A bancada ruralista, um dos pilares de sustentação do governo Jair Bolsonaro (sem partido), está em campanha pela saída do Brasil da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O tratado, vigente no país desde 2004, é complementar à Constituição Federal de 1988 e detalha princípios para efetivação e proteção de direitos sociais, territoriais, à saúde, educação, trabalho e seguridade social de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, comunidades tradicionais e extrativistas.
Para sair do tratado, o Brasil precisará “denunciar” a Convenção à OIT no prazo máximo de um ano, a partir de 5 de setembro de 2021. A decisão terá efeitos a partir de 5 de setembro de 2023, se for tomada na data-limite.
Interlocutores afirmam que, já no primeiro mês de governo, Bolsonaro prometeu denunciar o tratado no prazo estabelecido por lei.
Uma reportagem da Folha de S. Paulo de outubro de 2019 mostrou que o Planalto formou um grupo de trabalho para contestar junto à Advocacia-Geral da União (AGU) os efeitos da Convenção. Ligado à Casa Civil, esse grupo se refere ao tratado como um entrave ao desenvolvimento do país.
Entre as obras que poderiam avançar sem a Convenção, segundo o mesmo grupo, estariam a construção de uma linha de energia elétrica de alta tensão na terra indígena Waimiri-Atroari, entre Amazonas e Roraima, e o asfaltamento de trechos da BR-319, conhecida como Manaus-Porto Velho.
Em junho de 2021, mais de 240 organizações assinaram uma carta contra a ameaça de retirada do Brasil do tratado. A convocatória foi organizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e pela Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE).
No mês seguinte, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT) divulgaram uma nota técnica ressaltando a importância da Convenção para o diálogo intercultural e a concretização dos direitos de povos indígenas e tribais.
“A tentativa de estigmatização da Convenção nº 169 representa retrocesso nas medidas de proteção dos direitos dos povos nela mencionados, em contraposição ao projeto constitucional, sendo certo que retirar dos povos indígenas e tribais a possibilidade de decidir o próprio destino e o de seus territórios, submetendo-os tão somente aos interesses econômicos, viola frontalmente os princípios do artigo 170 da Constituição”, afirmaram os procuradores.
O Ministério Público Federal (MPF) costuma recorrer à Convenção para questionar à Justiça empreendimentos públicos e privados que impactem nos direitos de comunidades indígenas e tradicionais.
Diante da ameaça de saída do Brasil, o MPF realizou um seminário online com especialistas no tema na última segunda-feira (16), às 15h.
Pressões do agro
A Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) –nome oficial da bancada ruralista – publicou no último dia 12 um documento recomendando que o Brasil deixe a Convenção.
Na avaliação da FPA, ao assinar a Convenção em 2002, o país “criou para si um enorme problema de ordem interna, visto que, na plenitude do espaço territorial brasileiro, teve restringido seu poder de (...) decidir soberanamente sobre o que poderia ser mais necessário ao progresso e desenvolvimento do país.”
Ainda segundo os ruralistas, o tratado “apenas burocratiza e retira a operacionalidade das políticas de defesa aos direitos indígenas, os quais estão exaustivamente previstos na Constituição da República de 1988, sem qualquer necessidade de complementação.”
Mas a advogada Biviany Rojas, assessora do Instituto Socioambiental (ISA), afirma que a saída do tratado causaria prejuízos ao conjunto da sociedade.
“Todos os atores, Estado e empresas, têm a perder. Porque se trata de um instrumento que detalha, complementa e dá segurança jurídica sobre os relacionamentos dos povos indígenas com Estados e terceiros. Com isso, perderíamos aquilo que avançamos em termos de precisão, desenvolvimento do exercício desses direitos e distribuição de responsabilidades”, avalia.
“É um posicionamento ideológico por parte dos que atacam a Convenção 169 da OIT. Estão atacando simbolicamente um instrumento de direitos dos povos tradicionais que, na prática, não faria diferença em relação àquilo que a Constituição Federal já reconhece, mas seria um retrocesso no desenvolvimento da aplicação desses direitos, na precisão e na segurança jurídica. É um posicionamento sem racionalidade”, diz Rojas.
Para a bancada ruralista, o mero uso do termo “povos indígenas” na Convenção seria uma tentativa de segregação.
“O povo é elemento constituidor do Estado e o Brasil possui um só povo, dentro do qual estão indígenas, quilombolas, ribeirinhos, descendentes de europeus, descendentes de latino-americanos, descendentes de americanos, descendentes de asiáticos e todos os demais que formam o povo brasileiro”, diz o documento do dia 12.
Prazo e tramitação
O artigo 39 do tratado garante que “todo membro que tenha ratificado a presente Convenção poderá denunciá-la após a expiração de um período de dez anos contados da entrada em vigor”.
Como ela entrou em vigor em 5 de setembro de 1991, o prazo de um ano para os Estados solicitarem rompimento com a Convenção se abriu em 2001 e está prestes a abrir novamente. Basta ao governo brasileiro comunicar oficialmente essa intenção ao diretor-geral da Repartição Internacional do Trabalho. A denúncia surte efeito um ano após o registro.
O Brasil aguarda posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o trâmite necessário para esse comunicado à OIT.
“Existe um princípio, no Direito, de que você desfaz as coisas do mesmo jeito que as faz. Então, se para ratificar a Convenção o Executivo precisa do Congresso, entende-se que, para poder sair, também necessitaria dessa autorização”, observa Biviany Rojas.
“Internacionalmente, a OIT não vai questionar. Um encaminhamento unilateral do governo seria suficiente”, completa a advogada.
O Supremo também deve decidir em breve se seria necessária formação de maioria simples ou qualificada no Congresso para romper com o tratado.
Diante dessa indefinição, o deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), da bancada ruralista, se antecipou e protocolou em maio o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021. A proposta dele é que o Congresso autorize previamente o presidente da República a denunciar a Convenção 169 da OIT.
O PDL 177/2021 aguarda designação de relator na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN).
Se Bolsonaro cumprir sua promessa, o Brasil só poderá aderir novamente ao tratado após um ano da denúncia.
Dos 187 países-membros da OIT, 23 assinam a Convenção nº 169. Destes, 15 são latino-americanos.
O que está em jogo
O mecanismo mais importante da Convenção é o direito à consulta prévia, livre e informada. Ou seja, nos países que assinam esse tratado, os povos indígenas e comunidades tradicionais devem participar, desde as primeiras etapas, de quaisquer decisões administrativas legislativas que possam afetar seus direitos.
“Basicamente, é um detalhamento do exercício do direito fundamental à participação efetiva para povos indígenas e comunidades tradicionais, de forma a considerar as características culturais, geográficas, linguísticas que esses povos têm”, explica Rojas.
Esse detalhamento também está presente, de forma complementar, em outros instrumentos internacionais vigentes no Brasil, como a Declaração das Nações Unidas dos Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas.
A consulta prévia, livre e informada tem ampla jurisprudência no sistema interamericano de direitos humanos e se aplica mesmo aos países que não assinam a Convenção 169.
Então, qual o risco?
Povos indígenas e comunidades tradicionais desenvolveram no Brasil, há cerca de dez anos, os chamados “protocolos de consulta prévia, livre e informada.” Desde 2014, já foram publicados mais de 80. A ideia é que cada povo descreva os processos sociais mediante os quais tomam decisões e as formas como são representados politicamente. Assim, eles conseguem explicitar aos governos e a terceiros como devem ser feitos os processos de consulta.
Nos protocolos, define-se ainda em que situações os representantes de cada povo devem ser consultados.
Apesar do arcabouço jurídico em vigor no Brasil ser mais complexo que a Convenção em si, indígenas alertam que um rompimento com o tratado se somaria a um conjunto de retrocessos.
“Mais uma vez, é um golpe nos direitos originários dos povos indígenas”, ressalta Marcos Sabaru, do povo Tingui-Botó, em Alagoas. “A gente precisa ir além do ato dele [Bolsonaro] de não querer mais participar da Convenção 169. Isso não é uma iniciativa isolada.”
Sabaru, que é assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), lembra que Bolsonaro prometeu aos eleitores não demarcar nenhum centímetro de terras indígenas e quilombolas. Eleito presidente, promoveu o desmonte do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis [Ibama], regulamentou empreendimentos retirando obrigações relacionadas a impacto ambiental e trabalha para legalizar, em termos práticos, a grilagem.
“Assim, você retira direitos da população indígena, quilombola e comunidades ribeirinhas, extrativistas, tradicionais, e da sociedade brasileira como um todo. Porque essas terras são da União, e estamos falando de água, mata, meio ambiente, que abrangem toda a sociedade”, afirma o indígena de Alagoas.
“Então, você tem o perdão pela invasão de terras, não precisa fazer estudo de impacto ambiental, e tem terras onde o Ibama e a Funai não vão alcançar. E, caso tenha alguma comunidade nelas, não precisará obedecer a Convenção 169 sobre a consulta prévia, livre e de boa-fé às comunidades indígenas e à população tradicional. Não é uma iniciativa isolada”, lamenta.
Para Marcos Sabaru, em um contexto de aparelhamento das instituições, os tratados e cortes internacionais adquirem uma importância ainda maior.
“Sem a Convenção [169] eles vão poder fazer hidrelétricas, rodovias, barragens, enfim, realizar o sonho deles de invadir nossos territórios”, prevê.
A advogada Biviany Rojas reforça, juridicamente, existem outros instrumentos de proteção aos direitos indígenas para além do tratado da OIT.
“O direito de consulta, especificamente relacionado à exploração mineral, está reconhecido na Constituição Federal. Isso, [o Brasil] pode denunciar a Convenção 169 da OIT que não vai mudar em nada. Precisaria de uma emenda constitucional”, observa.
Educadora quilombola no território de Conceição das Crioulas em Salgueiro (PE) e cofundadora da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais (Conaq), Givânia Silva também acompanha o cenário com apreensão.
“A Convenção 169 é um instrumento importante para os povos indígenas e tribais, e entre esses tribais estão as comunidades quilombolas. Infelizmente, o Brasil ainda não observa na sua integralidade esse tratado, mas não deixa de ser um instrumento importante, que tem ajudado as comunidades a enfrentar o racismo, que tem destituído tantos territórios e desterritorializado muitas vidas”, diz.
Para a integrante da Conaq, a intenção de sair da Convenção demonstra que Bolsonaro se comporta como inimigo dos direitos humanos.
“Vamos continuar vigilantes e nos preparar para denunciar isso internacionalmente. É mais uma das violações do direito dos povos que o governo vem fazendo, desde o golpe [de 2016]. Não há na história, creio, um governo com tanto desejo de perseguição dos direitos humanos como o governo Bolsonaro.”
“Retirar o Brasil da Convenção é um atentado grave aos direitos humanos. Não vamos nos calar, mas convocamos também a sociedade, para não deixar que só os indígenas ou quilombolas falem sobre isso. Todos nós somos responsáveis pela manutenção e pela garantia desses direitos”, finaliza.
Edição: Rodrigo Durão Coelho