Entre o início deste ano e o mês de agosto, o número de pessoas que usaram suas casas como garantia para pegar empréstimos subiu 46% no Brasil, segundo dados da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip).
Frente à crise, a modalidade, que permite empréstimos mais altos, com juros menores e prazos maiores, atrai cada vez mais a população. Em um país que, historicamente, enxerga bens imóveis como símbolo de estabilidade, o aumento na procura esconde uma mudança cultural significativa.
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Colocar em jogo a parte do patrimônio que sempre foi considerada a mais segura, muitas vezes, é o último recurso de cidadãos e cidadãs.
Já há indicativos de empresas de crédito mostrando que uma parte importante de quem escolhe essa opção, chamada de Home Equity, busca quitar dívidas que já existem.
De acordo com dados repassados pela empresa Creditas fintech para reportagem do Jornal Extra, no Rio de Janeiro a alta na demanda pela modalidade foi de 118%. O índice de pessoas que buscavam o dinheiro para pagar dívidas é de 25%.
Não é surpresa que o movimento ascendente do Home Equity aconteça em um momento de superenvidivamento da população brasileira.
Segundo informações do Banco Central, o endividamento dos brasileiros e brasileiras, em junho, chegou a comprometer mais de 55% da renda anual.
Números da Confederação Nacional do Comércio mostram que, em setembro, o total de pessoas com dívidas para quitar chegou a 74%. Mais de 25% estavam com atraso nas parcelas. Isso inclui cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, crédito consignado, empréstimo pessoal, prestação de carro e de casa.
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A economista e professora da Universidade Federal do ABC, Beatriz Mioto, afirma que o cenário é mais um elemento da situação econômica negativa do Brasil.
"Essa ideia de uma dívida sobre outra dívida - você se endivida para pagar uma dívida que já existia - mostra a profundidade dessa crise, que todo mundo insiste em dizer que é da pandemia somente, mas não é. Ela vem de antes", avalia.
Beatriz pondera que é preciso olhar a realidade dos empréstimos com imóveis como garantia levando em consideração a segmentação da sociedade brasileira.
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Uma parte considerável da população não tem moradia própria e quitada. Isso já limita a abrangência da modalidade. O risco está presente na classe média que conseguiu acesso a esse tipo de bem e que já está sentindo a crise na pele há tempos.
Daniel Negreiros Conceição, economista da Universidade federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também percebe relação entre a crise e o aumento na tomada de crédito.
O banco, que é uma estatal e deveria ser um auxílio para o cidadão, me tratou como se fosse um banco privado normal.
"O que a gente tem, neste momento, é que como as pessoas e as empresas estão desesperadas, viram suas rendas e receitas colapsarem, elas estão atrás de qualquer forma de se manter respirando. O crédito passa a ser uma alternativa. O problema é que não é uma solução sustentável, nem para elas e muito menos para a economia em geral", afirma.
Como não há vislumbre de melhora consistente na renda das famílias e na conjuntura do país, os empréstimos, oferecem ainda mais riscos. Silvio Saldanha, presidente da Associação dos Mutuários e Moradores de Minas Gerais (AMM), pontua que em um cenário econômico desequilibrado como o do Brasil e sem rigidez absoluta no planejamento das família, a modalidade é "perigosíssima".
Ele explica que esse tipo de operação é amparada pela mesma lei que trata da alienação fiduciária. "Significa que o banco empresta o dinheiro, pega a garantia e, se você atrasar três ou mais parcelas, o banco pode executar essa dívida, colocar o imóvel em leilão. Se não houver comprador esse imóvel fica em definitivo para o banco. Você perde o imóvel e perde o que pagou".
Drama real
Justamente o que parecia solução para quitar uma dívida levou o vendedor André Arlindo Santana a pegar um empréstimo usando a casa em que morava como garantia, no ano de 2014. Ele foi atraído pelas condições dos juros e realizou a operação pela Caixa Econômica Federal.
Segundo André, antes mesmo de conseguir o empréstimo, os custos burocráticos de cartório praticamente já tinham anulado a vantagem das taxas baixas, "É uma taxa que é um pouco ilusória", afirma.
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O vendedor conta que não recebeu nenhuma orientação sobre o empréstimo. "O banco, que é uma estatal e deveria ser um auxílio para o cidadão, me tratou como se fosse um banco privado normal. O atendimento foi para vender o produto mesmo. Eu, como vendedor, sempre expliquei aos meus clientes que era preciso fazer a conta certa do que se consegue pagar. Você não pode ultrapassar 30% da renda liquida. Hora nenhuma eu ouvi isso do banco".
André conseguiu pagar o empréstimo em dia até o ano passado, mas com a pandemia perdeu o emprego e ficou sem condições de arcar com a dívida, "A Caixa, sem cerimônia nenhuma, retomou o imóvel. Ela não me dá opção de negociação e eu tive que entrar na justiça para conseguir mostrar para eles porque eu não consegui mais pagar. Eu fiz o empréstimo em 2014, paguei até outubro de 2020 e é como se não tivesse pagado nada".
É a agenda da política econômica mesmo liberar esse tipo de crédito.
Com essa experiência, o vendedor ressalta os riscos da modalidade. "A situação do brasileiro é histórica. Realmente é difícil um trabalhador conseguir fazer um pé de meia, conseguir manter um padrão de vida e melhora-lo. Para fazer melhorias a gente tem que ser esforçar muito mais e se aventurar com alguma ajuda financeira, que foi o meu caso, mas essa modalidade eu recomendo que as pessoas evitem se não tiverem certeza de que vão ter condições de pagar. Os bancos dão as costas para a gente", alerta.
A família do empresário Renan Queiroz da Costa viveu situação semelhante. O pai de Renan, Linoberques Luiz da Costa, era proprietário de uma distribuidora de bebidas em Uberlândia (MG).
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Após 26 anos de trabalho, a distribuidora que atuava com ele resolveu encerrar o contrato. Com o patrimônio dividido entre três sócios, a família decidiu buscar o empréstimo para manter o negócio operando e não demitir a equipe de mais de 60 pessoas.
Renan conta que também não recebeu nenhum tipo de orientação por parte do banco, "O que eu tenho para falar para quem precisa de empréstimo é que faça muito bem orientado, não faça no desespero. Principalmente colocando um bem de moradia. No nosso caso, foi a pior experiência que eu já passei na vida. Mesmo com o empréstimo meu pai teve falência da empresa e nós não conseguimos pagar as parcelas".
É mais um instrumento de endividamento da população para que os bancos encontrem outras formas de ganhar com essas atividades.
A situação teve consequências graves para a saúde do senhor Linoberques. "A casa do meu pai foi a leilão. Por conta disso, ele teve um AVC há um ano. Atingiu 75% do cérebro, ele perdeu a fala, teve paralisado o lado direito do corpo totalmente e ficou uma semana na UTI. Tudo isso devido a um empréstimo. Foi uma experiência horrível. Perder seu bem de moradia que você batalhou, que não foi ganhado, foi lutado. O banco te tomar isso, é muita covardia".
Endividamento como política
O economista Carlos Alberto Penha Filho, professor de economia na Universidade São Judas, explica que o crescimento dos empréstimos com imóvel como garantia tem incentivo do Banco Central.
"Uma das prioridade do Banco Central é alavancar esse tipo de operação. É a agenda da política econômica mesmo liberar esse tipo de crédito. Em uma economia brasileira, fragilizada, com uma série de deficiências estruturais, isso pode trazer um risco enorme para as famílias", ressalta.
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Segundo ele, "essa é uma forma de estímulo econômico via dívida. É algo que não se passa só no Brasil e acaba envolvendo como funciona o sistema capitalista atualmente. É uma tentativa de alargar ainda mais a capacidade de endividamento das famílias, correndo o risco de, a qualquer mudança econômica, você ter essas famílias despejadas e o imóvel ir para a mão dos bancos. Porque para o banco é muito seguro a partir do momento que você garante seu imóvel no empréstimo".
Daniel Negreiros Conceição, da UFRJ vê o crescimento do Home Equity com preocupação.
"O que estamos vendo é mais um instrumento de endividamento da população e das empresas para que os bancos encontrem outras formas de ganhar com essas atividades. Esse é o grande ponto. O banco não está preocupado com o bem estar do sujeito que está se endividando".
Para Beatriz Mioto, é preciso manter em mente que o endividamento é um aspecto de controle social muito forte. "O que de fato muda estruturalmente uma economia é investimento de longo prazo, crédito de outra natureza. Não vai ser esse crédito que vai conseguir tirar o Brasil do buraco. Não é uma falácia absoluta, a gente viu isso em outros momentos da história, o crédito é fundamental para ampliar o horizonte de consumo e produção, mas ele tem um fôlego muito curto".
Aos trabalhadores e trabalhadoras que consideram pegar um empréstimo, Silvio Saldanha, da AMM, alerta: "não é o momento de inflar o orçamento. Quitou um compromisso? Pode até começar outro, mas não inflar o orçamento se você não tiver bom planejamento e organização na ponta do lápis. O saldo fica lindo, mas depois para pagar com o seu imóvel - cada um sabe quanto custou cada tijolo, sonho e sacrifício - entregar por três parcelas em aberto é muito doloroso", conclui.
Edição: Douglas Matos