Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o mundo produz comida suficiente para alimentar 10 bilhões de pessoas. Ainda assim, mesmo nos Estados Unidos, o país mais rico do planeta, uma em cada três famílias com crianças passou fome este ano.
Mesmo antes da pandemia, estatísticas oficiais do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos registrou que 35 milhões de pessoas passaram fome em 2019 – 10 milhões delas eram crianças.
A pandemia de covid-19 sobrecarregou a situação, expondo até mesmo aqueles que se sentiam “seguros” ante a possibilidade de ficar sem comer. Em uma sociedade na qual a alimentação não é um direito humano, mas sim um bem a ser comprado, como é que se espera que as pessoas comam sendo que elas não podem trabalhar?
A resposta curta: elas não comem. Recebendo praticamente nenhuma ajuda do governo federal, os trabalhadores nos EUA foram dispensados aos milhões. Do dia para a noite, as pessoas se viram imaginando de onde viria sua próxima refeição. Famílias foram forçadas a escolher entre comprar medicamentos indispensáveis ou comida suficiente para alimentar a todos.
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De fato, no início do verão (por volta de junho no hemisfério norte) de 2021, 63 milhões de pessoas nos Estados Unidos disseram a pesquisadores do governo que elas não conseguiam pagar suas despesas domésticas habituais, em particular a dupla formada por alimentação e moradia, mas também empréstimos estudantis [para pagar curso superior] e remédios.
O fardo é também compartilhado desigualmente. Ao comparar-se com adultos brancos, os adultos negros e os latinos eram, respectivamente, três e acima de duas vezes mais propensos a relatar não terem comida suficiente.
Luta para sobreviver
Foi neste contexto que o Unity and Survvival Program (Unidade e Sobrevivência, em português) nasceu na cidade da Filadélfia, exemplo representativo do tipo de “programas de ajuda mútua” que pulularam pelo país durante a pandemia.
A iniciativa, lançada pelo Centro de Libertação da Filadélfia (Philadelphia Liberation Center), tem por objetivo cumprir as obrigações não atendidas pelo governo durante o período pandêmico.
O programa Unidade e Sobrevivência tem uma tarefa clara: identificar os moradores da Filadélfia que estão lutando para conseguir comida, entregá-la a eles e construir uma rede comunitária maior para mobilizar-se em defesa do direito à vida.
Uma rede de distribuição em especial foi elemento crucial para o programa, como assinala Hilda, uma das voluntárias:
“Havia um alto nível de desconfiança e incerteza, além de relutância por parte de muitos moradores não apenas nesta vizinhança, mas tenho certeza de que por toda a cidade e país, de acabarem se expondo ao vírus.
Com tantos idosos e crianças com condições crônicas de saúde nesta área, sentimos que precisávamos organizar não apenas os suprimentos, como também a rede para sua distribuição.”
Inicialmente, os organizadores do programa procuraram por doações de alimentos e criaram uma campanha no GoFundMe [plataforma de arrecadação de fundos online] para pagar por esses mantimentos.
O GoFundMe tornou-se uma maneira popular para pessoas pagarem por necessidades básicas como comida e custos médicos durante a pandemia, já que o apoio governamental é insuficiente. O Unidade e Sobrevivência proveu assistência fundamental para famílias em situações precárias durante o início deste período, o que atraiu ao programa atenção e apoio por todo o país.
Em meses, o programa atraiu a atenção de grupos sem fins lucrativos na cidade, os quais começaram a doar caixas de alimentos, fazendo crescer significativamente a quantidade de comida entregue.
O Unidade e Sobrevivência também expandiu seu alcance ao atrair membros da comunidade para os seus times de entrega.
Os organizadores identificaram líderes comunitários e aqueles que pudessem recolher caixas de alimentos que estivessem interessados em apoiar o programa; eles foram nomeados “capitães de blocos” e eram responsáveis por assegurar que as caixas de mantimentos fossem entregues para seus próprios bairros, desta forma multiplicando o alcance do programa.
Um fator de destaque da rede de capitães de blocos é a importância de um rosto familiar e de confiança que ajuda a superar a vergonha que surge ao procurar-se por assistência em uma sociedade com um ethos extremamente individualista, sociedade na qual cada um deve “caminhar com suas próprias pernas”. Como notou Boogie, um dos capitães de bloco:
“Meu maior objetivo quando entrego os alimentos é que as pessoas tenham o recurso de que precisam sem que se sintam julgadas por isso, sem que tenham qualquer tipo de barreira”.
O Centro de Libertação foi capaz também de mobilizar apoio de organizações comunitárias com as quais trabalharam no passado em uma variedade de lutas sociais. Por exemplo, eles se juntaram ao Norris Square Comunnity Action Network, rede ativa nas lutas antigentrificação.
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Eles também conseguiram dialogar com comunidades religiosas, juntando-se a uma igreja, a La Vid Verdadera, onde membros do Centro de Libertação já estavam trabalhando oferecendo mentorias a imigrantes da América Central como parte de um programa conjunto de educação comunitária, a Escuelita Óscar Romero.
O Centro de Libertação de Philly estima ter distribuído 100 mil refeições até o momento, número que continua a crescer a cada semana. Em seu ápice, o programa servia mil famílias semanalmente. Atualmente, eles servem 750 famílias, o que ressalta a persistência da fome, mesmo com uma ligeira melhora da pandemia nos Estados Unidos.
Como outro organizador do programa relata:
“Nós estamos chegando num ponto agora no qual podemos obter um fluxo constante de alimentos e suprimentos, o que é fantástico, pois apenas cinco meses atrás tínhamos meios muito limitados à nossa disposição. Agora, é possível pensar no crescimento ainda maior desse programa.”
Mudança de sistema, não caridade
Membros do Centro de Libertação da Filadélfia estavam orgulhosos do aparato que desenvolveram, porém todos disseram a mesma coisa sobre suas fraquezas: não são grandes o suficiente para atender ao tamanho da demanda. Ainda que o programa tenha conseguido alimentar dezenas de milhares de pessoas na Filadélfia, há dezena de milhões de pessoas com fome nos Estados Unidos.
O Unidade e Sobrevivência nos dá um vislumbre do que é possível, mas teria que ser ampliado em um nível que apenas as autoridades federais podem alcançar para poder, então, reduzir significativamente a pobreza. O programa demonstrou que os residentes da Filadélfia estão prontos e dispostos a trabalhar pela soberania alimentar em suas cidades; o que falta é vontade política.
É por isso que o programa desafia constantemente, seja em seus pronunciamentos ou nas comunidades, a noção de que alimentos podem ser comprados e vendidos por lucro, ressaltando que está é a razão primeira para a existência da fome.
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Uma coisa ficou clara durante o pico da pandemia no ano passado, quando viralizaram vídeos de fazendeiros derramando leite que não fora vendido e esmagando com tratores vegetais não comercializados. Da perspectiva de um sistema centrado no lucro, as sementes não valiam a pena porque não podiam ser vendidas.
Destruir sementes faz sentido se o objetivo é maximizar ganhos, mas não tem qualquer sentido se o objetivo é acabar com a fome. No capitalismo, não há incentivo para sustentavelmente serem produzidas comida e criadas estruturas de distribuição. De fato, de toda a comida produzida nos EUA, 40% vão parar no lixo.
Refletindo sobre essas realidades, Hope, outra voluntária do programa, disse ao BreakThrough:
“Sabe, é por isso que somos socialistas. Nós acreditamos que apenas a classe trabalhadora pode tomar conta de si mesma; a burguesia, eles não irão se tornar, de repente, gentis e decidir por ser caridosos quando, na verdade, se tornam caridosos somente em nome de sua própria preservação.”
Um fim para a fome, como o programa Unidade e Sobrevivência enfatiza, pode ser possível apenas ao adotar-se um sistema sócioeconômico que prevê maximizar o bem-estar humano, não o lucro de alguns poucos.
A fome no mundo é uma série colaborativa produzida por ARG Medios, Brasil de Fato, Breakthrough News, Madaar, New Frame, Newsclick e Peoples Dispatch.
Edição: Arturo Hartmann