O Afeganistão de novo chamou a atenção do mundo nesta última semana de agosto, desde o dia 15, quando o Talibã tomou a cidade de Cabul no contexto da retirada das tropas dos EUA do país e da fuga do governante apoiado pela grande potência e por europeus, Ashraf Ghani. Desde então, muitas perguntas surgiram sobre quem é o Talibã, o que pode acontecer às mulheres afegãs e sobre o papel dos EUA no atual cenário político do país.
O Brasil de Fato conversou com Nivi Manchanda, cientista política e pesquisadora na área de Relações Internacionais, palestrante na Universidade Queen Mary, em Londres. Ela é autora do livro “Imaginando o Afeganistão: História e Política do conhecimento imperial” (“Imagining Afghanistan: The History and Politics of Imperial Knowledge”).
O interesse pelo tema surgiu com a Guerra ao Terror, ao ver a forma como os EUA exerciam uma política invasiva em diferentes lugares do mundo. “Meu foco inicial estava no Iraque, mas no processo dos estudos, quando percebi que havia uma guerra anterior a qual era dada menos atenção, sobre a qual não havia uma análise apropriada, isso levou a um interesse sobre o Afeganistão”. Durante a entrevista, uma conversa sobre a história, a política local e a questão de gênero nas ações intervencionistas no Afeganistão.
Brasil de Fato: Sobre a reação de curiosidade das pessoas em relação ao que ocorre. Tendo um estudo profundo sobre o Afeganistão, como você analisa as perguntas que surgem: “Quem é o Talibã? Os soviéticos estavam lá? Qual o papel dos EUA? O que vai acontecer com as mulheres?”
Nivi Manchanda: Essa curiosidade é na verdade uma amnésia liberal, uma amnésia do salvador branco. A mesma coisa ocorreu em 2001, essa coisa de quem é o Talibã, quem é a Al-Qaida, quem são essas mulheres, como podemos salvá-las.
Mas o fato de que vinte anos depois, depois de inúmeras mortes, podermos dizer a mesma coisa e fazer as mesmas perguntas apenas reflete que não aprendemos nenhuma lição, e também que somos completamente ignorantes e insensíveis a nossas próprias implicações em criar esses problemas.
Você coloca o Afeganistão como um local que é objeto da produção de conhecimento colonial. Mas você observa em seu livro que o país é um lugar colonial marginal, que não está no centro de ambições imperiais. O que isso quer dizer?
A natureza quase-colonial do Afeganistão reflete como agentes intervieram nele e como interagiram com ele por muitos séculos. Os britânicos, na primeira metade do século XX, olhavam para o Afeganistão como uma zona intermediária entre duas entidades significativas: a Índia por um lado, porque era parte de seu Império, a Joia da Coroa; e por outro, a Rússia, a União Soviética. O Afeganistão era o lugar intermediário.
Portanto, ainda que o Afeganistão tenha sido sujeito a uma restruturação invasiva, a intervenções consideravelmente amplas, nunca foi propriamente colocado na alçada da colonização. O Afeganistão nunca foi parte do Império, da CommonWealth. Em anos posteriores, o engajamento com esse território era algo marginal, periférico ou instrumental. É colonial, mas não integralmente colonial como a Índia foi para o Reino Unido ou como a Argélia foi para a França. É algo diferente, e é cercado por esse mistério exatamente por conta disso.
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Você menciona processos de construção de nação e construção de Estado, que são processos contemporâneos de intervenção externa, mesmo podendo serem considerados imperiais. Na perspectiva de seu estudo, como isso entra no conhecimento imperial?
Esses conceitos que você menciona são conceitos neocoloniais orientalistas. A ideia de que Estados como o Afeganistão sejam Estados falidos ou mesmo párias é o próprio problema de como são enquadrados. O Afeganistão é muito complexo. Na verdade, há um Estado ali hoje, com instituições que levaram um tempo para serem construídas, mas elas emergiram. O que os EUA fizeram foi minar esse Estado sustentando elites corruptas que não se comunicam com o resto da população.
Richard Halbrooke (enviado especial do governo de Barack Obama para Afeganistão e Paquistão), por exemplo, decidiu dizer que AfPak (Afeganistão e Paquistão) eram uma entidade única. De diversas formas, os EUA minaram a soberania do país. Pensavam: “podemos desenhar a fronteira porque a lei internacional aqui não se aplica”. A construção de nação é em si um empreendimento orientalista complicado, mas mesmo pelos próprios critérios dos EUA e de países ocidentais, fracassaram em fazer qualquer coisa de valor no Afeganistão.
Dentro desse discurso do salvador, uma das principais questões que surgem é sobre a mulher afegã. Você enxerga algum problema nesse tratamento?
Esse tem sido o tema. Neste exato momento, o que vemos é que o Talibã deve ser destruído enquanto a mulher é quase sempre o objeto que pode ser salvo. Em 2001, na invasão dos EUA, salvar mulheres em burcas azuis era uma grande questão. Mesmo agora, o discurso no Ocidente imediatamente foi revertido para isso: “o que acontecerá agora a todas essas mulheres que estão de volta às burcas”.
Por vezes, esse discurso pode ter legitimidade, já que, sim, o Talibã é terrível e muito provavelmente será terrível às mulheres. Mas há um elemento voyeurístico, já que estamos consumindo a dor dessas mulheres. Por outro lado, com esse discurso, mudanças materiais de verdade quase se tornaram secundárias. Isso é um sensacionalismo do “complexo de salvador”, cujo outro lado da moeda é destruir os maus elementos, sejam eles elementos fundamentalistas na forma do Talibã ou simplesmente homens pashtuns.
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No seu livro você trabalha com diferentes autoras feministas e faz uma reflexão sobre o uso do véu por parte das mulheres afegãs, a diferença entre a imagem que construímos sobre o uso e a realidade dessas mulheres que escolhem usá-lo. Como isso se relaciona com o complexo de salvador intervencionista?
De fato, há esse debate sobre se mulheres muçulmanas precisam realmente ser salvas, mas mulheres afegãs não necessitam de um salvador. Elas podem precisar de assistência material, precisam do fim da guerra, da pobreza, de confrontos civis. Mas a salvação da qual falamos é, em grande parte, sobre “nós”, de forma que podemos nos sentir melhores como espectadores ocidentais.
Em certos contextos, o véu e a burca têm diferentes significados para diferentes pessoas. Alguém pode usar porque se sente mais confortável com ela, por ser sinal de religiosidade. O véu permite que possam viajar sem serem percebidas ou ter acesso a lugares que de outra forma não teriam. Claro, isso não quer dizer que eu seja defensora assídua de políticas de burca impostas pelo Estado, mas retirar agência das mulheres que as vestem também é problemático.
De fato, um dos trechos de seu livro diz: “Pouca atenção foi dada às condições materiais que podem ser igualmente responsável pelas desigualdades de sexo no Afeganistão. Anos de guerra, uma exagerada militarização da sociedade, pobreza debilitadora e uma economia em grande parte baseada nas drogas tiveram consequências devastadoras para o povo do Afeganistão, tanto para homens como para mulheres.”
Exato, há muitos outros fatores que são igualmente importantes na desigualdade de gênero que são ignorados ou propositalmente negligenciados para que se possa ter conquistas rápidas ou para que se sintam melhor, o que se insere nesse mantra do “complexo de salvador” do qual estamos falando.
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Por fim, gostaria de abordar o conceito de “tribo”, um termo que foi colado na descrição de grupos políticos afegãos. O quanto isso prejudica a compreensão do contexto local?
Na verdade, tribo é um termo clichê para descrever toda a sociedade afegã, um termo que se tornou um desses estereótipos. O que eu busquei fazer, e o que é importante, é que a tribo em si é uma categoria antropológica que foi justaposta ao Estado. Há uma organização estatal e uma organização tribal.
Muitos sociólogos e antropólogos se distanciaram da noção de tribo, já que ela não ajuda muito em termos explicativos, já que ela é racializada, é redutora, não ajuda a entender a situação. Essa é uma crítica mais direta à noção de tribo. Mas vamos dizer hipoteticamente que não aceitamos essa crítica, que detectamos que alguns grupos são tribais, com certos elementos que lhe dão a característica de tribalidade.
O problema é que no Afeganistão as tribos simplesmente não são descritas como instituições políticas válidas. Ou seja, nesse contexto significa que “eles são atrasados”. Então organizações internacionais ou movimentos podem dizer “essas tribos são atrasadas, não progressistas, não podemos trabalhar com eles”. Ou então as tratam por meio de uma visão mais condescendente das tribos, que as consideram como nobres selvagens. Essas duas formas são problemáticas porque não nos ajudam a entender a diversidade das organizações políticas do Afeganistão.
Edição: Thales Schmidt