascio Detomi, conhecido como Marquinhos, administrador da empresa Plano de Assistência Médico Hospitalar Ltda (PLAMEDH).
Como ocorre nos casos de resgate, eles terão que pagar todos direitos subtraídos do trabalhador durante o período de serviço e responder pelo crime de submeter uma pessoa à condição análoga à escravidão.
Foram lavrados 12 autos de infração, e o MPT busca a reparação integral dos valores, além de uma compensação pelo dano moral individual.
Até o momento, os empregadores teriam pago cerca de R$ 19 mil, referentes aos últimos cinco anos de trabalho.
Segundo informações de bastidores obtidas pelo Brasil de Fato, até a última quarta-feira (17) a família teria aceitado pagar R$ 128 mil, que correspondem aos direitos subtraídos desde 1995.
Naquela noite, no entanto, o advogado – e primo – dos empregadores, Victor Tarôco, informou aos procuradores que não havia interesse em fazer acordo para além dos R$ 19 mil.
A reportagem ouviu o posicionamento da família a respeito do caso, por meio do advogado. A resposta encaminhada por Tarôco foi incluída na íntegra ao final desta matéria.
Mais de mil trabalhadores foram resgatados em condições degradantes este ano no Brasil, segundo a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT). Em 2020, Minas Gerais foi o estado com maior número de resgates, com 351 casos, seguido por Distrito Federal, Pará, Goiás e a Bahia.
Acusação de assédio
Além das condições precárias e dos descumprimentos trabalhistas, o caseiro Geraldo Duarte teria sofrido assédio por parte dos empregadores ao menos duas vezes desde o início das investigações.
No dia 11, os quatro irmãos Dilascio Detomi teriam ido com o advogado Victor Tarôco ao sítio e pressionado o trabalhador e a esposa a deixarem o imóvel imediatamente. Eles já estavam cientes da investigação, e insistiram que o casal dissesse de onde teria partido a denúncia.
Uma semana depois, no dia 17, Duarte teria sofrido novas pressões, desta vez por telefone. Os empregadores teriam tentado propor um acordo, mas o empregado não aceitou.
Essas informações, obtidas sob condição de anonimato, também foram apresentadas pelo Brasil de Fato ao advogado Victor Tarôco, que respondeu por meio de nota.
Outro lado
“A família lamenta a forma como a situação está sendo exposta, uma vez que não condiz com a realidade dos fatos, informando que os devidos esclarecimentos já estão sendo prestados aos órgãos competentes. Conforme contido nos autos de infração, o Sr. Geraldo sempre recebeu salário, além de receber um auxílio governamental (BPC), tendo ganhado da família 2 hectares de terra que já se encontravam em seu nome para que ele pudesse construir sua casa”, diz a nota enviada por Tarôco.
“O Sr. Geraldo ainda pediu para ficar no sítio até a data de hoje [22/11], conforme Ata dos Ficais do Trabalho, para que ele pudesse retirar do local suas cinco vacas, as diversas galinhas que nem soube precisar a quantidade, sua picadeira de trato para os animais, além dos diversos demais objetos que lá possuía”, acrescentam os familiares, por meio do advogado.
Os empregadores ressaltam que sempre garantiram auxílio assistencial e médico ao trabalhador, que nunca havia reclamado à família sobre sua situação.
“Cabe ainda esclarecer que o Sr. Geraldo sempre manteve em sua companhia no local quatro filhos maiores de idade que, identicamente, nunca reclamaram de nada, vindo a realizar a inditosa denuncia quando tiveram ciência de que o imóvel seria vendido”, completa a nota.
“Esclarecem ainda que as imagens que estão sendo divulgadas não correspondem ao imóvel que era de fato utilizado pelo Sr. Geraldo, e que já estava desocupado quando da chegada da fiscalização, tanto é que o mesmo até hoje permanece no local.”
Essa informação vai de encontro ao que foi apurado pelo Brasil de Fato junto aos órgãos competentes. Geraldo Duarte teria sido levado à casa da filha, onde aguarda o pagamento de seus direitos por parte dos empregadores.
Edição: Leandro Melito