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Artigo | Brasil: a violência do mercado e do Estado como signos da sociabilidade

Para o ultraliberalismo mercantil o que se construiu no passado, como patrimônio público e direitos, tem que ser apagado

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
"Violência que se materializa pelo culto às armas, ódio aos adversários e ao pensamento divergente, utilizando a pedagogia da ameaça e do medo. " - Marcelo Camargo/Agência Brasil


Há pouco mais dois anos, o sociólogo Francisco de Oliveira nos deixava, mas a sua obra que interpreta o que nos caracteriza estruturalmente como sociedade permanece e nos dá chaves para entender o drama que vivemos no presente.

Drama, onde a violência do mercado e do Estado se afirma como código dominante de sociabilidade. Num texto escrito em 19981 sobre as perspectiva do novo milênio analisa, de forma densa, o longo e o médio prazo que nos permite desvelar o momento atual.

Oliveira expõe-nos as marcas da colonização e do regime escravocrata (1535-1888) e seus traços que permanecem no período em que o Brasil entra nas relações propriamente capitalistas. Neste longo período, até 1990, sublinha que a sociedade brasileira, ainda que de forma caricata e “fora do lugar”, pautou-se pelo ideário iluminista. Nele se postula a possibilidade da integração de todos, embora de forma desigual, aos direitos políticos, sociais e individuais.

Neste longo tempo a burguesia brasileira até a década de 1990 não conseguiu ter a hegemonia no seu projeto societário. A prova disto, para Oliveira, são dois períodos de ditadura (1937-1945 Getúlio Vargas e 1964-1985, militar) e que, para impedir mudanças mais profundas, se valeram do arbítrio para impor os interesses da classe dominante. Oliveira situa o sinal de início da ruptura do ideário iluminista de sociabilidade e a adoção da reação mercantil do neoliberalismo e do conservadorismo no governo Fernando Collor de Melo.

Quem, todavia, teve a liderança para esta mudança efetiva foi Fernando Henrique Cardoso, que, como destaca Oliveira, se trata de um intelectual que mudou de lado. Ele deu a senha do que seria o novo tempo no Brasil no contexto da globalização do capital, dentro do qual não haveria mais lugar para todos, sendo inevitável a exclusão de um quarto da população brasileira. E o proclama, em conferência internacional, ao afirmar que 40 milhões de brasileiros estavam condenados à exclusão no novo Brasil.

Assim, para Oliveira, o principio iluminista da “esperança” que carrega o horizonte do alcance dos direitos civis, políticos e sociais deu lugar para a reação conservadora do realismo mercantil.

O realismo do neoliberalismo que efetiva a revogação de direitos conquistados, a venda do patrimônio público e a contestação das terras indígenas cobiçadas pelo agronegócio e pela expropriação da riqueza do subsolo.

A perspectiva que Oliveira percebia, há vinte anos, era de que o realismo mercantil conservador, para se manter, tenderia a chegar à regressão econômica do projeto nazi-fascista que tem na violência a moeda de troca como código da sociabilidade. E isto tanto mais pelo fato que para ele o processo de formação da burguesia brasileira pode ter dado a aparência de hegemonia, mas o que a identifica melhor é a de totalitarismo que se expressa por um processo cujo epílogo é um projeto de apartheid social.

A primeira década e meia do século XXI indicavam que Francisco de Oliveira estava, pelo menos parcialmente, enganado. Parcialmente porque as forças do capital, internas e externas, não somente condicionaram os governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) a não efetivar mudanças estruturais, como não toleraram as políticas de inclusão justamente dos 40 milhões tidos como necessariamente excluídos. Também não toleraram a nova geopolítica na América Latina e mundial não subalterna ao imperialismo Norte Americano.

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Não por caso as forças políticas que governaram o país sob o comando de Fernando Henrique Cardoso foram as que lideraram um novo golpe, agora pelas armas da mentira e calúnia parlamentar, jurídica e midiática contra a presidente Dilma Rousseff. Desgraçadamente a análise de Francisco de Oliveira acabava de se confirmar. Consumado o golpe, a reação ultraconservadora instalou-se voraz e célere na dizimação de direitos, vendas do país e de contrarreformas ultraconservadores que desempregam, mutilam direitos e congelam o futuro e a “esperança”.

Com efeito, no quarto mês do governo golpista de Michel Temer aprovou-se a emenda constitucional 95/2016 que congela o teto dos gastos públicos por vinte anos. Vale dizer, congela-se a esfera dos direitos universais. Com seis meses do golpe, efetivou-se o congelamento do futuro para a grande maioria dos jovens brasileiros, mediante a contrarreforma do ensino médio (Lei 13.415 de 16.2.2017).

Esta liquida o sentido e o direito da educação básica, mediante os itinerários formativos onde, na prática, a maioria será encurralada para a educação técnica e profissional descaracterizadas. Serão gerações mutiladas em sua formação e despreparadas para a cidadania consciente e para o processo produtivo sob a atual base científico técnica. E esta negação nos condena a continuarmos um país gigante com pés de barro.

Com onze meses do golpe aprovou-se a contrarreforma trabalhista (Lei 13.467/2017). Esta liquida os direitos conquistados duramente ao longo do Século XX pela classe trabalhadora. Das grandes contrarreformas os golpistas somente não conseguiram completar a da Previdência e fazer a Reforma Administrativa. O cálculo que fizeram de voltar ao poder com o serviço sujo feito, entretanto, fracassou.

O que Francisco de Oliveira nos apontava como possibilidade da anulação da esperança pelo realismo mercantil e, o seu par, o signo da violência como o código de sociabilidade, de forma perversa e cruel, materializou-se sob o projeto totalitário das forças sociais e políticas do governo Bolsonaro.

Para o ultraliberalismo mercantil o que se construiu no passado, tanto de patrimônio público, quanto de direitos, tem que ser apagado. Do mesmo modo não há perspectiva de futuro. O que conta é o tempo presente do impulso mercantil para o qual tudo pode ser privatizado.

A Reforma Administrativa, PEC 32, representa o derradeiro golpe e tipifica a política econômica efetivada pelos regimes nazi-fascistas como sublinha Oliveira. Privatiza-se, inclusive, o que é tombado. O símbolo disto é que na lista de privatizações do ministro Guedes inclui-se o Palácio Capanema, sede do Ministério da Educação até a transferência de capital do Rio de Janeiro para Brasília e ícone mundial da arquitetura moderna.

O totalitarismo econômico da gestão Guedes tem seu par no conservadorismo das forças sociais que sustentam o projeto do governo Bolsonaro e que adotam, como signo de sociabilidade, a violência. Violência que se materializa pelo culto às armas, ódio aos adversários e ao pensamento divergente, utilizando a pedagogia da ameaça e do medo.

À venda do patrimônio público, que anula o futuro, somam-se: a militarização das escolas, a intervenção na autonomia universitária e nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, a censura ao campo cultural e educacional e a política do livro didático oficial orientado pelo moralismo e pelo fundamentalismo político e religioso,

A junção do fundamentalismo do mercado com o político e o religioso não nos dá perspectiva de futuro. Não esqueçamos que o que estamos vendo acontecer no Afeganistão foi produto do imperialismo norte-americano para desestabilizar o regime democrático que não se alinhava aos seus interesses.

Para isto treinou e armou milícias que uniam política e religião. Um destes grupos formou o Talibã que, em nome de “deus,” tortura, mutila e mata os que se opõem à sua doutrina fundamentalista. A história tem que nos ensinar algo e urgente, antes que seja tarde demais.

 

* Gaudêncio Frigotto é filósofo e pedagogo, mestre e doutor em Educação. Professor titular aposentado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e, atualmente, professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

 

 

Edição: Anelize Moreira