Afeganistão

EUA querem apagar derrota; Talibã faz primeiros movimentos em país dividido e vulnerável

Enquanto ação coordenada por Joe Biden divide opiniões, o Talibã buscam legitimidade internacional

Brasil de Fato | Los Angeles (EUA) |
Em imagem do Comando Central dos EUA, soldados partem do Aeroporto Internacional de Cabul, em direção ao Kuwait, em 13 de agosto de 2021 - Ryan Brooks / US Central Command (CENTCOM) / AFP

Diante do que vemos no Afeganistão, não há motivos para comemorações, nem por parte do afegãos, nem por parte dos estadunidenses. "Sem dúvida alguma o que vimos em Cabul vai enfraquecer os Estados Unidos", disse à reportagem do Brasil de Fato o Professor de Antropologia da Williams College, David B. Edwards. "O prestígio americano foi arranhado, o que vimos foi uma humilhação política e diplomática, que coloca em xeque a noção de competência americana", afirmou.

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Pesquisador da história e da política do país, Nishank Motwani é diretor de Pesquisa e Política da Consultoria Assess Transform Reach (ATR). Ele afirma que o sentimento local em Cabul e nas demais cidades afegãs é de abandono.

"A maioria das pessoas com quem falei, ou pelo menos com quem consegui falar, já que boa parte da população está inacessível, se diz destruída". E completa: "elas sentem como se tivessem sido entregue aos lobos, e que é apenas uma questão de tempo para que o Talibã batam em suas portas — e isso será o fim da linha para muitas delas".

Essa não é a primeira vez que os Estados Unidos deixam os afegãos "na mão". Como relembra o professor Edwards, o exército estadunidense deixou o país em 1989, depois da saída dos soviéticos. Depois, sob a gestão de George W. Bush (2001-2008), os Estados Unidos, a partir de 2005, focaram a atenção no esforço de invasão do Iraque – "e isso foi um desastre à parte", pontua.

Essa sequência de erros, por si, já indicava que a retirada das tropas seria desastrosa, já que a história se repete quando não aprendemos com o passado.

"Nós fomos para o Afeganistão sem saber nada do país, mas chegamos com essa ideia de reconstruir o país à nossa imagem e semelhança. E isso não foi apenas estúpido, mas arrogante da nossa parte. A verdade é que não entendemos nada desse lugar, nada desse povo e nada desse governo", sentencia James Gelvin, Professor de História da UCLA.

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Justificativa para uns, desculpa esfarrapada para outros

Depois de abreviar suas férias de verão por conta da proporção internacional que o caso tomou, o presidente Joe Biden falou sobre sua decisão. "As tropas dos Estados Unidos não podem ou não devem lutar e morrer em uma guerra que a própria força afegã não está disposta a lutar", afirmou o democrata em seu pronunciamento.

De fato, os Estados Unidos treinaram e armaram cerca de 300 mil homens afegãos ao longo dos vinte anos de ocupação. O investimento total no país passa da casa de 1 trilhão de dólares. "Demos a eles todas as ferramentas que precisavam. Pagamos seus salários e oferecemos manutenção para sua força aérea – algo que o Talibã não tinha", concluiu o mandatário.


Biden insiste que os Estados Unidos tinham um objetivo simples no Afeganistão e foi cumprido / POOL / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP

Embora possa soar razoável tal explicação, sobretudo depois da fuga repentina do presidente afegão Ashraf Ghani, alguns discordam dessa narrativa.

"Em 2019, Ghani disse, no Fórum Econômico Mundial, que as forças do Afeganistão perderam 45 mil homens ao longo dos cinco anos de seu governo", comenta Motwani. Ele aponta que, de acordo com estimativas levantadas por universidades estadunidenses,  a guerra já custou cerca de 60 mil vidas. “Acho que esses números mostram que os afegãos estão, sim, dispostos a lutar contra o Talibã".

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Avaliando como "embaraçoso" o discurso de Biden, Motawani concorda com outros especialistas que o colapso de Cabul aconteceu de forma mais rápida do que qualquer um poderia prever, mas que isso não valida em momento algum a justificativa da Casa Branca. 

"A história mostrou que no Afeganistão, pelo menos nos últimos quarenta anos, a vitória não tem necessariamente a ver com força militar, mas com ataques psicológicos. As pessoas que 'mudaram de lado' não o fizeram porque concordam com o Talibã, mas porque era a única forma de elas sobreviver", pontua o especialista. 

A moral e o psicológico do povo afegão, ainda de acordo com a análise de Motwani, ficou ainda mais abalada depois do acordo de paz assinado entre Estados Unidos e Talibã, em 2020, sob o mandato de Donald Trump. "Houve um sentimento generalizado de traição. O governo afegão não foi levado em conta porque o tratado foi apenas entre o governo Trump e o grupo afegão . Além disso, os americanos aceitaram todas as condições impostas, o que incluiu a soltura de 5,5 mil prisioneiros que estavam sob tutela do governo do Afeganistão. Eles voltaram ao campo de batalha". 

Há quem concorde com a retirada, como é o caso do professor James Gelvin. "Acho que é importante entender de uma vez por todas que ninguém ganha ou perde no Afeganistão, e que nós não estamos abandonando a população local ou nossos aliados. Essa guerra foi um erro e agora é hora de remediarmos isso". E completa: "nossa proposta, de convertê-los a uma democracia, foi equivocada". 

Reconhecimento internacional

A China foi a primeira superpotência a acenar nesta direção, sinalizando a intenção de trabalhar ao lado do Talibã. Outros países apontaram que apenas reconhecerão a liderança caso os direitos humanos sejam respeitados. Nesta quarta-feira (18), o Fundo Monetário Internacional (FMI), sob pedido de Biden, indicou a possibilidade de bloquear fundos ligados ao governo afegão.  

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"Acho que até a alta hierarquia do Talibã reconhece que, se quiserem desempenhar o papel de um governo, terão de atender às necessidades de sua população, fornecendo ajuda, gerando empregos, promovendo a segurança e combatendo a corrupção endêmica que foi vista sob os governos sob ocupação americana de (Hamid) Karzai e Ghani", afirmou Edwards. 

Conhecedor das estruturas locais por ter realizado trabalho local, Motwani acha pouco provável que essa mudança aconteça de fato. "Devemos julgar o Talibã pelas suas atitudes, não pelas promessas. Na última coletiva de imprensa, por exemplo, os líderes disseram que respeitariam certos direitos, mas quando eram questionados sobre como fariam isso, não explicaram. Essa escolha de não detalhar seus planos é deliberada, já que um conceito vago é muito flexível e pode ser aplicado de maneiras distintas."


Membros do Talibã tomam o palácio presidencial do Afeganistão em Cabul / Al Jazeera / AFP

Para o professor Edwards, o Afeganistão não tem condições de se manter sozinho, sobretudo em uma época em que a questão climática impõem uma colaboração inédita. 

"O Afeganistão é um dos países mais vulneráveis a mudanças climáticas. Em termos de abastecimento de água, de dependência do derretimento da neve para alimentar sua rede elétrica, o país tem enormes problemas ambientais com os quais terá que lidar. O Talibã será capaz de fazer isso? Eles vão precisar de ajuda internacional. Então, eles terão que provar que não são apenas uma máquina ideológica empenhada em destruir os americanos; vão ter que mostrar que há um governo que é capaz de lidar com todos os problemas que todos os Estados-nação estão lidando agora. Esse é o teste".

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A medida mais urgente para buscar diálogo externo é o afastamento da questão das drogas. O Talibã fez da produção e tráfico de drogas, como heroína e ópio, sua principal fonte de renda. 

"Agora, acho que eles vão buscar fechar acordo com os paquistaneses para rever a questão do gasoduto. Com os chineses para a mineração. Assim terão outras fontes de receita". E completa, "paralelamente, o Talibã também pode ganhar legitimidade política e diplomática se conter o comércio de drogas. Portanto, é muito do interesse deles." 

Enquanto o mundo aguarda os próximos passos do Talibã e de outros governos, inclusive o de Biden, alguns países se movimentam para tirar proveito da situação, como conclui o professor Edwards. "Acho simbólico e significativo que as embaixadas que continuam em atividade em Cabul sejam a da China, da Rússia, do Paquistão e da Turquia. Todos esses quatro países em particular estão esperando para ver como podem tirar vantagem da situação".

Edição: Arturo Hartmann