Para o pensador e escritor Daniel Munduruku, a vida capitalista não é a única possível, existe um outro caminho enraizado nos saberes indígenas: "Nós formamos mesmo a última fronteira de resistência que o capitalismo brasileiro ainda não conseguiu superar".
Ao lado de nomes como Aílton Krenak, Munduruku é hoje um dos grandes pensadores e difusores da cultura indígena no Brasil. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele falou sobre a pedagogia do Bem Viver, o potencial de transformação que enxerga na juventude, e sobre a importância de, através da literatura, desfazer estereótipos errôneos sobre os povos indígenas.
"Escrevo por entender que é a minha maneira de fazer política, minha maneira de ajudar o Brasil a pensar o Brasil que ele não conhece, o Brasil que foi sempre ocupado nas narrativas hegemônicas".
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"Se a gente oferece para as crianças outras narrativas, elas vão compondo essas narrativas até se sentirem plenas, completas e nesse sentido a gente pode imaginar que a literatura tem um papel militante, um papel de permitir que as crianças possam aprender outras visões de mundo, que elas possam se humanizar e possam crescer como pessoa, como pessoas mais tolerantes, mais respeitosas, com a diversidade", completa.
Doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP), o escritor tem mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior, a maioria voltada para o público infanto-juvenil - entre eles, o renomado Histórias de Índio. Em 2021, ele comemora 25 anos de carreira e disputa uma vaga na Academia Brasileira de Letras.
Daniel também é diretor do Instituto Uk´a, uma casa de saberes ancestrais formada para garantir que a história e a cultura indígena sejam incorporadas ao currículo escolar brasileiro, conforme prevê a Lei 11.645/08.
"Eu acredito muito na possibilidade de o nosso processo pedagógico, processo educacional brasileiro, criar um olhar diferenciado. E que seja uma pedagogia nascida da nossa própria terra, da nossa própria origem".
A entrevista vai ao ar no programa Bem Viver, veiculado na Rádio Brasil de Fato e com versão também para televisão na Rede TVT e em outras emissoras ao redor país.
Confira a entrevista na íntegra:
Basil de Fato - Daniel, você já disse em outras oportunidade que considera os povos indígenas, hoje no Brasil, a última fronteira a ser superada pelo sistema capitalista. O que você quer dizer com essa afirmação?
Quando eu afirmo isso, eu levo em consideração o fato de que no Brasil nunca houve nenhum socialismo. É tudo balela, no sentido narrativo. Existe sim o desejo, o ideal, a utopia, mas de fato mesmo nunca houve socialismo, comunismo ou experimentação política que seja mais radical.
Os únicos que fazem isso sem precisar fazer teoria são as populações originárias do Brasil, que já tem toda uma uma pedagogia de transmissão de saberes com essa ideia da repartição, do coletivismo, de trabalhar em conjunto, de manter o território como um bem comum e nunca como um bem individual, que sai um pouco dessa ideia de propriedade privada e tudo mais, que é a grande mola propulsora do capitalismo.
Portanto, são sociedades que questionam o status capitalista que nós vivemos. São sociedades que estão ali gritando e dizendo que outro modo de vida é possível. ‘É assim que nós queremos viver, acreditamos nisso, e nós temos direito a isso’. E é claro que sempre que a gente faz isso, que a gente defende esses princípios, a gente está brigando frontalmente, está criando uma resistência, uma fronteira para que o capitalismo não avance.
As pessoas normalmente acham que ao fazer isso nós estamos fazendo porque nós somos selvagens, né? Ou porque, nós somos preguiçosos e não queremos trabalhar. As pessoas precisam entender que isso é uma escolha, uma opção. E que a vida capitalista não é única. Existem outras maneiras. Então, nós formamos mesmo a última fronteira de resistência que o capitalismo brasileiro ainda não conseguiu superar.
Porque, em outros lugares do mundo, essa barreira já foi vencida, inclusive criando essa ideia cínica, que está na boca do atual presidente, que é preciso integrar os índios à sociedade brasileira, para que eles usufruam de tudo isso, de todos os benefícios do capitalismo.
Isso já foi experimentado em outros lugares, mesmo nos Estados Unidos, que costumam ser o exemplo dessa gente neoliberal, a gente vê que lá se criou sim uma série de experiências de inserção ao mundo capitalista e os próprios indígenas hoje estão frustrados, decepcionados com isso e estão querendo voltar atrás, voltar a sua vida mais coletiva, foram percebendo que perderam a sua essência.
No Brasil, isso precisa ser conversado. O Brasil é um país muito diverso, o Brasil ainda possui 305 povos e isso é uma diversidade muito grande. E esses 305 povos estão em diferentes momentos de contato com a sociedade brasileira. Então não se pode generalizar, que é o que o termo índio faz, né? Generaliza como se todos nós dependêssemos da mesma política.
Então, eu penso mesmo que dentro dessa perspectiva de pensamento, de filosofia, os povos indígenas ainda são a última reserva moral dentro desse nosso sistema. Agora, o que vai ser daqui pra frente? A gente nunca sabe. Esperamos que os próprios indígenas possam responder e ter soluções fidedignas para isso tudo
Daniel, agora vamos falar da sua literatura. Por que você escreve?
Então, costumo dizer que eu escrevo por dois motivos. Um, eu escrevo por egoísmo. Na verdade, escrevo para não esquecer as coisas que eu vivi, a minha memória de vida, é uma forma de mantê-la viva dentro de mim mesmo. Portanto, escrever é um ato de egoísmo nesse sentido. O segundo motivo é por engajamento.
Escrevo por entender que é a minha maneira de fazer política, minha maneira de ajudar o Brasil a pensar o Brasil que ele não conhece, o Brasil que foi sempre ocupado nas narrativas hegemônicas
Dessa maneira eu imagino estar contribuindo para que a sociedade brasileira volte um pouco sobre si mesma, se reconheça, e possa de fato seguir adiante em um caminho que eu acredito ser o caminho mais adequado para o Brasil, que é o caminho da felicidade. E a felicidade do Brasil está na sua diversidade. Só que nós aprendemos a não gostar da nossa diversidade. Aprendemos a não gostar do nosso passado, da nossa memória E a minha ideia é sempre essa, de educar o povo brasileiro pra esse Brasil que ele deixou de gostar.
Você já citou em outras oportunidades que os povos indígenas veem o mundo de uma forma circular, e que o futuro não passa de uma ficção, algo que nos distrai. O que é o Bem Viver e quais são os princípios dessa pedagogia?
Esse conceito do Bem viver entrou recentemente no radar das pessoas da cidade. Mas os povos indígenas já vivem por isso há muito tempo. E chamam isso por outros nomes. O povo Guarani vai ter um jeito, os povos da América Latina vão ter outro.. É uma forma de dizer que nós temos um jeito próprio de olhar para o mundo, e dar respostas para esses dramas da existência. Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? O que que eu faço desse mundo?
São as perguntas que estão presentes em todos os humanos, em todos os lugares do planeta. E cada povo procura dar uma resposta original pra isso. Uma resposta que contemple a sua compreensão de mundo, a sua compreensão de realidade.
No caso dos povos originários, se tratando de Brasil, nós temos uma dimensão de tempo que é muito diferente da dimensão do tempo ocidental. O tempo ocidental olha para o tempo e sempre o define como um processo constante de andar para frente, sendo constantemente jogado para dar soluções para um tempo que ainda vem.
Portanto, ele não vive o presente ou o agora, ele está em busca de um futuro e esse futuro tem muito a ver com acúmulo de bens, com riqueza, com produção e tudo mais.
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As populações indígenas sempre se consideraram partes da terra. Portanto, são sociedades que pensam o tempo a partir de uma lógica de olhar o passado e viver o presente. O passado é a memória que nos diz quem nós somos, de onde viemos e o que que a gente faz nesse mundo. O presente é para viver essas respostas, essas indagações, em uma permanente transmissão de saberes.
É isso que nós chamamos de pedagogia, a pedagogia do Bem Viver. Ou seja, é o caminho que a gente traça para a gente viver bem esse mundo. Portanto, as sociedades indígenas são a sociedade do coletivo, são sociedades da abundância, são sociedades da igualdade, porque não se cria, não se educa os filhos para disputar uns contra os outros. Mas educa os filhos para que eles colaborem uns com os outros e todo mundo tenha o suficiente pra viver e viver bem.
Nesta mesma lógica do Bem Viver, gostaria que a gente caminhasse agora no campo da educação indígena, do próprio exemplo que você tem com o Instituto UKA. Na literatura, sua escrita é mais voltada para o público infanto-juvenil. Você enxerga aí um potencial revolucionário para romper com as amarras deste ocidentalismo hegemônico?
Veja bem, na sociedade ocidental a gente sempre aprendeu a desprezar ou a rejeitar os povos indígenas. Isso vem de uma narrativa de 500 anos atrás. Isso não é coisa recente. Os povos indígenas sempre foram deixados à margem e nunca tiveram condições de contar a própria história, ou contar a sua versão da história. Isso só vem acontecer mais recentemente. É nos últimos trinta anos que os indígenas passam a falar sobre essa filosofia do Bem Viver, sobre seu jeito de olhar o mundo.
As nossas crianças das gerações passadas perderam muito a oportunidade de aprender outro jeito de olhar para a realidade. As nossas gerações mais recentes, mesmo as que foram educadas a partir dos estereótipos e preconceitos, a elas foi delegado também o direito de conhecer a diversidade indígena, conhecer o jeito indígena de se posicionar no mundo, de dar respostas a esses dramas da existência, porque afinal de contas, é disso que se trata, né? Nós queremos viver bem e queremos morrer bem, né?
A pedagogia ocidental é que diz que nós precisamos ser alguém na vida para poder se realizar. No entanto, quando a gente se confronta com mercado de trabalho, a gente vai sendo consumido pelo trabalho, e a gente não consegue viver com dignidade.
Seja porque a gente é explorado, seja porque existe uma burguesia que está o tempo inteiro dominando, seja porque não tem mesmo trabalho pra todo mundo. O tempo passa, quando a gente chega na velhice, a gente olha pra trás e descobre que a gente não viveu absolutamente nada. A vida da gente foi inútil. E isso tudo dentro de um sistema econômico que vai moendo a dignidade e destruindo as pessoas.
O que eu venho mostrando ou querendo mostrar através dos meus escritos é como fazer essa ponte entre o que os indígenas sabem e o que a sociedade brasileira perdeu ao rejeitar os saberes indígenas
Porque foram o tempo inteiro sendo massificado por idéias equivocadas, por preconceitos, por atitudes racistas. Não que elas sejam naturalmente assim, mas aprenderam a ser por um sistema pedagógico que foi rejeitando essas ideias que poderiam nos ajudar a pensar melhor a nossa humanidade.
Então, a ideia da minha literatura é tentar fazer essa aproximação. E aonde é que a gente se aproxima? A gente cria essa ponte na infância. É quando as crianças ainda estão mais abertas para entender as diferenças, as diversidades. É nesse momento em que as crianças conseguem capturar o que é essencial no outro. É nesse momento em que as crianças conseguem construir a sua própria imaginação.
Se a gente oferece para as crianças outras narrativas, elas vão compondo essas narrativas até se sentirem plenas, completas e nesse sentido a gente pode imaginar que a literatura tem um papel militante, um papel de permitir que as crianças possam aprender outras visões de mundo, que elas possam se humanizar e possam crescer como pessoa, como pessoas mais tolerantes, mais respeitosas, com a diversidade.
E aí construir o país que nós todos queremos. Desejamos que se tenha lugar pra todo mundo, porque tem lugar pra todo mundo, tem paz pra todo mundo, é só a gente sair um pouquinho dessa cínica explicação que nos dão, de que uns podem mais que outros, né? E que uns merecem ter mais que outros, que outros são melhores do que os outros.
Eu acredito muito na possibilidade de o nosso processo pedagógico, processo educacional brasileiro, criar um olhar diferenciado. E que seja uma pedagogia nascida da nossa própria terra, da nossa própria origem, e os povos indígenas têm essa pedagogia há dois mil anos. Aquilo que o Darcy Ribeiro chamava de socialismo moreno. A importância de a gente pensar uma pedagogia a partir das experiências vividas no nosso próprio território brasileiro.
Daniel, mais recentemente nas mobilizações em Brasília, acompanhamos muitos indígenas, especialmente jovens, narrando, filmando e retratando as manifestações contra os retrocessos em curso hoje no país. Gostaria que você falasse um pouco sobre este movimento. Atualmente, a criação de narrativas pelos próprios indígenas está mais consolidada?
Isto está acontecendo e é um movimento muito interessante. Me anima muito observar a juventude dominando toda essa tecnologia, toda essa linguagem moderna e contemporânea, usada pelas redes sociais, pelas mídias sociais. Me agrada muito saber que estão cumprindo aquilo que é o exercício da nossa própria cultura, que é a atualização permanente.
Para que a gente sobreviva enquanto povo a gente tem que estar o tempo inteiro nos atualizando, atualizando a nossa cultura. E aí também tem toda uma ressignificação que a juventude está fazendo a respeito de qual o conceito de indígena que nós precisamos trabalhar a partir de agora. Conceito que não é aquele antiquado que ainda hoje as escolas lidam no famoso dia 19 de abril, no Dia do Índio. Como se existisse um único sujeito igual a todos.
A sociedade precisa perceber que somos seres do presente. Nós somos contemporâneos, ou seja, nós estamos aqui agora vivendo essas mesmas dificuldades que todo mundo vive, as mesmas alegrias que todo mundo vive, com um diferencial que nós queremos continuar mantendo o nosso bem viver, nosso jeito de entender o mundo a partir de uma compreensão de coletividade.
Pode ser que essa juventude tenha um pouco mais de dificuldades às vezes de lidar com isso, porque muitos deles não experimentaram a vida comunitária de fato, muitos deles já são frutos de uma uma realidade mais urbana. Mas eles trazem consigo a memória, a memória do seu povo, a memória ancestral e se eles conseguem de fato trabalhar com essa memória.
Eles irão certamente fazer um trabalho bem bonito de atualização dessa memória porque é isso que a literatura também faz. É essa atualização permanente da memória ancestral, quer dizer, trazer para o agora, para o hoje, as histórias contadas pelos antigos. Porque isso dá sentido ao nosso hoje, ao nosso pertencimento a essa realidade. Por isso costumo dizer sempre que nós indígenas não somos do passado.
O passado para nós é apenas memória e é a memória que nos dá o suporte para que a gente viva hoje de acordo com os princípios da nossa tradição, com aquilo que faz parte do princípio de existência, do princípio de vida, que é a questão do coletivo, que é a questão do pertencimento, questão de proteção do território, questão da demarcação de terra, tudo isso faz parte desse desses princípios básicos da nossa existência.
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Sobre a memória que você fala Daniel, em meio à pandemia, vimos muitos anciãos indígenas, de diferentes etnias, perderam a vida pela covid-19. Como vocês sentiram a perda destes mestres da tradicionalidade oral?
A gente sentiu muito, foi muito triste, mas faz parte da tradição que as histórias sejam contadas gradualmente. Elas não estão concentradas em uma pessoa. Claro, quanto mais velha uma pessoa é, mais ela guarda de memória. Mas ao longo da trajetória de cada um, essas histórias vão passando para outras gerações. De modo que é a garantia de que quando acontece um acidente, e é claro a covid não foi um acidente, mas quando acontece um acidente que uma pessoa mais idosa faleceu fora do tempo, digamos fora da hora, outros já tenham aprendido aquelas histórias.
Eu costumo dizer que a gente se torna velho, mas não é um velho de imediato. A gente vai se tornando velho. E a gente começa a se tornar velho numa cultura, por exemplo, quando a gente se torna avô. E ser avô na cultura indígena é muito cedo, normalmente com 30, 35 anos. Se tudo seguir seu ciclo, aos 40, 45 anos a gente já é bisavô.
Então, é uma perda sempre muito grande, é uma biblioteca inteira de nós que se apaga. Mas, ao mesmo tempo, ele já garantiu, ao se tornar mais velho, mais sábio, que outros já ouviram suas histórias, para que se mantenha essa circularidade do pensamento. É óbvio, repito, porque foi muito triste, que a gente perdeu, no meio da pandemia, muitos bons narradores de histórias, a gente perdeu muitos líderes comunitários, articuladores políticos. E tudo isso sempre é uma grande perda de fato porque a gente perde referências.
Edição: Vinícius Segalla