Mais de 80% dos jovens que frequentam o ensino médio e fundamental no Brasil o fazem em escolas públicas. Pois bem, é para estes que se aprovou, logo após o golpe de estado de 2016, a contra-reforma do ensino médio e, sob o bolsonarismo, as novas Bases Curriculares Comuns Nacionais e a política de “apaga a memória histórica” do livro didático oficial.
A implantação progressiva está prevista a partir de 2022 até 2024. Este pequeno artigo busca trazer alguns elementos que justificam a demanda de adiar esta implantação, pois a lei foi imposta de cima para baixo sem efetivo debate democrático e seus efeitos perversos. Tal como está proposto o “Novo ensino médio” configura uma traição às gerações de jovens que estiverem a ele submetidas por condená-las a não terem as ferramentas básicas de conhecimento para a cidadania política e econômica.
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A primeira supõe bases de conhecimentos que facultem aos jovens e em sua vida adulta a participação ativa como sujeitos autônomos na vida social, política e cultural e, a segunda, para que possam se inserir de forma qualificada no mundo da produção e alcançar a autonomia financeira. Na realidade, o “novo” esconde seu caráter anacrônico, regressivo que anula o que se buscou no processo de redemocratização do país e os avanços da Constituição de 1988
A Constituição de 1988, em seu capítulo da ordem social e econômica, buscou alterar um processo de apartheid social que desde a escravidão reiterava a “casa grande e senzala”. A adoção da política econômica ultraconservadora do golpe de Estado de 2016, radicalizada no governo Bolsonaro sob uma orientação ideológica neofascista, retoma e amplia o apartheid social.
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O “novo ensino médio” é parte constitutiva da manutenção e aprofundamento do apartheid social e consolida as contra-reformas que rasgam a Constituição de 1988 mediante a política de liquidação do patrimônio comum dos brasileiros; o desmonte da esfera pública e de uma a uma das políticas sociais e de inclusão para diminuição da desigualdade social, da fome e da pobreza; e o aniquilamento da pesquisa científica no curto prazo pelo corte absurdo do financiamento e, em longo prazo, pelo desmonte da educação básica e universidades públicas.
O que está em curso no Brasil lembra o que narra o prêmio Nobel de medicina de 2001 Paul Nurse no livro O que é a vida, sobre a sentença do juiz do tribunal que mandou para a guilhotina, em maio de 1794, o fundador da química moderna Antoine Lavoisier sob o argumento: “República não precisa de sábios nem de químicos”.
A guilhotina aqui é a inviabilização da pesquisa científica, da cultura e da educação pública. Uma condenação funcional à manutenção do conservadorismo, autoritarismo e moralismo, armas da perpetuação do privilégio de uma minoria. Com efeito, cada dia mais o Brasil se configura como uma sociedade de duas centenas de bilionários, cada vez mais ricos, um encolhimento veloz da classe média e a expansão da pobreza e da miséria que perfaz mais de um terço dos brasileiros.
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Nada mais preciso do que significa o “Novo Ensino Médio” do que indica o título do artigo de Tereza Campello e Sandra Brandão que mostra o que de fato significa a mudança do Programa Bolsa Família por “Auxílio Família:” O Auxílio Família não é um novo Bolsa Família. É um “pastel de vento” (Carta Capital, 28/10/2021). Pois bem, o que o “O novo ensino médio” oferece à juventude brasileira “é um pastel de vento”.
Pastel de vento porque liquida como o sentido de educação básica a qual supõe um equilíbrio entre as disciplinas que permitem entender as leis da natureza (Química, física, biologia) e as que permitem entender e atuar nas relações sociais (história, sociologia, filosofia, literatura, arte, etc. O que se prioriza são conhecimentos instrumentais, mas que sem o que é básico instrumentaliza “o vento”. Liquida-se o esforço de décadas para superar, pelo ensino médio integrado, a dualidade estrutural (educação geral para a “elite” e adestramento profissional para o povo).
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E o que é o “novo”? O fatiamento do ensino médio em cinco “Itinerários formativos (Linguagens e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias, Ciências da natureza e suas tecnologias, Ciências humanas e suas tecnologias e Formação profissional) sendo que “as escolas devem oferecer aos alunos pelo menos um “itinerário formativo. As opções deverão ser organizadas por meio da oferta de diferentes arranjos”.
Aqui a opção da oferta de diferentes arranjos, que no limite podem ser tantos quantas as escolas de ensino médio do Brasil, tira qualquer dúvida de que o “Novo Ensino Médio” liquida o direito universal à formação básica e, portanto, de uma mesma qualidade para os jovens. Assim, o “Novo Ensino Médio” pode assumir, na prática, os vários sentidos de arranjo: acordo, arrumação, cambalacho, conchavo, mamata, etc. Na condição objetiva das escolas públicas, cada vez mais sucateadas por corte de verbas e a possibilidade que a lei faculta de parcerias com o setor privado, tenderá induzir que o arranjo se dê pelo itinerário da formação profissional.
A Secretaria de Estado da Educação do Rio de Janeiro (Sedec) mostra que esta pode ser a tendência da oferta de “Novo Ensino Médio”. Em 15.10.2021 celebrou um contrato com o Serviço de Aprendizagens Industrial (Senai) de 24.374.058,25 (vinte quatro milhões, trezentos e setenta e quatro mil, cinquenta e oito reais e vinte e cinco centavos) com vigência até 31 de dezembro de 2022 para ofertar ensino médio “integrado”.
Pela negação do conhecimento básico mediante um coquetel de arranjos fragmentados que esterilizam as ciências básicas (da natureza, humanas e sociais) o “Novo Ensino Médio” oferece à maioria dos jovens brasileiros “um pastel de vento”. Uma dupla traição: aos jovens porque lhes barra o futuro e à nação, porque se anula a possibilidade de formar milhares de novos cientistas. A luta pelo adiamento da sua implantação e, a partir de 2022 com forças políticas que substituam a prioridade das armas pela ciência e educação, a sua revogação constitui-se tarefa ética e política de todas as forças democráticas.
Uma tarefa que, de imediato, cabe a cada dirigente e professor e técnicos das instituições educacionais numa dupla direção: resistir por dentro organizadamente e mostrar aos jovens e seus pais ou responsáveis o sentido desta traição e, por meio dos sindicatos, partidos políticos, instituições cientificas e movimentos sociais e culturais conseguir apoio jurídico para o adiamento.
*Gaudêncio Frigotto é filósofo e pedagogo, mestre e doutor em Educação. Professor titular, aposentado, na Universidade Federal Fluminense e, atualmente, professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo