Vira e mexe o ex-presidente Lula fala sobre regulação da mídia e o que a gente consegue ver é uma repercussão imediata, geralmente negativa ou distorcida, deste debate. Quem geralmente repercute isso de forma hegemônica é a imprensa comercial, que é parte diretamente envolvida no debate e tem historicamente contribuído para que ele se torne raso e tendencioso.
A realidade é que nem sempre as falas do ex-presidente Lula sobre o tema são oportunas - muitas vezes vem perto de períodos eleitorais -, e isso dificulta o aprofundamento do debate que, por sua vez, é objeto de seríssimos estudos no campo das políticas de comunicação e da cultura.
Existe uma vasta literatura internacional e nacional sobre o tema da regulação dos meios de comunicação, bem como uma vasta experiência de países, normalmente enquadrados como democráticos, com a regulação de suas mídias. Mas esse combo de falta de oportunidade nas declarações do ex-presidente Lula com o oportunismo da mídia tem dado trabalho para nós, do campo das políticas de comunicação, que sempre precisamos retomar o lugar estrutural da regulação dos meios de comunicação para a democracia, pisar em alguns calos e colocar dedos em algumas feridas.
O primeiro ponto que é importante de ser retomado, para que a gente não perca a dimensão do problema que precisamos enfrentar é que: em 14 anos de governo do PT, todas as propostas de um lei geral para regular a mídia, construídas inclusive com participação social (como no caso da Conferência Nacional de Comunicação realizada em 2009) ou com inspiração nas propostas resultantes da conferência, foram solenemente engavetadas.
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É importantíssimo esse debate ser retomado e receber o tratamento que ele merece (antes tarde do que nunca), mas os elementos para o reconhecimento da importância dele já estavam dados desde o primeiro do governo do PT, no início dos anos 2000. E, na verdade, esse acúmulo é ainda mais antigo que isso, o próprio Partido dos Trabalhadores teve um papel fundamental na articulação de movimentos, como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que historicamente formularam sobre a necessidade de regulação dos meios de comunicação. Este debate foi fundamental para a elaboração do que hoje é uma das principais conquistas no âmbito das políticas de comunicação no Brasil, que é o Capítulo V do Título VIII da Constituição Federal.
Regulação da mídia no Brasil
Sim, existe regulação da mídia no Brasil e isso é tão antigo quanto o telégrafo, antes mesmo do Brasil República. No Brasil imperial existiam Decretos que regulavam as comunicações e já na década de 1930 tivemos as primeiras e principais regulações da radiodifusão (rádio e televisão). E na década de 1960, o Código Brasileiro de Telecomunicações, que apesar de anacrônico está em vigor até hoje, e ao longo das décadas, dezenas de leis foram feitas e regularam a comunicação de forma desordenada. Tivemos a Lei do Cabo, Lei das Rádios Comunitárias, a criação do Conselho de Comunicação Social, a lei que disciplina a participação de capital estrangeiro nas empresas jornalísticas e de radiodifusão, a lei que cria a Empresa Brasil de Comunicação e institui os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública.
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Há inclusive leis de regulam conteúdo, como no caso da lei que define punição diferenciada para quando os crimes resultantes dos preconceitos de raça ou de cor veiculados em meios de comunicação, ou a mais recente lei de tela que define cotas para produções nacionais no audiovisual, a regulação da publicidade, inclusive, com a proibição da publicidade infantil (que mudou substancialmente a programação das televisões no Brasil).
Isso, contudo, não nos coloca no rol das nações que têm uma regulação da mídia nos moldes democráticos porque uma regulação satisfatória dos meios de comunicação exige muito mais do que leis (muitas delas a serviço dos interesses privados) desconectadas. Uma lei geral das comunicações eletrônicas e de massa pressupõe que, no mínimo, os artigos da Constituição Federal sejam regulamentados e que tecnologias mais recentes, como a Internet, sejam também passíveis de regulação.
E por que então esse debate é sempre embargado pelos meios de comunicação?
A resposta a esta pergunta é um exemplo do próprio tema. Sem uma esfera pública regulada com princípios democráticos, apenas poucos têm acesso aos meios de comunicação de massa e, portanto, o direito a expor seus argumentos.
A falta de regulação gera e perpetua a concentração dos meios de comunicação e garantem a manutenção de monólogos onde só empresários podem ser ouvidos de forma ampla. E não, a internet não mudou esse contexto e, nos últimos anos isso tem se tornado ainda mais mais grave, voltando o poder às mãos de monopólio multinacionais (mas isso é tema para outro artigo). Como os concessionários e proprietários de meios de comunicação não têm interesse neste debate, ele é solenemente ignorado ou apenas levantam a bola para demarcar os seus discursos taxando a regulação como censura.
Na realidade, quando a sociedade civil e a academia bradam por uma reforma, uma atualização na regulação dos meios de comunicação no Brasil, isso envolve mexer nos interesses dos principais veículos de comunicação porque propõe por exemplo, discutir os critérios de monopólios e oligopólios dos meios de comunicação previsto no § 5o do Art. 220 da CF que prevê que "Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio". Sendo que até hoje não há uma lei que determine o que é monopólio e oligopólio na lógica das comunicações.
A regulação da mídia pode e deve ser feita em diferentes camadas e todas elas são importantes. Não dá para escolher se vamos fazer uma regulação econômica ou de conteúdo. As duas formas de regular são importantes e fundamentais para que a mídia funcione de forma ética e democrática.
Precisamos falar dos monopólios e oligopólios tanto quanto temos que falar da classificação indicativa, que protege as crianças de conteúdos impróprios ou abusivos. Temos que resolver a questão do conflito de interesse entre os parlamentares concessionários de emissoras de rádio e/ou televisão ou propriedade de veículos de mídia em geral, mas também temos que enfrentar a forma violenta e muitas vezes racista e misógina que os programas, conhecidos como policialescos, interpelam a sua audiência.
A violação de direitos humanos não pode e não deve ser aceita em nenhum veículo de comunicação e isso também pode ser interpretado a partir do Art. 221 da Constituição e de vários tratados que o Brasil é signatário.
E então, esta regulação se configura como censura? Respondo categoricamente que não. E poderia usar os exemplos da Inglaterra, França, Alemanha, Noruega, Japão ou da União Europeia para justificar que isso, na verdade, é uma pré-condição para uma sociedade plural e democrática.
Mas quem embarga este debate nunca esteve e não está preocupado com a censura, mas com a reserva de mercado, com o lucro e com o seu poder de pautar a sociedade com a visão hegemônica dos valores de uma classe dominante. A censura existe no cotidiano de milhares de redações no Brasil porque, na maioria das vezes, os veículos de comunicação estão nas mãos de políticos e/ou reféns dos anunciantes. Isso parece não ser uma preocupação de quem taxa de censura a regulação. Isso parece não gerar revolta e repulsa da população.
Uma regulação com critérios transparentes e amplamente debatidos pela sociedade não se confunde com censura porque ela é um acordo anterior e que responde a princípios socialmente validados, como em qualquer outro campo, não só da ordem econômica, mas também da ordem social.
Vale ressaltar também que o debate de regulação passa pela garantia de um operador de mídia público, como no caso da grande maioria dos países citados acima. Não faz sentido regular a mídia e não enfrentar a questão do monopólio da mídia comercial, por exemplo. Não faz sentido não ter uma regulação que busque fortalecer a democracia ampliando a diversidade de vozes e os conteúdos, que não passe por uma diversificação dos modelos de negócio das emissoras e que possam - nos casos onde existe o oligopólio da mídia comercial - garantir a coexistência de mídias públicas (em toda sua diversidade).
O artigo 223 da CF fala em complementaridade entre os serviços público, privado e estatal de radiodifusão e até hoje também não há uma regulamentação completa deste artigo. Tendo sido apenas parte dele regulado pela Lei 11.652 de 2008 que criou a EBC, mas que hoje também passa por um processo de desmonte, apoiado pelos veículos da mídia comercial.
Se o país conseguir sair da superficialidade do debate sobre regulação da mídia entenderá que os princípios da pluralidade e da diversidade devem atravessar todas as camadas da regulação, seja ela econômica ou de conteúdo. Seja ela de telecomunicações, radiodifusão ou internet.
Debate precisa ser aprofundado
Não estamos em condições históricas de retomar esse debate na profundidade que ele necessita. Um país que se aproxima muito mais de um medievalismo talibã do que de uma democracia, não me parece estar no melhor momento para enfrentar pautas “progressistas”. Infelizmente, esse debate não será travado de forma honesta na imprensa e serão necessárias coragem e compreensão estratégica da pauta para enfrentar a impopularidade que a medida ensejará em um primeiro momento.
Mas, assim como nas políticas de cotas, não vejo outro caminho que não o de enfrentar todo o autoritarismo, feudalismo, patrimonialismo e quaisquer outra qualificação que expresse o pensamento retrógrado das classes dominantes no Brasil para permitir construir de forma sólida as bases para a democracia no país.
Não se constrói uma democracia sem enfrentar o passado anacrônico e minha sugestão para o presidente Lula e toda sua equipe é que tenham muito cuidado sobre onde e como falar de regulação da mídia porque este é um debate que vai muito além das insatisfações do ex-presidente com a forma com que a imprensa o trata.
*Mariana Martins é jornalista e doutora em Comunicação (UNB).
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Distrito Federal
Edição: Flávia Quirino