Fome no Mundo

Organizações de base atuam para apoiar famílias vulneráveis à fome

Diante de quadro de fome que se agravou, organização de bairro se juntou ao Estado no "Argentina contra a fome"

Tradução: Ana Paula Rocha

Luján, Argentina |
Ocupação de terreno no bairro de Amerghino, do empresário Juan Chediack, réu em caso de corrupção - ARGMedios/Victoria Nordenstahl

Como será o mundo quando superarmos a pandemia? Teremos um mundo mais justo e mais cuidadoso? Haverá declínio no individualismo e meritocracia? Estas foram algumas das questões que analistas, políticos, jornalistas e a sociedade como um todo se fizeram no começo da pandemia.

Os ensinamentos de cuidado coletivo e a esperança de que está crise sanitária se tornaria uma mola em direção a um mundo mais justo foram desaparecendo conforme a pandemia avançava com força.

A cada passo, a pandemia ganhava intensidade, e a filosofia do “todos por si mesmos” foi adotada pela maioria dos governos ao redor do planeta em detrimento do “nós vamos sair disso melhores e juntos”, forçando as organizações sociais a preencherem a lacuna.

Depois de mais de um ano e meio de confinamento, algumas evidências mostram que o mundo não mudou. A pandemia aprofundou desigualdades sociais pré-existentes, e os beneficiários continuaram sendo os mesmos. 


Ação de solidariedade no mercado no bairro de Lanusse, na região de Luján / ARGMedios/Julieta Brancatto

A Argentina está retrocedendo

Na Argentina, os dados divulgados pela INDEC (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos, em português) no final de março são conclusivos sobre o assunto: 42% da população vive sob a linha de pobreza (um ponto percentual a mais do que no segundo semestre de 2019) e 10,5% vive sob a extrema pobreza (dois pontos percentuais a mais quando comparado ao mesmo período). 

O fator agravante para aqueles que estão na extrema pobreza é que a diferença entre o valor médio da renda familiar e o preço da cesta básica cresce a cada dia como resultado do aumento da cesta básica por conta da inflação.

Os mais afetados pela crise são os jovens: por volta de 8,3 milhões de meninos e meninas vivendo em situação de pobreza monetária, o que representa 62,9% do total de crianças e adolescentes; 2,4 milhões vivem em extrema pobreza.

Neste contexto, o governo federal, por meio do ministério do Desenvolvimento Social, lançou o programa "Argentina contra a Fome", para apoiar os setores mais vulneráveis da sociedade. A pasta liderada pelo então ministro Daniel Arroyo investiu mais de 133,2 milhões de pesos argentinos ao longo de 2020, o que representou um aumento de 451% em comparação com o ano anterior.

Por meio do Cartão Alimentar, primeira medida do Conselho contra a Fome, mais de 95,3 milhões de pesos (5 milhões de reais) foram investidos em todo o país. Até 20 de agosto, um total de 3.764.278 de famílias com crianças com menos de 14 anos; 48,820 famílias com crianças com deficiência; e 71,969 de mulheres grávidas. 

Os recipientes do programa receberam os seguintes valores: 6 mil pesos (320 reais) por mês para os que têm um filho, 9 mil pesos (482 reais) para famílias com dois filhos, e 12 mil pesos (643 reais) para aquelas com três ou mais filhos. Como parte do programa, fundos também foram alocados para cantinas e refeitórios comunitários que distribuem comida para famílias e comunidades.

Outra das iniciativas do governo argentino foi a extraordinária taxação de grandes fortunas, a ser paga por contribuintes que declararam renda maior que 200 milhões de pesos (10,7 milhões de reais).


Refeitório comunitário no dia do trabalhador, em Luján / ARGMedios/Victoria Nordenstahl

No final de abril, quase 80% deste grupo já havia pago o imposto, e o Estado conseguiu coletar 223 bilhões de pesos (cerca de 12 bilhões de reais) para a compra de equipamento médico, subsídios para micro e pequenos empreendedores, bolsas estudantis e programas de moradia em bairros pobres. Aqueles que não pagaram – cerca de 2 mil pessoas – foram longe o bastante ao ajuizar ações por considerarem a medida ilegal e inconstitucional.

:: Não tem coisa pior do que dormir com fome, relata moradora da periferia de Belém (PA) :: 

Solidariedade e organização: os pilares do programa de assistência alimentar

O impacto de quatro anos de políticas neoliberais e as restrições mais duras devido à pandemia global da COVID-19 restringiram a possibilidade para milhares de trabalhadores de desenvolverem atividades informais. 

Com a interrupção das estratégias dos setores populares para sobreviver, a população em situação de insegurança alimentar cresceu. Nesse momento, organizações sociais e das organizações de comunidade - impulsionadas por um espírito de solidariedade - surgiram para coordenar com o Estado formas de amenizar questões enfrentadas pelo povo.

Parque Lasa é um bairro no centro de Luján, cidade com 120 mil habitantes localizada na área oeste da populosa província de Buenos Aires. Lasa é um dos bairros de Luján historicamente esquecidos pelo Estado. 

Durante a fase mais severa da quarentena, mais de 200 refeições foram preparadas na Sociedade de Fomento de Lasa (uma organização de bairro sem fins lucrativos que trabalha para apoiar a comunidade) de segunda à quinta para dar assistência às famílias mais atingidas pela crise econômica.


Mantimentos guardados na cozinha comunitária no bairro San Jorge, em Luján / ARGMedios/Julieta Brancatto

Juan Acotto, da Coordenação de Trabalhadores Desempregados (CTD), explicou os primeiros passos desse trabalho de articulação, quando as medidas de distanciamento social foram anunciadas. “Enquanto a principal coisa a fazer era respeitar as medidas de isolamento, sabíamos que haveria um impacto na economia de quem vive dia a dia”.

Nos diferentes espaços de assistência alimentar operando em toda a área de Luján, mais de 9 mil famílias e uma população estimada em 35 mil pessoas foram apoiadas mensalmente.

Uma das estratégias da administração municipal foi a articulação com organizações sociais que promovem cozinhas para preparação de sopas no bairro. Por meio dessas cozinhas e das lanchonetes, 1,6 mil famílias receberam ajuda, o que equivale a 6,5 mil pessoas. 

:: ‘Fome no Brasil é fruto de decisão política’, diz Greenpeace ao Programa Bem Viver ::

Juan disse que a Área de Desenvolvimento Humano e o Comitê de Emergência Alimentar chamaram uma reunião para organizar o sistema de ajuda. Eles montaram uma série de grupos de bairro para levar adiante organizações sociais. 

“No Parque Lasa, a organização já operou um refeitório comunitário por anos”. Ele também comentou: “Nós tornamos essa estrutura acessível e então começamos a trabalhar juntos com a Sociedade de Fomento e o Centro de Atenção Primária de Saúde. É assim que foram formados os subcomandos do Parque Lasa, Americano, Barrio Universidad e El Trébol."

O líder do CTD, Aníbal Verón, destaca dois conceitos: solidariedade e organização. “Diante desta eventualidade, muita solidariedade emergiu em nossa comunidade. Nós sabemos de vizinhos - camaradas que, dia após dia, dão tudo que têm para vencer o desafio que é a fome em bairros tão pobres como esses". 


Aviso sobre falta de alimentos - "Não há leite" - demonstra tamanho do problema da fome durante a pandemia / ARGMedios/Victoria Nordenstahl

Do mesmo modo, Elías Sosa, vizinho que se aproximou da Sociedade de Fomento para ajudar no refeitório comunitário, identificou: “Estas situações são quando solidariedade e comprometimento social tornam-se visíveis.”

Elías comentou também que as pessoas que da comunidade pertencem aos setores da sociedade que foram mais afetados pelas medidas de isolamento social. “Ainda que estejamos todos passando por este momento de maneiras distintas, acredito que temos uma palavra em comum que é sentida cegamente: a empatia”.

Além disso, ele disse que esse momento deveria ser bem utilizado pelo Estado e pelas diferentes organizações de bairro, sociais e militantes para trabalhar juntos e conseguir uma contribuição verdadeiramente efetiva para a situação vivida.

:: Sem teto e sem comida: na capital do Brasil, só doações salvam famílias da fome ::

A situação de abandono enfrentada por muitas comunidades em toda a Argentina em decorrência da pandemia mostrou ao Estado a urgência de implementar medidas para enfrentar os problemas estruturais do país. A solidariedade das organizações sociais e dos grupos de bairro foi uma das forças motoras que tornaram possível aos excluídos sobreviver. 

Com o fim da pandemia ainda distante, a lenta imunização e os crescentes discursos de ódio de inescrupulosos políticos de oposição famintos por poder, está claro que a urgência é sanar a fome que atormenta a maioria. Isto fará com que seja possível avançar na resolução de outros temas urgentes, como educação e desenvolvimento, que poderiam finalmente devolver aos argentinos a dignidade que lhes foi tirada ao longo de anos de neoliberalismo voraz. 

fome no mundo é uma série colaborativa produzida por ARG Medios, Brasil de Fato, Breakthrough News, Madaar, New Frame, Newsclick e Peoples Dispatch. 

Edição: Arturo Hartmann