Há exatos mil dias, o governo de Cuba anunciou sua saída do programa Mais Médicos alegando “declarações ameaçadoras e depreciativas” de Jair Bolsonaro, recém-eleito presidente da República. Cerca de oito mil médicos voltaram para a ilha caribenha nas semanas seguintes e deixaram descobertas áreas periféricas e vulneráveis do Brasil – justamente aquelas onde a covid-19 se mostrou mais letal.
Lançado em julho de 2013, o Mais Médicos levou 15 mil médicos, a maioria cubanos, a municípios, bairros e distritos sanitários indígenas com déficit de profissionais de saúde. O auge foi em 2016, quando 18 mil médicos garantiam atendimento a quase 63 milhões de pessoas em quatro mil municípios.
Até a chegada dos cubanos, o Brasil tinha mais de 400 municípios sem nenhum médico cadastrado no Sistema Único de Saúde (SUS). Mais de 1,5 mil dependiam de um esquema de rodízio, em que o médico atendia, no máximo, duas vezes por semana.
“Com o programa, de uma hora para outra, esses municípios passaram a ter profissionais atuando de segunda a sexta-feira, de manhã e à tarde”, lembra Aristóteles Cardona, médico de família que atua no sertão pernambucano e participou da preparação dos profissionais em Cuba.
Após a expulsão dos cubanos, em novembro de 2018, o Brasil retrocedeu praticamente ao cenário anterior ao lançamento do Mais Médicos, com 40% da população descoberta.
“Um médico da atenção básica realiza entre 300 e 350 consultas por mês. Então, é só multiplicar por 12 mil, que era o número de médicos cubanos que nós atingimos, e isso dará uma noção de quantos atendimentos a mais era possível realizar com esse programa”, ressalta.
Conforme essa estimativa, nos últimos mil dias o SUS deixou de realizar quase 105 milhões consultas médicas com profissionais cubanos. Desde o início da pandemia, foram 43 milhões de atendimentos a menos em áreas vulneráveis ou de difícil acesso.
“Eles teriam o papel de identificar os pacientes de mais risco, orientar quem está sintomático, infectado, que poderia chegar mais precocemente a um hospital quando necessário, e acompanhar o retorno desses pacientes após as internações, em relação a possíveis sequelas e agravamentos de problemas de saúde anteriores”, exemplifica o ex-ministro e deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), responsável pela criação do Mais Médicos.
“A ausência desses médicos contribuiu fortemente para o aumento da letalidade da covid-19 nas áreas mais vulneráveis do nosso país”, acrescentou o ex-ministro.
Integrante da Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares (RNMMP), Aristóteles Cardona insiste que a atenção básica previne doenças e salva vidas.
“Quando se fala em pandemia, a gente costuma associar só às imagens de UTIs. Mas, essa é só a última etapa de cuidado. A maioria das pessoas que adoecem por covid podem e devem ter acompanhamento nos chamados níveis de atenção mais baixos, no bairro, monitorando os dados clínicos e prevendo a necessidade de buscar um hospital”, explica.
Mortes evitáveis
Padilha lembra que o desmonte do Mais Médicos já produzia estragos antes da chegada do coronavírus.
“Isso fez com que, desde o começo de 2019, vários pacientes diabéticos, hipertensos e cardiopatas perdessem seu acompanhamento e estivessem com suas doenças crônicas em um estágio pior em 2020, quando chegou a pandemia. Isso contribuiu para uma gravidade ainda maior da covid-19 nesses grupos”, lamenta.
O esfacelamento das equipes de saúde da família também comprometeu ações como a busca ativa para vacinação. Não à toa, 2019 foi o primeiro ano do século 21 em que o Brasil não alcançou as metas vacinais para crianças.
Supervisora do Mais Médicos em São Paulo, Célia Medina lembra que uma das incumbências dos cubanos na pandemia seria contrapor o negacionismo e as fake news espalhadas pela cúpula do governo Bolsonaro e seus apoiadores. Ela acredita que o avanço das pesquisas sobre a pandemia no Brasil permitirá até quantificar as mortes que seriam evitadas caso os profissionais da ilha caribenha não fossem expulsos.
“Depois da saída dos cubanos, voltamos a ter mais de 1,5 mil municípios sem médico. Imagina o médico cubano nesses lugares, com todo o vínculo que eles desenvolveram com essas populações, explicando para essas pessoas a forma de transmissão da doença e como se proteger”, diz.
“Com certeza, nós perdemos muito ao atravessar a pandemia sem esses médicos.”
Não era qualquer profissional
Medina chama atenção para a bagagem que os profissionais cubanos traziam de seu país, onde a medicina de família é mais valorizada que qualquer outra especialidade.
“Esses médicos tiveram muitas experiências em outros países. Trabalharam na epidemia de ebola, na África, no controle de um surto importante de cólera, muitos que eu acompanhei estiveram na Amazônia venezuelana. Então, além da formação, eles têm essa experiência importante pelo mundo afora, enfrentando condições bastante difíceis”, reforça.
“E o médico cubano, na faixa etária de 30 a 50 anos, já cresceu dentro do regime socialista cubano, uma sociedade sem classe. Isso marca muito essa geração de jovens, então é normal nesses médicos terem um espírito de fraternidade e solidariedade, porque isso é muito forte na sociedade cubana”, acrescenta a supervisora do Mais Médicos.
Antes de vir ao Brasil, os profissionais cubanos passaram por uma formação específica.
“Houve uma etapa inicial de seleção, nas diferentes províncias de Cuba, e em seguida começou a preparação efetivamente”, conta Cardona.
“Antes de vir para cá, eles estudaram português e também tiveram formação em saúde, para estudar particularidades do Brasil, por exemplo doenças que já estão praticamente superadas em Cuba, como hanseníase e tuberculose.”
Uma decisão prudente
Os momentos de desembarque de médicos cubanos no Brasil eram marcados, quase sempre, por tensão e hostilidade.
“As pessoas iam aos aeroportos chamar os cubanos de escravos, diziam que médicas cubanas tinham cara de empregada doméstica. Quando Bolsonaro foi eleito, essa fração odiosa da categoria tornou a situação ainda mais complicada e perigosa, até do ponto de vista da sobrevivência desses médicos”, relata Célia Medina.
“O governo cubano fez muito bem ao se retirar e proteger esses profissionais”, avalia.
Entre os políticos e profissionais de saúde brasileiros que endossavam discursos contrários aos cubanos estava Luiz Henrique Mandetta, que em 1º de janeiro de 2019 assumiria o Ministério da Saúde de Bolsonaro. Mayra Pinheiro, a “Capitã Cloroquina”, estava ao lado dele nessa disputa – e assumiria a secretaria responsável pelo Mais Médicos a convite do ministro recém-empossado.
Uma das promessas era encerrar o programa e substitui-lo por uma nova política, chamada de Médicos pelo Brasil – que nunca decolou.
“Bolsonaro relançou o programa, e como os médicos brasileiros tiveram baixa adesão baixa, muitas vagas ficam abertas e estrangeiros acabam se inscrevendo”, relembra a supervisora do Mais Médicos em São Paulo.
Durante a pandemia, cerca de mil cubanos foram recontratados, não mais em um acordo bilateral entre os dois governos, mas por meio de contratos individuais.
“Apesar de tudo o que fizeram, dizendo que iam destruir o programa Mais Médicos, eles não acabaram, inclusive por pressão dos municípios”, observa Cardona.
O Brasil já registrou 564 mil mortes por covid-19, uma incidência de 256 a cada 100 mil habitantes. Na ilha caribenha, foram contabilizados 3,5 mil óbitos, aproximadamente 30 a cada 100 mil cubanos.
Edição: Rebeca Cavalcante