ENTREVISTA

Fascismo está na raiz do bolsonarismo, diz coordenador do Observatório da Extrema Direita

Historiador afirma que presidente aglutina grupos com longa história na extrema direita do Brasil, como os integralistas

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Bolsonaro usou uma série de símbolos ligados ao integralismo em seu governo, como o slogan "Deus, Pátria e Família" - Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) representou o triunfo de uma série de grupos tradicionais da extrema direita brasileira. A constatação é de Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea na Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos coordenadores do Observatório da Extrema Direita Brasileira (OEDBrasil), grupo que reúne pesquisadores do tema. 

De acordo com Caldeira Neto, não é possível separar o bolsonarismo da tradição de movimentos históricos, com décadas de organização no Brasil, como o integralismo. "Muitas vezes, nós reduzimos o bolsonarismo a uma forma de adoção e adaptação de uma agenda política global. Isso incorre no erro de neutralizar a existência de uma história da extrema direita no Brasil", afirmou, em entrevista ao Brasil de Fato.

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"O Brasil foi palco da principal organização de tipo fascista fora do continente europeu. Isso não é pouca coisa. Essa mesma organização, a Ação Integralista Brasileira, foi também a primeira organização política de massa na história política brasileira. Depois, a gente tem experiências políticas, governos autoritários e ditaduras que são inspiradas ideologicamente nessas tradições de ideias e de práticas da extrema direita brasileira", disse.

Segundo ele, também é preciso apontar as diferenças conceituais entre o bolsonarismo e a atual gestão do Palácio do Planalto. "O governo Bolsonaro é uma instância mais institucional de representação, um governo como tal. O bolsonarismo é aquela célula mais pulsante que busca sempre uma ativação da radicalização, que buscar a intervenção militar, que busca a "ucranização", que busca o tal do voto impresso auditado e outras questões, inclusive em torno do próprio contexto de pandemia da covid-19."

::: Líder de ato neonazista pró-Bolsonaro em 2011 organiza carreatas em apoio ao presidente em SP :::

"É claro que Bolsonaro não quer idealizar um governo ou um Estado de tipo fascista como foi o Estado de tipo fascista na primeira metade do século 20, mas as ideias do fascismo, a ideia de repaginação, regeneração e purificação da nação brasileira e da extirpação e da perseguição dos seus opositores políticos, não são novas no Brasil. São questões que não são importações do bolsonarismo da agenda do Trump, são questões que estão presentes um certo imaginário político da extrema direita brasileira ao longo do tempo."

Caldeira Neto ganhou notoriedade, principalmente, a partir da publicação do livro "O Fascismo em Camisas Verdes: do integralismo ao neointegralismo", escrito em parceria com seu colega na UFJF, Leandro Pereira Gonçalves, e publicado em 2020. Durante a entrevista, o historiador apontou que o livro, além de uma versão em inglês, pode ter uma atualização ou render uma segunda obra. "A tragédia da extrema direita brasileira nos parece que ainda não está muito simples de resolver", brincou.

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LEIA A ENTREVISTA COMPLETA:

Brasil de Fato: Qual a sua trajetória na academia e de onde surgiu esse interesse por temas ligados à extrema direita e ao fascismo? 

Odilon Caldeira Neto: O interesse pela temática de pesquisa não foi um interesse que surgiu necessariamente pelo meio acadêmico. Eu diria que as duas questões, a minha vivência pessoal e a questão acadêmica, se encontraram. Durante a graduação em história Universidade Estadual de Londrina, eu era envolvido com a cena contracultural do punk e do punk rock. O movimento punk, em geral, tem alguns problemas, inclusive em termos de violência física com grupos da extrema direita e neofascistas. A partir dessa questão de foro mais íntimo, eu queria trabalhar com isso como objeto de pesquisa. Queria entender o que era essa extrema direita que eu havia notado nas ruas e como ela se mostrava com novas facetas, como que ela trazia alguns elementos de um passado histórico que muitas pessoas julgavam que era um passado já resolvido. E como que muitos desses grupos com muitos jovens, com muitos adultos, eventualmente até idosos, rearticulavam essas ideias da extrema direita naquela época, no início dos anos 2000. Minha ideia foi sempre, a partir de uma questão de foro mais individual, analisar academicamente essas questões. 

As pesquisas da extrema direita no Brasil existem desde a década de 50, 60 e assim por diante. Mas a extrema direita mais recente não era muito pesquisada. Na graduação, na UEL, eu comecei a pesquisar alguns grupos neonazistas, em especial os grupos que negam o Holocausto. A partir disso, eu fui desenvolver uma pesquisa no mestrado da Universidade Estadual de Maringá sobre o integralismo e o que eu chamo de neointegralismo – ou seja, grupos integralistas da atualidade que querem reviver esse passado do fascismo histórico no Brasil. No doutorado, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o meu objeto central de pesquisa foi o PRONA, de Enéas Carneiro. O Enéas era aquela figura que falava "meu nome Enéas". Muitas vezes, ele foi tomado como uma figura exclusivamente caricatural, uma espécie de fantoche, uma figura histriônica. Mas, na realidade, eu parti do princípio – e ainda analiso dessa maneira e diria que acertadamente – que o PRONA foi um partido político diminuto que conseguiu congregar várias ideias da extrema direita brasileira, que, durante o início da chamada Nova República, não tinha um grande representante. 

E não é de se espantar que, no caso do PRONA, por exemplo, esse foram congregados desde grupos neointegralistas, como grupos militares, representantes da extrema direita argentina, norte-americana e assim por diante. Muitas dessas ideias que se fizeram presente desde os integralistas e neointegralistas, até a própria experiência do PRONA, se mostram evidentes na atualidade brasileira. Minha ideia é justamente, a partir dessa minha trajetória de formação de pesquisador, em pesquisas que desenvolvo ainda hoje na Universidade Federal de Juiz de Fora, entender um pouco o que há de passado na atualidade da extrema direita brasileira. Ou seja, como que é extrema direita brasileira traz alguns referenciais e credenciais históricas e molda este passado para a atualidade? Observo como eles começam a ler o passado da extrema direita e proporcionar a atualidade para essas novas investidas. E é claro que muitas dessas credenciais acabam se encontrando na formação do bolsonarismo, na eleição de Jair Bolsonaro, na composição do Bolsonaro como um movimento político e também do governo Bolsonaro, como esse governo que quer se tornar uma ditadura, um regime. 

Qual o papel do Observatório da Extrema Direita Brasileira e a importância de reunir, em um grupo de pesquisadores, diferentes olhares sobre esse mesmo assunto? 

A expressão "diferentes olhares" é uma das preocupações centrais do Observatório. Grupos destinados a pensar a história e a atualidade da extrema direita brasileira e global existem na academia brasileira há muito tempo. No campo da historiografia, que é meu campo particular de atuação profissional, existem grupos como a Rede Direitas, História e Memória ou grupos de estudos sobre o integralismo e outros. Há grupos que têm essa ambição e essa prática de olhar a extrema direita brasileira a partir do prisma e da metodologia dos historiadores e das historiadoras. No entanto, com essa nova onda das direitas globais e, particularmente, com a ascensão e a formação das novas direitas do Brasil e do fenômeno do bolsonarismo ficou bastante nítido para uma série de pesquisadoras que o problema tem que ser olhado a partir de uma multidisciplinaridade. Ou seja, muitas disciplinas, muitas categorias profissionais olhando esse problema, justamente para ter esse olhar cruzado sobre a questão. Não são apenas os historiadores que vão explicar a particularidade deste fenômeno. Assim como também não são apenas os cientistas políticos, sociólogos ou antropólogos que vão explicar essa questão. É justamente a partir do diálogo que é há possibilidade de uma interpretação mais apurada do fenômeno e, além disso, uma outra questão que caracteriza o Observatório da Extrema Direita é a busca por fazer uma relação com a sociedade civil. Ou seja, ocupar um certo debate, um debate especializado, e a promoção de uma visão especializada para a sociedade civil. Ou seja, não é apenas o saber acadêmico e eu não estou aqui desmerecendo, de maneira nenhuma, o saber acadêmico afinal de contas todos nós do Observatório somos acadêmicos, somos professores. É justamente uma ideia de falar com um público mais amplo, de trazer as nossas pesquisas para o público mais amplo. 

O Observatório da Extrema Direita surgiu inicialmente pela iniciativa do professor David Magalhães, professor da PUC de São Paulo da FAAP, que trabalha na área da política, da sociologia e com o interesse internacionalista também. Se juntou a ele, primeiramente, o Guilherme Casarões, professor da FGV em São Paulo, também das Relações Internacionais. Posteriormente, eles me convidaram a integrar o grupo e, depois, no campo da coordenação do grupo se juntou a Isabela Kalil, que é antropóloga e professora da Fundação Escola de Sociologia e Politica de São Paulo. Somos nós quatro os coordenadores do Observatório. Mas há também outras pesquisadoras, em outras universidades, estados e países. Temos, por exemplo, a Maud Chirio, que é uma historiadora francesa. Temos o Camilo López Burian, que é um cientista político uruguaio, e o José Pedro Zúquete, que é um historiador e cientista político português. A nossa ideia é trazer pesquisadoras e pesquisadores que olhem a extrema direita não apenas no Brasil, mas também de uma maneira global para entender esse fenômeno, dialogar entre si e propor leituras para que a sociedade civil de uma maneira mais ampla conheça nossas pesquisas e a gente possa contribuir um pouco para resolver um pouco essa equação. O Observatório também conta com pesquisadoras e pesquisadores em formação, que são mestrandos e graduandos no nível de iniciação científica. Para quem tiver interesse e curiosidade para saber quem são as pesquisadoras e os pesquisadores, basta entrar no nosso site que foi recém lançado: OEDbrasil.com.br. Temos outros planos para o futuro em termos de ampliação das nossas atividades, de eventos, mas isso fica um pouco mais para frente. De qualquer forma, quem quiser conferir as nossas atividades, está tudo disponível no nosso site.
 
No dia 4 de outubro, o Brasil de Fato publicou entrevista com um grupo de pesquisadores do Instituto Federal da Bahia responsável por uma pesquisa intitulada "Bolsonarismo e o Brasil profundo". Segundo eles, o bolsonarismo não é uma mera expressão local do trumpismo ou do neofascismo, mas sim um fenômeno essencialmente brasileiro. Você concorda que nossa extrema direita tem as suas particularidades em relação à extrema direita global? 

Eu concordo bastante com a fala do professor que você trouxe. Muitas vezes, na necessidade de uma busca por explicar rapidamente o fenômeno do bolsonarismo, articulistas, às vezes até pesquisadores e pesquisadores, pessoas que se dedicam a olhar e ler sobre o tema, acabam por reduzir o fenômeno do bolsonarismo como uma certa forma de reprodução ou adaptação daquilo que acontece em outros países, como Polônia, Hungria e, sobretudo, no caso do trumpismo, baseado na experiência de Donald Trump nos Estados Unidos. 

É claro que o bolsonarismo é produto de sua época. Por isso, está lidando com as tecnologias de informação e comunicação de seu momento. Está lidando também com as condições políticas de seu momento, então é muito evidente que o bolsonarismo vai buscar alguma forma de interação e integração a uma agenda política internacional da extrema direita. No final das contas, a busca por aliados e interlocutores é um imperativo para qualquer expressão política. Isso não é um fenômeno único exclusivo da extrema direita, é um fenômeno do campo político como um todo.

Muitas vezes nós reduzimos o bolsonarismo a uma forma de adoção e adaptação de uma agenda política global. Isso incorre no erro de neutralizar a existência de uma história da extrema direita no Brasil. E essa história da extrema-direita no Brasil caminha lado a lado com a história do Brasil republicano. A partir do momento da Proclamação da República, começam a ser gestadas formas, organizações e uma mentalidade política da extrema-direita brasileira, que viu numa certa ideia de formação de uma identidade nacional bastante elitista, contra movimentos sociais de diversas roupagens, organizações de diversos tipos, mas fundamentalmente anticomunistas. Isso teve reverberação não somente nas suas próprias organizações, mas também em meios de imprensa e em setores da elite política e intelectual brasileira. 

A história da extrema direita brasileira é longa. Ela tem início ao longo da experiência republicana. O Brasil foi palco da principal organização de tipo fascista fora do continente europeu. Isso não é pouca coisa. Esta mesma organização, a Ação Integralista Brasileira, foi também a primeira organização política de massa na história política brasileira. Depois, a gente tem experiências políticas, governos autoritários e ditaduras que são inspiradas ideologicamente nessas tradições de ideias e de práticas da extrema direita brasileira.

Essas ideias não são estanques, não são produtos e propriedade única e exclusiva dessas organizações. Ou seja, a mentalidade fascista que é organizada, tutelada, estruturada e disseminada pela Ação Integralista Brasileira, ao longo de 1932 a 1937, não está restrita à história da AIB. As ideias voam, circulam, são impregnantes. As ideias da extrema direita brasileira são incorporadas por diversos setores da sociedade, setores das Forças Armadas, setores da classe política, setores da própria Igreja Católica ou de outros setores religiosos no Brasil. Se a gente esquece essa história e essa atualidade da extrema direita brasileira e reduz a extrema direita brasileira atual a uma expressão do trumpismo, fica muito complicado entender a dimensão dessa extrema direita brasileira em seu tempo e em sua história. Até porque o bolsonarismo não surge exclusivamente das ações do próprio bolsonarismo, ele é fruto de uma longa tradição de gerações de familiares de intelectuais, de políticos que vão moldando essas ideias ao longo da história da extrema direita. 

Muitas vezes, reduzir a experiência do bolsonarismo a uma certa adaptação do trumpismo coloca a chave explicativa do bolsonarismo única e exclusivamente nos bolsonaristas mais radicais. Dessa forma, esquece a composição social e a formação do caldo político e cultural do bolsonarismo. Há o lava-jatismo, as elites políticas, setores conservadores, setores da imprensa hegemônica... São grupos que tutelaram vários dos valores que depois são incorporados pelo bolsonarismo e partilharam do trânsito entre o passado da extrema direita e a sua atualização para o tempo presente. A visão que reduz o bolsonarismo a uma expressão internacional e do exterior é bastante reconfortante. Também é um achado que pode ser muito conservador na sua análise. O bolsonarismo tem que ser analisado em sua composição nacional e também, é claro, em sua interação internacional. Da mesma maneira em que molda alguns fenômenos da extrema-direita global, o bolsonarismo está estabelecido ao longo de uma tradição histórica local. Essa relação entre o local e o global é fundamental para analisarmos o fenômeno. 

Em julho, o Brasil de Fato publicou uma reportagem sobre Eduardo Thomaz, um dos líderes de manifestação realizada em apoio ao então deputado Jair Bolsonaro, em 2011, na Avenida Paulista, no vão livre do MASP, em São Paulo. Na apuração, mostramos que ele segue ligado ao bolsonarismo, organiza carreatas em favor do presidente e ostenta, em suas redes sociais, a relação que tem com Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência.

Em outra reportagem, compilamos cinco momentos em que Bolsonaro ou pessoas ligadas a ele recorreram a símbolos nazistas. O principal deles talvez seja o vídeo gravado pelo então secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, em clara referência a um discurso do ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels. Dentro das diferentes forças que compõem o bolsonarismo, é possível considerar o neonazismo ou é exagero?

É um elemento que me parece bastante complexo do ponto de vista analítico. Essa é uma interpretação particular minha, mas eu entendo que outras pesquisadoras e pesquisadores convergem nesse entendimento. Em primeiro lugar, o bolsonarismo não é um fenômeno monolítico ou homogêneo. Ele se "purifica" e se radicaliza ao longo do tempo. O bolsonarismo quando está em busca de algum fenômeno de ativação ou agitação das suas bases mais radicais começa a incorporar ou a exteriorizar a suas credenciais mais próximas ao fascismo ou agrupamentos da extrema direita mais intolerante, da direita alternativa norte-americana.

É bom sempre separar o governo Bolsonaro, essa instância mais institucional de representação, um governo como tal, do que é o bolsonarismo, que é aquela célula mais pulsante que busca sempre uma ativação da radicalização, que buscar a intervenção militar, que busca a "ucranização", que busca o tal do voto impresso auditado e outras questões inclusive em torno do próprio contexto de pandemia da covid-19. O bolsonarismo é um fenômeno que transcende ao governo em si. Ele não é tutelado pelo governo. Em torno do bolsonarismo, convergem diversas tendências e agrupamentos da extrema direita brasileira. Muitas vezes eles não são muito organizados, não são partidos políticos, não são movimentos sociais estruturados, nada do tipo. Muitas vezes são tendências internas que buscam uma certa convergência em torno dos seus interesses, com uma ideia de um nacionalismo ultra excludente, uma ideia de um anticomunismo, de anti petismo, uma ideia de uma sociedade hierarquizada contra as minorias. 

São alguns valores que fundamentais estabelecem a convergência desses grupos diversificados, mas esses grupos ainda assim têm certa agenda ou alguma característica de autonomia do ponto de vista da sua natureza política e, mais do que isso, dos seus interesses. Os grupos golpistas que defendem uma espécie de Golpe Militar diversificado têm interesses que não são os mesmos. Na medida em que o bolsonarismo é esse fenômeno muito plural e diversificado, ele está em disputa. Os grupos pretendem incluir as suas pautas e a sua roupagem ao próprio bolsonarismo. Ou seja, formatar em certa medida o bolsonarismo de acordo com as suas ambições. Essa diversidade dá a tonalidade da sua complexidade também da disputa interna. Uma dessas feições é aquela que faz elogio e referência direta às experiências do fascismo histórico. Como fascismo histórico, estou pensando não apenas no integralismo brasileiro, mas estou pensando também no nacional socialismo, o nazismo, fascismo italiano. E também o franquismo, na Espanha, as ideias do general Francisco Franco, foram incorporados por algumas figuras de importância média para grande dentro do governo Bolsonaro. A existência de agrupamentos ou figuras neonazistas que buscam padronizar o bolsonarismo deve ser entendida, de acordo com a minha perspectiva analítica, não como uma assimilação absoluta entre bolsonarismo e neonazismo, mas sim pela incorporação de elementos do neonazismo pelo bolsonarismo ou pela presença de militantes neonazistas dentro do bolsonarismo.

O próprio neonazismo brasileiro também não é um fenômeno monolítico ou único. Podemos considerar de fóruns onlines de grupos ultra misóginos à literatura negacionista do Holocausto, passando por grupos como, os skinheads ou White Power. Muitos desses grupos não têm uma certa vinculação tão direta com o bolsonarismo porque não têm uma ambição política tão estruturada. Outros, contudo, têm uma ambição, uma estrutura política, uma ambição de se transformar em uma estrutura política mais efetiva. É aí, sobretudo, que ocorre esse fenômeno da presença de neonazistas no bolsonarismo como a próprio a figura que você mencionou, que esteve ligada à efervescência formação desses fenômenos do bolsonarismo. Aquele ato no vão livre do MASP, que trouxe desde neointegralistas a neonazistas, skinheads, outros grupos da extrema direita, indivíduos com camisas em homenagens ao Olavo de Carvalho, foram fundamentais para a extrema direita, há dez anos atrás, reconhecer que Bolsonaro era o seu grande representante. Uma extrema direita tão diversificada como ela é, sobretudo após a transição democrática, ficava tateando as suas possíveis lideranças. O Enéas Carneiro foi uma possível liderança da extrema-direita brasileira. Ele não conseguiu um grande poderio, mas foi tomado como representante de muitas daquelas ideias da extrema-direita. Bolsonaro consegue esse poderio político e não por forças exclusivamente da extrema-direita, ele é também tutelado por elites liberais, econômicas e políticas. Ao mesmo tempo em que esses grupos neonazistas querem imprimir a sua faceta no bolsonarismo.

Porém, uma outra questão importante é que a presença de símbolos fascistas ou nazistas não é apenas fruto exclusivamente da associação de indivíduos e militantes neonazistas ao bolsonarismo. Muitas vezes, esse é um esforço do próprio governo Bolsonaro. A utilização de slogans, de figuras de linguagem, de simbologias nazistas ou fascistas, é também parte do esforço do bolsonarismo e do governo Bolsonaro de se compreender como parte de uma história de uma trajetória da extrema direita brasileira e internacional. Fazem o uso dessas simbologias, seja pelo uso do slogan "Deus, Pátria e Família", da Ação Integralista Brasileira, seja de slogans da extrema direita norte-americana ou ucraniana. O que ocorre é um processo de assimilação. Ou seja, o governo Bolsonaro se coloca como representante dessas feições.

Como o movimento bolsonarista é bastante diversificado, sempre passa por processos de agitação, radicalização e purificação. Quando eu digo purificação, estou lendo na chave interpretativa da fidelização dos mais radicais. Quando figuras do governo utilizam figuras chavões, lemas e clichês do fascismo e do nazismo na atualidade, estão fazendo também um acenos a essas bases mais radicais. 

É uma via de mão dupla: de um lado, são os movimentos e lideranças do neonazismo tentando imprimir a sua faceta no bolsonarismo e no governo Bolsonaro; de outro lado, é o governo Bolsonaro buscando radicalizar as suas bases por meio da chave, dos lemas e das imagens do imaginário fascista e nazista na atualidade. Por isso, é um fenômeno bastante complexo.

Você pode falar um pouco sobre o "O fascismo em camisas verdes", que você escreveu junto com Leandro Pereira Gonçalves e foi publicado em 2020? É possível dizer que, dado o contexto, daqui a pouco esse livro terá que ser ampliado ou atualizado? 

Sem dúvida, em algum momento uma atualização, uma segunda edição ou mesmo um outro livro terá que ser escrito porque essas formas de incorporação em novas práticas são cotidianos. O livro é fruto de uma parceria com o Leandro Pereira Gonçalves, que é professor também aqui da Universidade Federal de Juiz de Fora. Nós pesquisamos a temática da extrema direita, particularmente o integralismo, há muito tempo. O Leandro estuda há mais de 20 anos e eu, há uns 15 anos. Nós somos colegas de departamento, amigos próximos e pesquisadores da mesma temática. Portanto, quando ocorreu o ataque à sede da produtora do Porta dos Fundos com coquetéis molotov e quase vitimaram um trabalhador que estava ali, nós tivemos uma procura muito grande de variados meios da imprensa brasileira. Notamos ali que existia uma certa lacuna de interpretação e informação da sociedade ou da imprensa de uma maneira mais ampla sobre o que foi a extrema direita brasileira, sobretudo aquela que tem uma inspiração no fascismo histórico. 

É claro que vários profissionais e acadêmicos escreveram sobre a temática. Temos centenas de pesquisadores e pesquisadoras sobre a temática da extrema direita brasileira. No entanto, a nossa busca foi justamente trazer uma linguagem que tem o rigor acadêmico, fruto das nossas pesquisas, com uma linguagem mais simples e agradável para o público mais amplo. O desafio foi trazer dessa forma a pesquisa acadêmica, historiográfica, com todos os seu jargões e discussões conceituais. 

Escrevemos o livro "O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo", que analisa a história do fascismo no Brasil e também do neofascismo no Brasil, desde o momento em que Plínio Salgado foi visitar Benito Mussolini na Itália fascista, se apaixonou pela experiência e trouxe toda a referência do fascismo italiano para o Brasil. Foi ele quem fundou o primeiro grupo mais bem organizado de tipo fascista do Brasil. O livro discute como que essas ideias continuaram presentes após o fim da Ação Integralista Brasileira, em partidos políticos, durante a Ditadura Militar, durante o processo da transição democrática e assim por diante. 

Depois que Plínio Salgado morre, em 1975, surge o neointegralismo. São essas organizações que ainda existem na atualidade, algumas têm algum grau de penetração política mais efetiva, como é o caso da Frente Integralista Brasileira, que tem um diálogo crescente com partidos políticos, especialmente agora na atualidade o PTB, de origem varguista, mas que agora nada tem de varguista. Nossa ideia foi trazer um pouco essa história, essa atualidade, para ajudar a entender como que a formação do bolsonarismo é uma incorporação dos legados da extrema direita brasileira ao longo da história. A gente trabalha um pouco com essa ideia do nosso livro: como que os ideais fascistas que emergiram no Brasil ao longo dos anos 30 do século passado foram sendo atualizados, incorporados e repaginados para a atualidade. Não é de se espantar que muitas dessas credenciais são incorporadas no bolsonarismo e no governo Bolsonaro. É claro que Bolsonaro não quer idealizar um governo ou um Estado de tipo fascista como foi o Estado de tipo fascista na primeira metade do século 20, mas as ideias do fascismo, a ideia de repaginação, regeneração e purificação da nação brasileira e da extirpação e da perseguição dos seus opositores políticos, não são novas no Brasil. São questões que não são importações do bolsonarismo da agenda do Trump, são questões que estão presentes um certo imaginário político da extrema-direita brasileira ao longo do tempo. 

Discutimos como que olhar essa história e para essa atualidade nos auxilia a interpretar a profundidade dos ideais e da presença dos valores da extrema direita brasileira ainda na atualidade.  O livro vai ser lançado, salvo engano, no primeiro semestre do ano que vem na versão em inglês em uma editora chamada Routledge, em sua coleção "Studies in Fascism and the Far Right" ("Estudos sobre o fascismo e a extrema direita"). Tem também uma coleção sobre estudos sobre a ultradireita e o fascismo que foi traduzido e que estamos fazendo os ajustes para programar agora a publicação. O trabalho em língua inglesa virá um pouco atualizado até porque essa tragédia da extrema direita brasileira nos parece que ainda não está muito simples de solucionar e toda vez traz novos capítulos. 

Edição: Vivian Virissimo