Para o mundo do direito brasileiro, convencionou-se classificar como rábula Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), negro alforriado que começou a estudar Direito como autodidata aos 17 anos e, ao longo de sua vida, conseguiu libertar centenas de escravos por via judicial.
De acordo com os dicionários contemporâneos, rábula pode ser tanto um "advogado pouco culto, incompetente, pilantra", quanto aquele que "exerce a advocacia sem ser qualificado".
Houve até um evento promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2015 para reconhecer Luiz Gama postumamente como advogado, reparando essa injustiça histórica.
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Para o historiador Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha, essa ideia de chamá-lo de rábula surgiu anos após a morte dele como tentativa de desmerecê-lo, possivelmente apoiada por uma narrativa racista.
Em vida — e Lima comprova com documentos da época —, Gama era sempre chamado de advogado. Nem seus inimigos e detratores deixavam de reconhecê-lo como tal.
Isso porque, na época, o exercício da advocacia não era restrito apenas aos bacharéis em Direito, mas também àqueles que tivessem alguma provisão, temporária ou definitiva, que reconhecesse a função por notório saber.
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"Juiz de comarca, presidente de tribunal, ministro ou até mesmo o imperador, eles podiam passar uma carta, um ato oficial, dizendo que Fulano de Tal é advogado desta circunscrição, desta comarca, deste foro, por tempo indeterminado, de forma vitalícia ou por tempo determinado", explica o pesquisador.
"Havia uma demanda gigantesca e poucos formados em Direito. E a solução para azeitar a máquina da administração burocrática foi essa: deixar que cada local decidisse a nomeação ou não de advogados."
"O maior jurista da história do Brasil"
Ao longo de pelo menos dez anos vasculhando arquivos públicos em busca de reconstituir obsessivamente a trajetória de Gama, Lima encontrou documentos assim. No caso do ex-escravo, contudo, as provisões eram sempre limitadas — por seis meses, por exemplo.
"Eram autorizações precárias. Sempre foram provisórias. Ele não teve facilidade em ter tais licenças", conta. "Ele fez esses pedidos em tempos e espaços distintos e sempre conseguiu. Não há registros de negativas."
A mais antiga dessas autorizações foi expedida por um juiz de São Paulo em 23 de dezembro de 1869, acatando pedido feito três dias antes.
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Para Lima, comprovar que Gama era, sim, um advogado, é contribuir para reescrever a biografia desse autodidata que conseguiu, por via judicial, libertar centenas de escravos brasileiros antes da Lei Áurea.
"Gama foi o maior jurista da história do Brasil, um grande gênio", comenta. Nas pesquisas de Lima, advogado formado pela Universidade Federal da Bahia e doutorando em História do Direito em Frankfurt, já foram localizados diversos processos então desconhecidos advogados por Gama.
Lima reuniu 750 documentos de autoria de Gama, mais de 80% deles ainda inéditos, e está publicando o material em uma coleção de 11 livros — os dois primeiros, Democracia e Liberdade, foram lançados em julho. Estão para sair Direito e Crime. No total, Lima escreveu mais de 7 mil notas de rodapé contextualizando o material.
"Resgate fundamen tal"
Esse trabalho vem rendendo elogios de gente do meio. Para o jurista Camilo Onoda Caldas, diretor do Instituto Luiz Gama, o projeto de Lima "é fundamental para resgatar todas as dimensões" do advogado dos escravos e "posicioná-lo como um dos personagens mais importantes de nossa história, preocupado com a construção de um mundo mais justo".
"Trata-se de um resgate fundamental", diz Caldas. "Gama não foi apenas um ativista pela abolição e pelos direitos humanos, mas um intelectual destacado em diversas áreas, como o Direito e a Literatura."
Organizadora de livros como Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, 1864-1880, a pesquisadora Ligia Fonseca Ferreira, professora de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que, ao "rastrear, nos arquivos, a participação de Gama em temas como liberdade e libertação dos escravizados", comprova-se sua "concepção [sobre os temas], à luz de uma interpretação de leis totalmente original".
Ela diz que esse tipo de trabalho coloca "Luiz Gama no lugar que ele merece" e enaltece a tarefa "de esforço hercúleo" empreendida por Lima. "Ele trabalhou como um detetive ao longo de vários anos nessas pesquisas e realmente levantou fontes e aspectos da obra de Luiz Gama que ampliam o que conhecemos", argumenta a professora.
Página a página, dia após dia
Para conseguir levantar tantos documentos, Lima desenvolveu um método próprio e quase infalível. Ele identificou o primeiro texto de Gama publicado pela imprensa quando o ex-escravo tinha apenas 19 anos. Fez, então, uma linha do tempo e transformou em planilha.
"Eu queria rastreá-lo todos os dias ao longo de sua vida. Consegui uma tabela com 2,5 mil entradas, com base nesses documentos. Tem mês em que eu sei onde ele estava, o que ele estava fazendo, em todos os dias", comenta o pesquisador.
Para isso, precisou entender a lógica dos arquivos do século 19 e como eles foram reorganizados artificialmente ao longo do século 20. E uma curiosidade ajuda a compreender por que motivo pesquisadores anteriores não conseguiram encontrar tantos documentos inéditos assim.
"As petições do Gama, os processos, muitos não têm seu nome na capa. O pessoal [na hora de catalogar] mexe na capa. Mas na página um não está o nome de Luiz Gama, na página dois também não. Os processos da época eram uma bricolagem, uma costura de petições, organizadas pelos escrivães da época com seus critérios próprios", conta.
"Já no século 20, os arquivistas catalogaram com base no que está na capa dessas pastas", explica Lima, que em suas pesquisas analisava página a página de todos os documentos disponíveis nos arquivos da época, dia após dia.