Precarização

Falta de fiscais agropecuários fragiliza inspeção e pode encarecer alimentos ainda mais

Novas regras expõem número insuficiente de servidores, gerando filas e possíveis impactos ao consumidor

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Tarefa de reinspeção de produtos importados de origem animal foi assumida em 18 de agosto pela Vigiagro, que atua nas fronteiras - Acervo CRMV-SP

Uma mudança nos procedimentos de inspeção de produtos importados de origem animal vem causando atraso na entrada de cargas no Brasil. A nova regra, que entrou em vigor em agosto, expõe a precarização do setor de fiscalização agropecuária, com possíveis impactos para o consumidor.

Conforme revelou o jornal Valor Econômico, cinco entidades do agronegócio enviaram ofício na última semana ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) alertando para o risco de “aumentos de custo”, “pressão inflacionária” e “restrição ao consumo de alimentos” por conta das filas nas fronteiras.

Entre as entidades que expressaram preocupação com o tema, estão a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) e a Associação Brasileira das Indústrias de Pescados (Abipesca), além de representantes de indústrias destinadas à alimentação animal.

Os itens alimentícios mais afetados pela inflação no último ano no Brasil são óleos e gorduras (64,8%), cereais e castanhas (51,7%) e carnes (27,5%), conforme dados de julho de 2020 a julho de 2021.

O que mudou

Até o dia 18 de agosto, o importador enviava uma documentação do país de origem da carga ao governo brasileiro, que determinava o local onde o produto seria reinspecionado – fábricas, frigoríficos ou estabelecimentos registrados pelo SIF.

Com a nova regra, os documentos são recebidos por uma central virtual de análise, que distribui os processos a veterinários da Vigilância Agropecuária Internacional (Vigiagro), que atuam nas fronteiras. Ou seja, as cargas só são autorizadas a entrar no país após reinspeção na estação primária – portos, aeroportos e aduanas.

“Essa é uma mudança racional. Acontece que a efetividade dela depende de treinamento e disponibilidade de pessoal. E não há auditores disponíveis para atender essa demanda. A mudança foi muito brusca”, explica o veterinário Antônio Araújo Andrade Júnior, diretor de comunicação e de relações públicas do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (ANFFA-Sindical).

Segundo a entidade, foram reportadas filas no Porto de Santos (SP) e em São Borja (RS).

Os alimentos importados de origem animal, que tendem a encarecer devido às filas na fronteira, não são de consumo diário da maioria dos trabalhadores brasileiros – carne bovina premium e carne de cordeiro, salmão, pescada e merluza.

No entanto, as filas revelam um problema que diz respeito a todos: a fragilização dos processos de inspeção.

“Hoje, o ministério tem enviado forças-tarefa para atuar nos locais mais críticos, de maior risco. Mas o auditor que é enviado para uma força-tarefa deixa de realizar seu trabalho no local de origem, que fica descoberto”, relata o diretor do ANFFA-Sindical.

“Temos auditores analisando até 28 processos por dia. Nos frigoríficos, os auditores estão fazendo horas-extras, e não conseguem nem usufruir delas por excesso de trabalho”, finaliza.

Defasagem

O número de servidores ativos nessa função no Brasil não acompanhou o crescimento do agronegócio. Entre os anos de 2006 e 2007, havia aproximadamente 3 mil. Hoje são 2.550, o mesmo de 19 anos atrás.

“Durante esse período, foram implementados vários instrumentos eletrônicos. Ainda assim, isso não justifica a redução, porque o crescimento do setor agropecuário foi muito intenso”, analisa Andrade Júnior.

“Muitos aposentaram, principalmente, no período [de votação] da reforma da Previdência, temendo as consequências nefastas daquela mudança”, lembra. Não foram abertas novas vagas, por meio de concurso público, desde então.

O Brasil de Fato entrou em contato com a ABPA, com a Abipesca e com o Mapa.

A ABPA não retornou até o fechamento da matéria. A Abispesca respondeu por meio de nota, ressaltando que o Brasil “tem experimentado dificuldades para nacionalizar e internalizar mercadorias advindas de países fronteiriços.”

“A transferência das rotinas administrativas e fiscalizatórias de reinspeção desses produtos de origem animal para as zonas primárias do país, agora a cargo da Vigiagro, colapsaram o Serviço de Inspeção Federal (SIF), com gravíssimos reflexos para indústrias e toda a população”, diz a associação.

Na nota, a Abipesca relata ainda as sugestões emergenciais que vem propondo às autoridades competentes para minimizar o problema.

O Mapa informou que a análise documental para o modal aéreo e terrestre está em dia.

“O Ministério da Agricultura alterou em agosto o processo de importação de produtos da área animal com o objetivo de reduzir o custo com deslocamento de servidores e agilizar a internalização de produtos, reduzindo assim o custo para o setor privado”, informou a pasta, também por meio de nota.

Após perceber atrasos nos processos por causa das mudanças, o Mapa disse ter acionado um “plano de contingência”, priorizando processos de animais vivos e pescados frescos.

“A demora de mais de dois dias para a internalização pode ocorrer por fatores como problemas na documentação: cerca de 30% dos processos apresentados ao Mapa apresentam problemas na documentação e precisam de correção por parte da empresa, o que acaba gerando atraso pois tem que ser analisado duas vezes”, acrescenta o Ministério.

“Também há questões relacionadas à falta de pessoal suficiente para realizar a inspeção física e à retenção da mercadoria para aguardar análise laboratorial”, finaliza.

Precarização

O fiscal agropecuário atua não só na inspeção de itens importados. O trabalho começa ainda no campo, na coordenação de programas de prevenção de doenças, no controle da qualidade e do uso de insumos.

Os auditores também fiscalizam as etapas de processamento de alimentos de origem vegetal e animal, além de garantir a vigilância das fronteiras e atestar a segurança dos produtos exportados pelo Brasil.

Em estabelecimentos onde há abate, o fiscal deve estar dentro da planta permanentemente. Não se trata de uma especificidade do Brasil: o mesmo ocorre nos Estados Unidos ou em países da União Europeia, para garantir a segurança do produto.

Nos estabelecimentos onde não há abate, a inspeção é periódica.

“Por falta de pessoal, hoje, o auditor que deveria estar permanentemente em uma planta de abate está também em dez estabelecimentos de fiscalização periódica”, afirma o diretor do ANFFA-Sindical.

“Para suprir a falta de pessoal, têm sido contratados não auditores, mas veterinários de forma temporária, burlando o princípio do concurso público. São profissionais que não têm poder de polícia administrativa, ou seja, não podem interditar, autuar”, completa.

A defesa agropecuária, ao longo da cadeia, é tradicionalmente uma atividade compartilhada entre agentes públicos e privados. Com a defasagem no número de auditores, o sindicato da categoria relata que funções do Estado vêm sendo cada vez mais assumidas por empresas do agronegócio.

“Existe hoje uma política deliberada de redução do Estado, principalmente do papel fiscalizatório. No setor agropecuário e no agronegócio, especificamente, isso é ainda mais intenso e visível”, afirma Andrade Júnior, mestre em Sanidade Animal e diretor do sindicato dos auditores.

“Em paralelo a essa redução de concursos para reposição de pessoal, há uma série de medidas colocadas em prática que transferem algumas atribuições de controle e fiscalização para a iniciativa privada – sem o efetivo acompanhamento”, alerta.

Graças ao trabalho de auditores federais, foram identificados, por exemplo, casos recentes de encefalopatia espongiforme bovina, nome científico da doença da “vaca louca”. O diagnóstico foi feito por servidores do Estado, em um laboratório público, evitando que o Brasil perdesse cifras milionárias, contaminasse rebanhos e o consumidor final.  

Em julho deste ano, uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que a atuação dos auditores fiscais federais agropecuários contribuiu com R$ 44,9 bilhões para a economia nacional, ou seja, o correspondente a 8,65% das exportações do agronegócio brasileiro durante a pandemia.

O estudo aponta que, entre janeiro e novembro de 2020, a demanda por Certificados Sanitários Internacionais (CSI) para fins de exportação de produtos de origem animal do Brasil cresceu 17,3% frente ao mesmo período de 2019.

Ainda segundo a FGV, se esses profissionais tivessem paralisado as atividades na pandemia, a agricultura perderia R$ 25,7 bilhões, e agroindústria, cerca de R$ 17,9 bilhões.

Edição: Leandro Melito