“Nunca me senti tão cansada quanto agora. A vida acabou virando o trabalho, e vice-versa. Acho que, presencialmente, isso não acontecia tanto: existia a hora de ir para o trabalho e a hora de voltar. O Whatsapp não piscava o tempo inteiro. A redação não ficava no meu quarto. Não existia essa sensação de que todos os dias são iguais. Mentalmente, eu sinto que nunca desligo.”
O relato é de uma repórter que trabalha em São Paulo (SP) há quase dois anos com a carteira assinada em um dos maiores jornais do Brasil.
Os profissionais que aparecem nesta reportagem foram ouvidos sob condição de anonimato. Os nomes dos veículos em que atuam também foram ocultados a pedido, para evitar identificação.
Doutora em Ciências da Comunicação e pesquisadora do Centro de Pesquisas em Comunicação e Trabalho (CPCT) da Universidade de São Paulo (USP), Janaína Visibeli afirma que a pandemia acelerou uma tendência de precarização que se verifica desde a migração para a internet.
“A gente já vem observando há um tempo a expulsão de trabalhadores do vínculo formal das organizações midiáticas. Entre 2010 e 2020, tivemos os chamados ‘passaralhos’, que são exatamente resultado disso”, lembra.
“Foi uma crise do modelo de negócio, só que o resultado recaiu sobre o trabalho. Esse enxugamento gera pressão para quem fica, e precarização para quem sai.”
As mudanças na legislação ocorridas desde a reforma trabalhista de 2017 acarretaram perdas de direitos para várias categorias. No caso dos jornalistas, o cenário é agravado pela concentração midiática. Como poucas empresas dominam o mercado, profissionais se veem constrangidos a aceitar condições distantes do ideal.
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“Muitos trabalhadores foram forçados a assumir vínculos de pessoa jurídica, se tornando microempreendedores individuais”, relata a pesquisadora. Assim, a relação deixa de ser entre empregado e empregador, e o veículo jornalístico se exime de obrigações sobre as condições de trabalho.
“Ao mesmo tempo, aqueles que ficaram nas organizações, no contexto anterior à pandemia, tiveram intensificadas suas jornadas e demandas”, acrescenta Visibeli.
Estudos recentes apontam aumento da pressão e prolongamento das jornadas, especialmente com a introdução do teletrabalho, também chamado de homeoffice – em uma tradução literal, “escritório em casa”.
A pesquisa mais abrangente sobre o tema foi realizada pelo CPCT entre 5 e 30 de abril deste ano, sob coordenação da professora Roseli Figaro. O estudo deu origem ao relatório Como trabalham os comunicadores no contexto de um ano da pandemia de covid-19, que traz comparações com dados levantados um ano antes.
“Percebemos uma enorme elevação dos profissionais que passaram a ter uma carga de trabalho diária de 10 horas, 12 horas, 14 horas e mais de 14 horas. Entre essas quatro jornadas, o maior aumento se deu entre os comunicadores que atuam 12 horas diariamente – de 26 para 138, um salto de 430% [entre abril de 2020 e abril de 2021]”, diz o relatório, que Visibeli assina junto a outros dez autores.
“Na sequência estão as pessoas que trabalham acima de 14 horas, que pularam de 9 para 40, o equivalente a 344%. Quem no momento dispende 14 horas diárias passou de 13 para 44 trabalhadores, ou seja, um acréscimo de 238%. Também muito significativo, aparecem aqueles que cumprem 10 horas por dia, que eram 136 e agora são 217, o que significa um acréscimo de 59,5%.”
A pesquisadora do CPCT explica que o teletrabalho tende a ser mais desgastante que o presencial.
“O que os respondentes relataram é que eles sentem que precisam mostrar que estão trabalhando, apesar de entregarem tudo que é solicitado. Isso faz com que as pessoas se coloquem disponíveis em tempo integral”, descreve.
Quando o trabalho invade a casa
Diretora de Formação do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e doutoranda na USP, Ana Flávia Marques participou da produção do relatório do CPCT e de outros estudos sobre o tema.
“As redações já vinham migrando para um trabalho fora da redação, com freelancers, por exemplo. Com a pandemia, houve uma migração quase total, e muitas empresas foram negligentes ao não investirem em segurança de dados, não fornecerem equipamentos e não se prepararem para essa digitalização”, lembra.
“O momento da pandemia foi um dínamo. Ou seja, acelerou e aprofundou todo esse processo, no contexto da virtualização do trabalho, do uso de plataformas e aplicativos, e da diluição dos limites entre tempo de vida e tempo de trabalho.”
É exatamente o que sente Maria Eduarda*, repórter de Economia.
“Nunca fiz intervalo de uma hora. Eu como na frente do computador, paro 15 minutos para tomar café, mas nunca fico mais de 40 minutos fora”, conta a jornalista, que trabalha desde março em uma das maiores empresas do setor no país.
Nos fins de semana em que está de plantão, de duas a três vezes ao mês, não há tempo de descanso.
“Eu bato o ponto às 9h e às 11h. Depois às 16h e às 17h. Fico fazendo rondas. Mas, se acontecer uma notícia no meio do dia, eu trabalho sem contabilizar as horas. Fico o dia inteiro à disposição, até as 21h.”
Os intervalos são contabilizados de forma automática, mesmo que não sejam cumpridos efetivamente.
“Não há uma contagem real [das horas]. Na pesquisa, identificamos apenas um software que regula, de fato, a jornada de trabalho – o PontoMais”, explica Ana Flávia Marques, do CPCT.
“Há um descontrole deliberado, para se aproveitar dessa jornada extra. Porque, se esse controle existir, as empresas vão ter que pagar mais aos jornalistas pelo tempo trabalhado”, enfatiza.
A pesquisadora chama atenção para outro problema típico da modalidade teletrabalho: os profissionais passam a arcar com custos que antes eram da empresa.
“Os comunicadores tiveram que investir em mobília, tiveram aumento nas contas de internet e energia, e não houve nenhuma ajuda da maioria das empresas. Há uma corrosão do salário, diretamente, assim que o local de trabalho é deslocado para casa”, analisa.
A repórter Maria Eduarda vem sentindo dores nas costas porque trabalha longas jornadas na cadeira da cozinha.
“Uso meu notebook pessoal. Sou eu que pago as contas de luz, internet, e a empresa não forneceu nem cadeira”, conta.
“Lembro que, quando queimou o carregador do computador de uma das repórteres, em vez de mandarem outro equipamento, o que ela ganhou foi uma folga para resolver o problema. Sem ajuda de custos, sem nada.”
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Negligência recorrente
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) enviou às empresas, em 16 de março de 2020, um protocolo de segurança e de trabalho para o período da pandemia.
“A gente levantou uma série de questões, relativas à segurança de quem ficou trabalhando presencialmente, e de garantias para quem foi ao teletrabalho, como auxílio para contas de luz”, conta Norian Segatto, diretor de saúde da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e membro do Conselho Fiscal do SJSP.
Parte dos empregadores ignorou aquelas medidas.
“Muitas empresas fizeram redução de jornada com redução de salário. Muitas convocaram as pessoas ao teletrabalho sem dar condições e cortaram vale-alimentação (VA). Então, a pessoa trabalha hoje com seu próprio equipamento, sem ter um ambiente ergonômico”, acrescenta o sindicalista.
“Temos recebido reclamações quase que diariamente.”
A pesquisa do CPCT confirmou a recorrência dessa situação.
“Não houve mudanças nos benefícios. Então, corta-se o vale-refeição porque o trabalhador come em casa. Em compensação, ele não recebe um vale-internet, vale-luz elétrica, vale-computador, vale-manutenção”, exemplifica Janaína Visibeli.
O jornal onde a repórter Ana Júlia* trabalha foi um dos primeiros a implementar a modalidade remota.
Em março de 2020, foi anunciado um rodízio: a redação seria dividida em dois grupos, que trabalhariam presencialmente 15 dias cada. Antes do fim do mês, os empregadores mudaram de ideia e migraram todas as equipes para o teletrabalho.
“O jornal ofereceu um único benefício extra, que eu até achei importante: auxílio psicológico individual, de graça, por meio de uma plataforma online. Fora isso, nada”, conta Ana Júlia.
A empresa não oferece vale-refeição porque tem refeitório próprio, e o alimento é subsidiado conforme os ganhos de cada profissional. O vale-alimentação é de R$ 66.
“Quando fomos para casa, perdemos o refeitório, e o jornal nunca compensou essa perda, nem aumentou o VA. Seria o mínimo, porque pelo menos poderíamos preparar nossos próprios almoços”, afirma a trabalhadora.
O salário de Ana Júlia foi reduzido por três meses, conforme estabelecido pelo governo federal em Medida Provisória. Apenas naquele período, o vale-alimentação foi reajustado de R$ 66 para R$ 150.
Em relação aos equipamentos para teletrabalho, o caso dela é semelhante ao de Roberto Maia*, editor em um jornal do Rio de Janeiro. A empresa forneceu computadores, carregadores, cabo de internet, mouse e fones de ouvido. A diferença é que Maia recebeu um celular, com chip pós-pago – embora seu cargo não exija fazer entrevistas diariamente.
O editor carioca viveu um desafio a mais: o cuidado dos filhos, de dois e quatro anos, no período em que a escola ficou fechada.
“Antes da pandemia, os meninos passavam as manhãs na casa da avó, minha sogra. Só que, como ela faz parte do grupo de risco, ficou isolada vários meses, e eu e minha esposa tivemos que conciliar o trabalho com a atenção que as crianças precisam”, conta.
“Se eu dissesse que houve total compreensão da empresa em relação a essa situação, eu estaria mentindo. No fundo, eles sabem que é difícil, mas lá dentro sou visto como um trabalhador como qualquer outro, e se eu não fizer o que foi demandado começo a ser questionado.”
Janaína Visibeli lembra que, nas próprias relações de trabalho, o dispêndio de energia é maior quando se está em casa. Por isso, são cada vez mais frequentes os relatos de estresse, cansaço, ansiedade e problemas de sono.
“O homeoffice penetra no ambiente privado, de modo que o ambiente doméstico precisa ser reorganizado. Há uma dificuldade maior no relacionamento, então você tem que explicar mais aquilo que precisa, e isso aumentou o retrabalho”, analisa, a partir dos resultados da pesquisa.
“Houve aumento, de fato, no tempo de disposição para o trabalho. O relato que a gente teve, agora em 2021, é de jornadas ininterruptas. Porque o tempo ocioso, para descanso, também é transformado em trabalho – seja ele doméstico ou de cuidado [com familiares, por exemplo]”, completa Visibeli.
Ana Júlia diz que suas horas extras são contabilizadas em um banco de horas, mas nunca são pagas.
“Na prática, elas somem. O banco é confuso, e todos nós temos horas negativas, mesmo sem faltar e fazendo horas extras. O jornal não nos cobra essas horas, mas também nunca conseguimos usar esse banco para folgar, por exemplo. Eu nunca faltei ao trabalho, já fiz muitas horas extras e nunca ganhei uma folga”, questiona.
A jornalista conta que já usou períodos livres para adiantar tarefas, como a apuração de reportagens.
“Sei que outros colegas também fazem isso. A empresa provavelmente não sem sabe que isso acontece, mas mostra o quanto é impossível dar conta de todo o trabalho dentro do horário”, diz.
“É possível que isso não seja algo específico da pandemia, mas ao mesmo tempo acho que aquela sensação de ‘estou em casa mesmo, sem fazer nada’ acaba levando a gente a pensar que ‘não faz mal’ começar o expediente um ‘pouco’ antes, ou terminar um ‘pouco’ depois.”
Poço sem fundo?
Ana Flávia Marques alerta que o processo de precarização, que se agravou com a pandemia, não será necessariamente revertido ao final da crise sanitária.
“Algumas empresas já começam a comunicar os jornalistas que não vão ter mais sede física. O trabalho vai ser virtual. Isso impacta nos custos da empresa e, inclusive, na cooperação, na solidariedade e na resistência coletiva dos jornalistas”, observa.
“Estamos em um momento de transição, e essa precarização toda tem impacto na saúde mental do jornalista e na qualidade do seu trabalho.”
O SJSP tem feito assembleias virtuais e buscado manter a categoria mobilizada diante dos retrocessos.
“O sindicato atua no limite das suas possibilidades para frear esse movimento de precarização. Quanto mais organizada a categoria estiver, maior será o poder de negociação, de barganha e mobilização”, afirma Norian Segatto.
A tarefa não é simples. “Com o desemprego em alta, o trabalhador sente a pressão e muitas vezes tem receio de se organizar, porque tem conta para pagar, tem família para sustentar”, reconhece o sindicalista.
O jornal onde trabalha Ana Júlia planeja o retorno ao trabalho presencial nos próximos meses. Mesmo assim, a repórter teme que o ritmo de precarização se acentue.
“Há anos sentimos que a coisa só piora. Todos os anos, vemos muitas demissões, vagas sendo fechadas, editorias cada vez mais enxutas. ‘Não temos braço’ é uma das coisas que mais escuto, vinda de colegas de quase todas as editorias. Falta gente para fazer tudo o que precisamos. Eu sinto que já estamos todos no limite, e o fim da pandemia definitivamente não é uma luz no fim do túnel”, lamenta.
Janaína Visibeli analisa que o trabalho a distância mostrou-se vantajoso para muitas empresas, e deve se consolidar como tendência na imprensa brasileira.
“Esse processo, ao que parece, não tem retorno. O indicativo de muitas organizações é por um modelo híbrido, a partir de avaliações da produtividade e da redução de custos”, diz.
“A naturalização do trabalho mediado por plataformas [digitais] também não tem volta. Isso intensificou nosso trabalho, fez aumentar nossa disponibilidade, e é algo que não conseguimos controlar”, finaliza a pesquisadora.
Outro lado
Como o nome dos veículos foi ocultado da reportagem, o Brasil de Fato apresentou os questionamentos à Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e à Federação Nacional das Empresas de Jornais e Revistas (Fenajore).
Não houve retorno até a publicação desta reportagem.
* Nomes fictícios, para preservar a identidade dos jornalistas.
Edição: Vinícius Segalla