ENTREVISTA

“Nome dos negros no Brasil é resistência”, afirma ialorixá Iyá Vera Soares

No Brasil, 77% das vítimas de homicídio são negras. Atrás dos números estão séculos de escravidão e racismo

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Para a ialorixá, Bolsonaro “é tudo aquilo que o Brasil não precisa” - Foto: Alex Garcia

Iyá Vera Soares é uma ialorixá. É ela quem consulta os orixás, os deuses da religião iorubá, representados pelo fogo, a chuva, o vento e outros elementos da natureza. É a ialorixá do Centro Memorial de Matriz Africana 13 de Agosto, de Porto Alegre. Integra também o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsanpotma).

Ela encarna a “matripotência”, o papel da matriarca, da mãe que ensina, acolhe, cura, alimenta e guerreia. Lembrando o Dia da Consciência Negra, Iyá Vera fala sobre o racismo que se abate sobre os africanos, imigrantes a contragosto, que aqui chegaram escravizados para trabalhar até morrer, e da luta diária contra o preconceito.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Nos Estados Unidos do século 19, o escravo libertado recebia 18 hectares e uma mula para arar a terra. No Brasil, não recebia nada. Acha que esse ponto de partida teve influência importante na situação atual em uma e outra sociedade?

Iyá Vera - Quando a compensação nos Estados Unidos dá terra, já dá uma qualidade de vida diferenciada. No Brasil, o povo oriundo do continente africano foi tratado como animal. Nunca teve um pedaço de terra. O processo que mais demorou para terminar com a escravidão foi o do Brasil, o mais violento de todos.


“Voto não tem preço, tem consequências”, diz Iyá Vera / Foto: Leonardo Contursi/CMPA

BdF RS - Jair Bolsonaro, mais de uma vez, já menosprezou negros e quilombolas. Como é ser negro (a) em um país no qual o presidente despreza ou tenta ridicularizar a população afrodescendente?  

Iyá Vera - Ser negro no Brasil é ser resistente. Nosso nome é resistência. Resistir na cultura, que vem do continente africano, trazida através dos navios negreiros. Bolsonaro repete o olhar do colonizador. É tudo aquilo que o Brasil não precisa, que desagrega e descrimina.

BdF RS - Dois pontos fortes na difusão do legado negro no Brasil são a cultura e as religiões de matriz africana. Em que medida a força destes dois elementos ajuda ou pode ajudar na transformação do quadro atual?

Iyá Vera - A cultura é a força que nos mantém vivos. Não importa se o nome é Jesus ou Olodumarê. Não importa se é Nossa Senhora Aparecida ou Oxum porque o sincretismo fez essa diversidade. A natureza é o nosso grande altar. As águas, as terras, as matas, todo o natural, nós mesmos, somos o Ori, que habita dentro de cada um, o Orixá, o Inquice, o Vodum.

Cultura é a força que nos mantém vivos

BdF RS - Como interpreta a rejeição de boa parte da sociedade brasileira às ações afirmativas, sobretudo às cotas para negros e pardos nas universidades?

Iyá Vera - Esse racismo separa, divide, não aproveita os valores civilizatórios. É uma discriminação da sociedade branca, racista e elitista que coloca esses povos que construíram esse país na base da pirâmide social sempre.

BdF RS - O Brasil nunca teve um presidente negro, todos os ministros do Supremo Tribunal Federal são brancos e apenas 77 dos 1.790 políticos eleitos em 2018 para os executivos ou legislativos estaduais ou nacional se declararam negros. No entanto, 50,7% dos brasileiros e brasileiras são negros (as) ou pardos (as). O que fazer para mudar isto?

Iyá Vera - Que pena que levamos alguns séculos para entender que temos que estar brigando pela política. Voto não tem preço, tem consequências. E essas consequências estão colocadas hoje neste governo de retrocesso, de discriminação.

Viver sem esperança é morrer antes

BdF RS - Você tem esperança de ver ainda um Brasil menos preconceituoso, racista e desigual?

Iyá Vera - Viver sem esperança é morrer antes.  Talvez eu não esteja mais aqui, mas os meus sucessores, meus netos, meus filhos, meus bisnetos, hoje já tataraneto, possam levar o fruto da luta desta que vos fala. Porque enquanto houver luta nós vamos lutar e não vamos chorar o luto. Então a esperança é essa: lutar, lutar, lutar sempre. Os nossos ancestrais nos deixaram esse legado.


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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko